Processo n.º 1023/2021 Data do acórdão: 2022-1-13
Assuntos:
– livre apreciação da prova
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– prova bastante
– prova suficiente
– contraprova
– elemento probatório
S U M Á R I O
1. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova.
2. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
3. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
4. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1023/2021
(Autos de recurso em processo penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B
3.o arguido C
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 746 a 767 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-21-0201-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na sua parte penalmente falando:
– o 1.o arguido A e o 2.o arguido B ficaram condenados como co-autores materiais de um crime consumado de furto qualificado (furto de coisa alheia de valor consideravelmente elevado), p. e p. pelos art.os 198.o, n.o 2, alíneas a) e e), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), na pena individual idêntica de seis anos de prisão, e de um crime consumado de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art.o 3.o, n.o 2, da Lei n.o 2/2006 (na redacção dada pela Lei n.o 3/2017), na pena individual idêntica de três anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única individual idêntica de sete anos e seis meses de prisão;
– o 3.o arguido C ficou condenado como autor material de um crime consumado de receptação, p. e p. pelo art.o 227.o, n.o 1, do CP, na pena de dois anos de prisão, e como co-autor material de um crime consumado de branqueamento de capitais do art.o 3.o, n.o 2, da Lei n.o 2/2006 (na redacção dada pela Lei n.o 3/2017), na pena de três anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de quatro anos e seis meses de prisão.
Inconformados, vieram os três arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou o 2.o arguido, em essência, o seguinte na motivação apresentada a fls. 798 a 802 dos presentes autos correspondentes:
– tem ele dúvida sobre a conclusão constante do relatório pericial de exame de DNA dos autos, e havendo dúvida razoável acerca da prática dos factos por ele, ele deve ser absolvido de todos os crimes por que vinha condenado em primeira instância, até porque o acórdão condenatório padece do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
Por outro lado, o 1.o arguido, na motivação de fls. 813 a 816 dos presentes autos, assacou, a título principal, o mesmo vício de erro notório na apreciação da prova à decisão condenatória recorrida, sindicando também inclusivamente do acerto da conclusão constante do relatório pericial de exame de DNA dos autos, para rogar a sua absolvição penal total, por força do princípio de in dubio pro reo, e também por falta de prova, para além de suscitar o exagero da sua pena única de prisão, com sempre pretendida suspensão da execução da pena.
Já o 3.o arguido alegou, na motivação de fls. 819 a 826 dos autos, que a decisão condenatória recorrida enfermou do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não se ter conseguido provar que ele sabia que as verbas transferidas pelos 1.o e 2.o arguidos eram obtidas através de conduta ilicita, significando isto que não houve prova do dolo directo nem do dolo eventual por parte dele próprio na prática dos factos, de maneira que a decisão condenatória dele violou o princípio de in dubio pro reo, devendo ele passar a ser absolvido, ou devendo o processo ser reenviado para novo julgamento.
Respondeu o Ministério Público ao recurso do 1.o arguido a fls. 840 a 842v, ao recurso do 2.o arguido a fls. 843 a 844v e ao recurso do 3.o arguido a fls. 845 a 847, no sentido de não provimento dos recursos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 893 a 896, pugnando também pela manutenção do julgado penal.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 746 a 767 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da leitura das três motivações de recurso em questão, sabe-se que todos os três arguidos recorrentes estão a fazer sindicar, mediante a invocação do vício de erro notório na apreciação da prova, do resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal recorrido, para rogar a absolvição penal deles, por força do princípio de in dubio pro reo, por falta de prova. (E apesar de o 3.o arguido ter falado, na sua motivação, no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a argumentação concretamente tecida por ele para sustentar a verificação deste vício não tem a ver com este vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim já, materialmente, com a questão de alegada insuficiência ou falta da prova, o que significa que, ao fim e ao cabo, está ele a imputar ao acórdão recorrido só o vício de erro notório na apreciação da prova).
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente as razões concretas da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de feita a súmula de diversos elementos probatórios produzidos nos autos. Explicou o mesmo Tribunal (a partir da última linha da página 29 do texto do acórdão até ao 1.o parágrafo da página 31 do mesmo texto, a fls. 760 a 761), por quê é que não se pode acreditar na versão fáctica sustentada pelos três arguidos.
Quanto ao sentido e alcance da conclusão constante do relatório pericial de exame de DNA dos autos, o mesmo Tribunal explicou a sua livre convicção primeiro na última linha da página 29 e no primeiro parágrafo da página 30, e depois mais desenvolvidamente no segundo parágrafo da página 30. E a explicação dada por esse Tribunal é também razoável, em termos da lógica das coisas falando.
E a propósito da tese defendida pelo 3.o arguido na sua motivação de recurso, cabe realçar que a matéria constante do ponto 40 da matéria de facto penal provada (a fl. 22 do texto do acórdão recorrido, a fl. 756v) tem apoio concreto no ponto 15 da matéria de facto penal provada (descrito na página 17 do mesmo texto, a fl. 754), ponto este e todos os subsequentes pontos 16 a 22 da matéria de facto penal provada (descritos nesta página 17 e na página seguinte, do mesmo texto decisório), conjugados, já dão para se verificar cabalmente a existência do dolo directo por parte do próprio 3.o arguido na prática dos factos delituais penais em causa.
Termos por que é de concluir que a prova feita em primeira instância é suficiente para condenar penalmente os três arguidos nos termos por que eles vinham aí condenados.
E agora da questão da medida da pena levantada pelo 1.o arguido: vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância, com pertinência à decisão em matéria da medida concreta da pena aos padrões plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, não se patenteia que haja qualquer injustiça notória por parte do Tribunal recorrido na fixação da pena única dele em sete anos e seis meses de prisão, pelo que é de respeitar esse julgado, o que preclude qualquer possibilidade de suspensão da execução da pena, por inverificação, a montante, do requisito formal exigido no art.o 48.o, n.o 1, do CP.
Naufragam, pois, os recursos dos três arguidos, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada (ficando consequentemente intacta a decisão cível tomada no aresto recorrido).
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos.
Custas dos recursos pelos respectivos três recorrentes, com duas UC de taxas de justiça individuais para o 2.o arguido e o 3.o arguido (que deverão pagar, cada um deles, mil e quinhentas patacas de honorários para os seus Ex.mos Defensores Oficiosos), e com quatro UC de taxa de justiça para o 1.o arguido (que deverá pagar mil e oitocentas patacas de honorários ao seu Ex.mo Defensor).
Macau, 13 de Janeiro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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