Processo nº 771/2020
Data do Acórdão: 20JAN2022
Assuntos:
Usucapião
Animus possidendi
SUMÁRIO
1. As expressões actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, se não concretizadas de factos materiais concretos, devem ser tidas por não escritas – artº 549º/4 do CPC, uma vez que estas descrições comportam conceitos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto de prova.
2. O animus possidendi invocado na acção de usucapião não pode ser demonstrado e inferido directamente da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados, mas sim deve inferir-se da matéria de facto assente contendo actos materiais concretos demonstrativos da intenção de domínio.
3. Não tendo sido comprovada a intenção de domínio sobre um bem, não é de proceder o pedido de aquisição da propriedade do bem por usucapião.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 771/2020
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
Companhia de Investimento e Desenvolvimento A, Lda. (doravante simplesmente designada A, Lda.) instaurou no Tribunal Judicial de Base uma acção ordinária de condenação, contra B e os outros réus indicados na petição inicial e interessados incertos, acção essa que foi registada sob o nº CV1-06-0040-CAO, pedindo, inter alia, que se declarasse a Autora titular do direito da propriedade de um terreno identificado na petição e que se condenasse os Réus a reconhecer-lhe titular do invocado direito de propriedade e a desocupar as barracas e os espaços anexos no prazo máximo de 6 meses.
Posteriormente, alguns dos Réus nesses autos da acção ordinária nº CV1-06-0040-CAO, ou seja, C, D, E, F e G, intentaram no Tribunal Judicial de Base uma acção ordinária de condenação, contra a A, Lda., Autora daquela acção nº CV1-06-0040-CAO.
Essa acção posterior foi registada no TJB sob o nº CV3-13-0044-CAO.
Nos autos dessa última acção, foi deduzida pela Ré A, Lda. em sede de contestação, a excepção de litispendência.
Cumprido o contraditório, foi julgada improcedente a invocada excepção da litispendência no despacho saneador.
Inconformada com essa decisão, consubstanciada no despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de litispendência por ela deduzida, veio a Ré A, Lda. interpor o recurso interlocutório da mesma para este TSI.
Notificados os Autores das alegações de recurso, apenas veio C responder ao recurso pugnando pelo não provimento do recurso.
Admitido o recurso, foi a ele fixado o regime de subida diferida e sustentada a decisão recorrida pela Juiz Titular do processo.
Por despacho proferido na acção ordinária nº CV1-06-0040-CAO, foi operada a junção de ambas as acções, tendo passado os autos da acção CV3-13-0044-CAO a correr por apenso àqueles autos que correm os seus termos no 1º Juízo Cível do TJB.
Continuaram as acções juntadas a marchar na sua tramitação unitária e veio a final ser ditada a seguinte sentença julgando parcialmente a acção intentada pela A, Lda. e improcedente a acção instaurada por C, D, E, F e G:
Companhia de Investimento e Desenvolvimento A Limited, com sede em Macau na …, registada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº ...,
vem instaurar a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra,
1. B e sua mulher H, com última residência conhecida na barraca nº 8 e 8-A, sito no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
Vindo a falecer no decurso da causa H, foram habilitados como herdeiros desta para em seu lugar prosseguirem na causa: B, I, J, K, L, M e N;
2. O, casada, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
3. P e sua mulher Q, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
4. R e sua mulher S, ocupantes da barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
Vindo a falecer no decurso da causa R, foi habilitado como herdeiro desta para em seu lugar prosseguir na causa: T;
5. U, casado, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
6. V e sua mulher W, X e sua mulher Y, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
7. Z e sua mulher AA e AB, solteiro, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
8. AC e sua mulher AD, e AE, solteiro, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
9. AF, casado, e AG, casado, com última residência conhecida nas barracas nºs X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
10. AH e sua mulher AI, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
11. AJ e sua mulher AK, com última residência conhecida nas barracas nºs X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
12. C e sua mulher AL, AM e sua mulher AN, e AO, casado, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
13. AP e sua mulher AQ, F, casado, AR, casada, AS, casada, AT, casado, AU1, casada e AV, com última residência conhecida nas barracas nºs X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
Vindo a falecer no decurso da causa AP e AQ, foram habilitados como herdeiros destes para em seu lugar prosseguirem na causa: AW, AX, AY, AZ, BA, F, BB, AS e BC.
