Processo n.º 325/2021
(Autos de recurso contencioso ― excepção dilatória de ilegitimidade)
Data: 13/Janeiro/2022
Recorrente:
- A S.A.
Entidade recorrida:
- Secretário para os Transportes e Obras Públicas
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A S.A., com sinais nos autos, notificada do despacho do Exm.º Secretário para os Transportes e Obras Públicas de 16 de Setembro de 2020, que lhe aplicou uma multa contratual no valor de MOP$10.000,00, dele não se conformando, interpôs o presente recurso contencioso de anulação de acto.
Regularmente citada, apresentou a entidade recorrida contestação, tendo suscitado a excepção de ilegitimidade da recorrente, nos seguintes termos que se transcrevem:
“Em 19/3/2021, a Recorrente foi notificada que lhe havia sido aplicada uma multa contratual no valor de MOP$10.000,00 (dez ml patacas), por violação de uma sua obrigação contratual e sobre a qual já antes se havia pronunciado no âmbito da audiência de interessados que a Entidade ora Recorrida havia promovido previamente.
Logo em 31 do mesmo mês e ano a Recorrente procedeu ao pagamento dessa mesma multa, sem que nesse momento tenha feito qualquer reserva, total ou parcial, ciente que estava da justeza da sanção que lhe havia sido aplicada.
Salvo melhor opinião, o pagamento pela Recorrente, de forma livre e espontâneo, da sanção pecuniária que lhe havia sido aplicada só pode ser configurado como uma aceitação tácita da decisão ora recorrida.
Ora, por força do disposto no n.º 1 do artigo 34º do CPAC, não pode recorrer quem, sem reserva total ou parcial, aceite, expressa ou tacitamente, o acto depois de praticado.
De todo o exposto decorre, desde logo, que a Recorrente não tem legitimidade para interpor o presente recurso contencioso, o que desde já se suscita.
E que não se pretenda que o facto de a Recorrente, no dia seguinte à da aceitação do acto com o pagamento voluntário e espontâneo da multa, ter ido aos autos manifestar a reserva a que a lei se refere, obsta à verificação da falta de legitimidade antes suscitada.
É que essa reserva foi feita a “destempo”, já que a lei só a prevê no momento da prática espontânea de acto incompatível com a vontade de recorrer (cfr. n.os 1 e 3 do já referido artigo 34º), não admitindo que ela possa ocorrer em momento posterior, o que bem se compreende.
Aliás, só o facto de estar ciente que do pagamento espontâneo da multa contratual decorre a sua ilegitimidade para a interposição do presente recurso, explica que tenha omitido tal ocorrência da exposição exaustiva que fez na douta p.i. dos acontecimentos que se seguiram à notificação da sanção aplicada.”
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da excepção dilatória de ilegitimidade:
Em 19.3.2021, a recorrente foi notificada que lhe havia sido aplicada pela entidade recorrida uma multa contratual no valor de MOP$10.000,00.
No dia 31.3.2021, a recorrente procedeu ao pagamento dessa multa.
No dia seguinte (1.4.2021), a recorrente apresentou junto da entidade recorrida uma declaração emitida em 26.3.2021 pelos responsáveis da recorrente, nela foi manifestada a reserva de que o pagamento da multa não implicaria a aceitação do acto praticado pela entidade recorrida.
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Alega a entidade recorrida que a recorrente não tem legitimidade para recorrer, por ter aceitado tacitamente e sem reserva o acto recorrido, através do pagamento voluntário da multa.
A nosso ver, não tem razão a entidade recorrida.
Dispõe o artigo 34.º do CPAC o seguinte:
“1. Não pode recorrer, quem, sem reserva, total ou parcial, tenha aceitado, expressa ou tacitamente, o acto, depois de praticado.
2. A aceitação tácita é a que deriva da prática espontânea de facto incompatível com a vontade de recorrer.
(…)”
Como observam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha1: “A manifestação de vontade pode ser expressa ou tácita, mas, tratando-se de uma manifestação tácita, deverá resultar da prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de recorrer. Acresce que, nesta última hipótese, a incompatibilidade com a vontade de impugnar decorre da qualificação jurídica que se efectue a partir de um facto ou conjunto de factos dos quais se possa depreender uma declaração tácita de aceitação do acto.(…) Assim, só uma aceitação livre, incondicionada e sem reservas poderá ser entendida como impeditiva do direito de acção.”
Como se decidiu no Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo 101/2012: “A aceitação do acto, para ter estes reflexos ao nível da impossibilidade de recorrer, face ao disposto no art. 34º do CPAC, depende de uma «prática espontânea» (nº2, cit. art.) de determinado facto. Ora, dificilmente se acolhe a ideia de que um pagamento feito sob a ameaça de uma execução imediata possa ser encarado com total determinação, consciência, liberdade e disponibilidade.”
No caso vertente, a recorrente efectuou o pagamento da multa contratual que lhe foi aplicada pela entidade recorrida no dia 31.3.2021, só tendo apresentado a declaração de reserva no dia seguinte.
Ora bem, pese embora a declaração de reserva tenha sido apresentada no dia seguinte ao do pagamento da multa, a verdade é que a tal declaração foi emitida em data anterior ao do pagamento da multa (facto que resulta provado do próprio documento constante dos autos cuja autenticidade não foi impugnada), pelo que não se pode concluir que o pagamento da multa se traduziria numa aceitação livre, incondicionada e sem reserva do acto administrativo ora impugnado pela recorrente, pois há razões para crer que a recorrente fê-lo para evitar que seja instaurado processo de execução.
Sendo assim, julga-se improcedente a excepção de ilegitimidade (para recorrer contenciosamente) invocada pela entidade recorrida.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a excepção de ilegitimidade suscitada pela entidade recorrida.
Sem custas por a entidade recorrida beneficiar de isenção subjectiva.
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RAEM, aos 13 de Janeiro de 2022
Tong Hio Fong
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
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Mai Man Ieng
1 Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição, pág. 382
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Recurso Contencioso – excepção de ilegitimidade Página 4