14. BD e sua mulher BE, E, casado, e AV, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
Vindo a falecer no decurso da causa BD, foram habilitados como herdeiros deste para em seu lugar prosseguirem na causa: BE, E, BF, BG e BH;
15. BI e BJ, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
16. G e sua mulher BK e AV, com última residência conhecida nas barracas nºs X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
17. BL, casado, e BM, casado, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
18. BN e sua mulher BO, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
19. BP, viúva, e AV, com última residência conhecida na barraca nº 123, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
Herdeiros de BP : G e BQ;
20. BR, viúva e BS, viúva, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
21. BQ e sua mulher BT, e AV, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
22. BU, solteiro, com última residência conhecida na barraca nº X, sita no terreno X, na Povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa;
23. Interessados incertos desconhecidos que coabitem, usem ou se arroguem direitos sobre qualquer das barracas supra referidas, sobre qualquer outra barraca ou construção informal, ainda que desocupada, ou existente no terreno ou sobre qualquer parte do identificado terreno.
Alega a Autora ser dona e legítima proprietária do terreno que identifica o qual adquiriu por compra estando a respectiva aquisição inscrita a seu favor, contudo nesse terreno existe um conjunto de barracas que são ocupadas sem qualquer título ou legitimidade por diversas pessoas, bem sabendo elas que o lugar onde foram erigidas não lhes pertence, nem nunca pertenceu, sendo os Réus ocupantes das barracas que identifica relativamente a cada um deles sem que tenham qualquer autorização da Autora ou anteriores proprietários para esse efeito. Os Réus têm resistido a todas as diligências da Autora para desocuparem o terreno impedindo a Autora de desenvolver o mesmo nos termos do projecto apresentado para o efeito, o que lhe causa prejuízos.
Concluindo pede que:
a) Se declare a Autora titular do direito de propriedade do terreno identificado nestes autos;
b) Se declare a ocupação dos Réus ilegal, abusiva, não titulada e de má-fé;
c) Se condenem os Réus:
1. A reconhecerem que a Autora é a titular do invocado direito de propriedade;
2. A desocuparem as barracas ou/e os espaços anexos, demolindo-as e removendo, à sua custa, todos os materiais que aí se encontram no prazo máximo de 6 meses;
3. A pagarem uma indemnização pelas prejuízos resultantes no atraso do reaproveitamento que vier a ser liquidada em execução de sentença.
Os Réus foram citados nos seguintes termos para querendo contestarem:
1. B (Cit. a fls. 155 por A.R.) e sua mulher H(cit. edital a fls. 293);
2. e 3. O (Cit. a fls. 94 por A.R.), P (Cit. a fls. 94v por A.R.) e sua mulher Q (Cit. edital a fls. 293);
4. R (Cit. a fls. 154 por A.R.) e sua mulher S (cit. edital a fls. 293);
5. U (Cit. a fls. 95 por A.R.);
6. V (Cit. a fls. 259v por A.R.) e sua mulher W (Cit. a fls. 259 por A.R.); X e sua mulher Y (cit. edital a fls. 293);
7. Z (Cit. a fls. 272, por mandado) e sua mulher AA (Cit. a fls. 257 por A.R.); AB (Cit. a fls. 259 por A.R.);
8. AC (Cit. a fls. 155v por A.R.) e sua mulher AD (Cit. a fls. 156 por A.R.); AE (Cit. a fls. 95v por A.R.);
9. AF (Cit. a fls. 257 por A.R.) e AG (cit. edital a fls. 293);
10. AH (Cit. a fls. 154v por A.R.) e sua mulher AI (Cit. a fls. 282, por mandado);
11. AJ e sua mulher AK - (Cit. a fls. 250 por A.R.);
12. C (Cit. a fls. 96 por A.R.) e sua mulher AL (Cit. a fls. 96v por A.R.); AM (Cit. a fls. 97 por A.R.) e sua mulher AN (Cit. a fls. 97v por A.R.); AO (Cit. a fls. 98 por A.R.);
13. AP (Cit. a fls. 98v por A.R.); e sua mulher AQ (Cit. a fls. 99 por A.R.); F (Cit. a fls. 99v por A.R.); AR (Cit. a fls. 100 por A.R.); AS (Cit. a fls. 100v por A.R.); AT (Cit. a fls. 101 por A.R.); AU (cit. edital a fls. 293);
e AV (cit. edital a fls. 293);
14. BD (Cit. a fls. 101v por A.R.) e sua mulher BE (Cit. a fls. 102 por A.R.); E (Cit. a fls. 102v por A.R.); AV (13º Réu);
15. BI e BJ (cit. edital a fls. 293);
16. G (Cit. a fls. 103 por A.R.); e sua mulher BK (Cit. a fls. 103v por A.R.);
17. BL (Cit. a fls. 259v por A.R.) e BM (Cit. a fls. 257v por A.R.);
18. BN (Cit. a fls. 273, por mandado) e mulher BO (Cit. a fls. 104 por A.R.)
19. BP (Cit. a fls. 104v por A.R.) e AV (13º Réu);
20. BR (cit. edital a fls. 293); BS (Cit. a fls. 257v por A.R.);
21. BQ e sua mulher BT (Cit. a fls. 105 e 105v por A.R.);
22. BU (Cit. a fls. 162 por A.R.)
Os 1º e 12º Réus vieram contestar defendendo-se por excepção alegando que adquiriram o terreno onde estão construídas as barracas a que se reportam os autos por usucapião, ou se se vier a entender não estar provada a inversão do título da posse, alegam ser arrendatários do terreno em causa pelo que a acção própria seria a de despejo, mais se defendendo por impugnação, concluindo pela procedência da excepção invocada declarando-se, consequentemente, os RR. B e C, AL, AO, AM e Lei AN como únicos e legítimos proprietários das barracas X, correspondentes à numeração 8 e 8A dada pelo Instituto de Habitação e a Autora a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio e atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º, ambos do Código do Registo Predial, mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4.198 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa e bem assim ordenando o registo de aquisição originária das barracas X a favor dos RR ou se assim não se entender, julgar-se procedente por provada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo em consequência do erro na forma, quanto à natureza, do processo, devendo a P.I. ser indeferida liminarmente nos termos do artº 394º nº 3 do C.P.C., ou julgar-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido.
Os 13º Réus vieram contestar defendendo-se por excepção alegando que adquiriram o terreno onde estão construídas as barracas a que se reportam os autos por usucapião, ou se se vier a entender não estar provada a inversão do título da posse, alegam ser arrendatários do terreno em causa pelo que a acção própria seria a de despejo, mais se defendendo por impugnação, concluindo pela procedência da excepção invocada declarando-se, consequentemente, os RR. AP, sua mulher AQ, sua filha AS, seu filho F, sua filha BB, seu genro AT e sua neta AU como únicos e legítimos proprietários das barracas X e a Autora a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio e atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º, ambos do Código do Registo Predial, mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4.198 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa e bem assim ordenando o registo de aquisição originária das barracas X a favor dos RR., ou julgar-se procedente por provada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo em consequência do erro na forma, quanto à natureza, do processo, devendo a P.I. ser indeferida liminarmente nos termos do Artº 394º nº 3 do C.P.C., ou julgar-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido.
Os 14º Réus vieram contestar defendendo-se por excepção alegando que adquiriram o terreno onde estão construídas as barracas a que se reportam os autos por usucapião, ou se se vier a entender não estar provada a inversão do título da posse, alegam ser arrendatários do terreno em causa pelo que a acção própria seria a de despejo, mais se defendendo por impugnação, concluindo pela procedência da excepção invocada declarando-se, os RR. BD, sua mulher BE e seu filho E, como únicos e legítimos proprietários da barraca X, e a Autora a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio e atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º, ambos do Código do Registo Predial, mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4.198 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa e bem assim ordenando o registo de aquisição originária da barraca X a favor dos RR., ou julgar-se procedente por provada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo em consequência do erro na forma, quanto à natureza, do processo, devendo a P.I. ser indeferida liminarmente nos termos do artº 394º nº 3 do C.P.C., ou julgar-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido.
Os 16º Réus G e mulher BK e os 21º Réus BQ e BT vieram contestar defendendo-se por excepção alegando que adquiriram o terreno onde estão construídas as barracas a que se reportam os autos por usucapião, ou se se vier a entender não estar provada a inversão do título da posse, alegam ser arrendatários do terreno em causa pelo que a acção própria seria a de despejo, mais se defendendo por impugnação, concluindo pela procedência da excepção invocada declarando-se, os RR. G, sua mulher BK e o seu irmão BQ e sua mulher BT, como únicos e legítimos proprietários das barracas X e a Autora a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio e atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º, ambos do Código do Registo Predial, mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4.198 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa e bem assim ordenando o registo de aquisição originária da barraca X a favor dos RR, ou julgar-se procedente por provada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo em consequência do erro na forma, quanto à natureza, do processo, devendo a P.I. ser indeferida liminarmente nos termos do artº 394º nº 3 do C.P.C., ou julgar-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido.
A 20ª Ré BR veio deduzir contestação alegando que em 1989 o seu marido vendeu a loja que tinham na barraca 128 nunca mais explorando ou ocupando a mesma, concluindo no sentido da acção ser julgada improcedente e não provada, e a contestante absolvida do pedido, com as consequências legais.
O 22º Réu veio contestar defendendo-se por excepção alegando que adquiriu o terreno onde está construída a barraca a que se reportam os autos por usucapião, ou se se vier a entender não estar provada a inversão do título da posse, alega ser arrendatário do terreno em causa pelo que a acção própria seria a de despejo, mais se defendendo por impugnação, concluindo pela procedência da excepção invocada declarando-se, consequentemente, o R. BU, como único e legítimo proprietário da barraca G22 e a Autora a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio e atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º, ambos do Código do Registo Predial, mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4.198 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa e bem assim ordenando o registo de aquisição originária da barraca X a favor do R., ou julgar-se procedente por provada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo em consequência do erro na forma, quanto à natureza, do processo, devendo a P.I. ser indeferida liminarmente nos termos do artº 394º nº 3 do C.P.C., ou julgar-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se o R. do pedido.
A Autora replicou quanto às contestações apresentadas pelos 1º, 12º, 13º, 14º, 16º, 21º e 22º Réus defendendo-se por impugnação quanto à matéria das excepções e invocando a má fé dos Réus, concluindo pela improcedência das excepções deduzidas pelos Réus, bem como improcedente o pedido de cancelamento da inscrição na Conservatória do Registo Predial, continuando os autos os seus termos e provado e procedente o pedido de condenação dos Réus AP, sua mulher AQ, sua filha AS, seu filho BV e sua neta AU, B, bem como C e sua mulher AL, e seus filhos AO e AM, e a mulher deste, Lei AN, G, sua mulher BK, seu irmão BQ, e sua mulher BT, BD e sua mulher BE, e seu filho E e BU como litigantes de má fé e condenados ao pagamento de uma indemnização a apurar em execução de sentença.
Os 13º, 14º, 16º, 21º e 22º Réus treplicaram, concluindo pela absolvição do pedido de litigância de má fé, concluindo como na contestação.
Foi proferido despacho saneador julgando improcedente a excepção do erro na forma de processo e improcedente o pedido de cancelamento do registo, sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Por despacho de fls. 1044/1045 foi ordenada a apensação a estes autos do processo que corria termos neste tribunal sob o nº CV3-13-0044-CAO, onde:
C, casado, residente em 氹仔XX村XX路X地下;
D, casada, residente em氹仔XX村XX路X地下;
E, casado, residente em 氹仔XX村XX路X地下;
F, casado, residente em 氹仔XX村XX路X地下;
G, casado, residente em 氹仔XX村XX路X地下;
Vêm instaurar a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra,
Companhia de Investimento e Desenvolvimento A Limited, com sede em Macau na …, registada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº ....
Alega o 1º Autor que em 1946 foi convidado pela pessoa que indica a mudar-se para a povoação de XX ali tendo construído a barraca que indica, pagando àquele sujeito uma renda mensal, sendo que a partir de determinado momento passou a ser outra pessoa a cobrar a renda, sujeito este que em 1982 veio a doar oralmente ao Autor as barracas que identifica e respectivo logradouro, sendo que desde então o Autor se comporta relativamente às mesmas como sendo o seu dono o que faz à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja convicto de ser o respectivo proprietário.
Alega a 2ª Autora que em 1946 o seu marido e sogro foram convidados pela pessoa que indica a mudar-se para a povoação de XX ali tendo construído a barraca que indica, pagando àquele sujeito uma renda mensal, sendo que a partir de determinado momento passou a ser outra pessoa a cobrar a renda, sujeito este que em 1982 veio a doar oralmente ao marido da Autora as barracas que identifica e respectivo logradouro, sendo que desde então o marido da Autora se comporta relativamente às mesmas como sendo o seu dono o que faz à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja convicto de ser o respectivo proprietário.
Alega o 3º Autor que em 1972 se mudou com os seus pais para a povoação de XX onde passaram a viver numa barraca que arrendaram a BW, sendo que em 1982 AV doou oralmente ao Autor as barracas que identifica e respectivo logradouro, sendo que desde então o Autor se comporta relativamente às mesmas como sendo o seu dono o que faz à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja convicto de ser o respectivo proprietário.
Alega o 4º Autor que em 1973 se mudou para a povoação de XX onde o seu pai instalou o café X Kei pagando as rendas respectivas e o Autor construiu as barracas que indica que vêm ocupando desde então com a sua família, sendo que em 1982 a pessoa que recebia as rendas doou oralmente ao Autor as barracas que identifica e respectivo logradouro, sendo que desde então o Autor se comporta relativamente às mesmas como sendo o seu dono o que faz à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja convicto de ser o respectivo proprietário.
Alega o 5º Autor que em 1964 se mudou com a sua família para a povoação de XX pagando a respectiva renda, onde construiu a barraca que indica onde vive até hoje, sendo que em 1982 a pessoa que indica doou oralmente ao Autor as respectivas barracas e logradouro, sendo que desde então o Autor se comporta relativamente às mesmas como sendo o seu dono o que faz à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja convicto de ser o respectivo proprietário.
Pelo que, com base nos indicados factos e decurso do prazo os Autores adquiriram as respectivas barracas por usucapião, havendo de ser cancelado o registo da Ré sobre o respectivo terreno.
Concluindo pedem que:
a) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, mais se declarando, consequentemente, o A. C como único e legítimo proprietário da barraca nº 6 e a Ré a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio;
b) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, mais se declarando, consequentemente, a A. D como única e legítima proprietária da barraca nº G6 e a Ré a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio;
c) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, mais se declarando, consequentemente, o A. F como único e legítimo proprietário da barraca nº X e a Ré a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio;
d) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, mais se declarando, consequentemente, o A. E como único e legítimo proprietário da barraca nº G25 e a Ré a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio;
e) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, mais se declarando, consequentemente, o A. G como único e legítimo proprietário da barraca nº G26 e a Ré a reconhecer isso mesmo, abrindo mão de tal prédio;
f) Atento o disposto no artº 14º e nos termos do nº 1 do artº 8º ambos do Código do Registo Predial mais deve ser ordenado o cancelamento, junto da respectiva Conservatória do Registo Predial, da inscrição nº ... do Livro..., por referência ao prédio descrito naquela Conservatória sob o nº ..., a folhas..., do Livro..., relativa à aquisição do terreno com a área de 4198.0000 m2, sito na povoação de XX, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, Taipa, e
g) Bem assim ordenando o registo de aquisição originária das barracas:
- nº 6 a favor de C casado com BX sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes em氹仔XX村XX路6地下;
- G6 a favor de N e a D, casados entre si, no regime de comunhão de adquiridos, residentes em氹仔XX村XX路G6地下;
- G27 e G28 a favor de F casado com BY sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes em氹仔XX村XX路G28地下;
- G25 a favor de E casado com BZ sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes em氹仔XX村XX路G25地下;
- G26 a favor de G casado com CA sob o regime de comunhão de adquiridos, residentes em氹仔XX村XX路G26地下;
h) Por último, deve, ainda, a Ré ser condenada a abster-se de praticar quaisquer actos que limitem o acesso às propriedades dos AAs. ou de alguma maneira possam perturbar o gozo e fruição dessas propriedades.
Citada a Ré para querendo contestar veio esta fazê-lo defendendo-se por excepção invocando a litispendência entre estes autos e aqueles outros (a que estes vieram a ser apensos) e por impugnação, pedindo que, julgando a excepção dilatória de litispendência procedente e provada seja a Ré absolvida da instância, ou não procedendo a excepção invocada, deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se a Ré do pedido.
Em qualquer caso, devem os Autores ser condenados por litigância de má-fé, com todas as consequências legais.
Replicando vêm os Autores responder à matéria da excepção e da litigância de má-fé invocada, concluindo no demais como na p.i..
Foi proferido despacho saneador onde foi julgada improcedente a excepção da litispendência e seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Em cumprimento do despacho de fls. 1044/1045 o processo que corria termos sob o nº CV3-13-0044-CAO foi apenso a estes autos sendo-lhe atribuído o nº CV1- 06-0040-CAO-D, passando os processos a ser tramitados como sendo um único – cf. fls. 358 do apenso D -.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
Das questões a decidir e sua ordem.
Nos autos principais a Autora vem reivindicar dos Réus o prédio a que se reportam os autos, alegando ser a proprietária do prédio cujo direito se encontra inscrito a seu favor no registo predial o qual está a ser ocupado pelos Réus e reclamando que os Réus sejam condenados a reconhecer o seu direito e a entregar-lhe o prédio livre e devoluto.
Mais pede a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização, uma vez que a recusa destes em lhe entregar o prédio lhe causa prejuízos por não poder aproveitar o terreno como pretende.
À excepção de um dos Réus que se limitou a impugnar que estivesse a ocupar o prédio, os demais vieram defender-se por excepção invocando a aquisição originária - usucapião - do prédio.
No processo apenso – Apenso D – parte dos aqui Réus, ali como Autores, vieram instaurar contra a aqui Autora e ali Ré acção em que pedem que seja reconhecido que adquiriram a parte do prédio que ocupam por usucapião, pelo que, a apreciação da matéria da excepção e da causa de pedir no processo apenso emerge dos mesmos factos e regras de direito quanto aos Réus que também são Autores no apenso, acabando em termos práticos, a acção apensa por ser equivalente a ter sido deduzida reconvenção.
Assim sendo, cabendo apreciar primeiro da matéria da excepção, o certo é que, se esta for julgada improcedente, improcedente será também o pedido formulado na acção apensa.
Por outro lado, sendo o pedido numa acção o do reconhecimento do direito de propriedade e noutra o reconhecimento da aquisição por usucapião, ambos do mesmo prédio, não faz qualquer sentido apreciar o pedido de reconhecimento do direito de propriedade para depois eventualmente julgar procedente o pedido de reconhecimento da usucapião, sendo certo que este anula aquele, funcionando quase como causa prescritiva nos termos do artº 1237º do C.Civ..
Assim irá conhecer-se primeiro da excepção da prescrição aquisitiva e independentemente do resultado do conhecimento daquela, será de conhecer a seguir do pedido no apenso D de aquisição por usucapião.
Improcedendo a excepção da prescrição aquisitiva e o pedido de aquisição por usucapião cabe conhecer do pedido de reconhecimento do direito da Autora.
Caso venha a ser julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito da Autora, cabe apreciar da excepção invocada pelos Réus de serem arrendatários do terreno e da subsequente existência de justo título que obsta à restituição da coisa.
Improcedendo a excepção dos Réus de serem titulares de direito ao arrendamento cabe apreciar do direito à restituição da Autora e sendo este procedente do pedido indemnizatório.
Da instrução e discussão da causa apurou-se a seguinte factualidade:
a) Por escritura pública outorgada em 19.01.2006, a ora Autora comprou à Sociedade Companhia de Fomento Predial CB, Limitada, o prédio rústico, composto por terreno, com a área de 4.198 m2, sito na Povoação de XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ..., a fls. … do Livro …; (alínea A) dos factos assentes dos autos principais)
b) O prédio rústico aludido em A) encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o nº ..., a favor da Autora; (alínea B) dos factos assentes dos autos principais)
c) Esse terreno, tem a configuração e confrontações que constam da Planta Cartográfica junta a fls. 17 a 20 dos autos principais que aqui se dá inteiramente por reproduzida; (alínea C) dos factos assentes dos autos principais)
d) Nessa terreno existe um conjunto de barracas referenciadas no Cadastro do Instituto da Habitação, Mapa de Edificações Informais, conforme resulta da Planta junta a fls. 21 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea D) dos factos assentes dos autos principais)
e) Existem outras construções no mesmo terreno, algumas devolutas, outras em mau estado de conservação e impróprias de qualquer tipo de ocupação ou utilização, como mostra a mesma Planta do Instituto de Habitação; (alínea E) dos factos assentes dos autos principais)
f) Os aqui AA são RR na acção que corre termos neste tribunal, no 1º Juízo, sob o nº CV1-06-0040-CAO, sendo a aqui Ré, Autora ali; (alínea A) dos factos assentes do apenso D)
g) Nessa acção reivindica a R. o prédio rústico sito na Freguesia da Nossa Senhora do Carmo (Taipa), denominado Povoação de XX, que confronta a Norte Povoação de XX Chun, a Sul com Terrenos de CC, CD, CE e CF, a Este com Terrenos de CG, CH e CD e a Oeste com o terrenos de CE, CF, CI, CD e CJ, com a área de 4198.0000 metros quadrados, omisso na matriz, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., conforme doc. de fls. 40 e ss do apenso D e cujo teor aqui se dá por reproduzido, além do mais quanto à identidade do titular inscrito; (alínea B) dos factos assentes do apenso D)
h) B aqui 1º Réu vive nas barracas marcadas na planta de fls. 1996 dos autos principais com os números 8 e 8A; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória dos autos principais)
i) A 2ª Ré quando vem a Macau pernoita nesta barraca; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória dos autos principais)
j) Na barraca indicada com o nº 26 vivem C, AL, AM e AN e que aqui são alguns dos 12º Réus; (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória dos autos principais)
k) Nas barracas indicadas com os nºs 27 e 27A vive F e que aqui é um dos aqui 13º Réus; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória dos autos principais)
l) E, que aqui é um dos 14º Réus, vai fazendo a manutenção da barraca com o nº 28 (G25); (resposta ao quesito nº 12 da base instrutória dos autos principais)
m) As barracas 44 e 44A são ocupadas pelos 16º Réus; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória dos autos principais)
n) A barraca 130 é ocupada pelos 21º Réus; (resposta ao quesito nº 19 da base instrutória dos autos principais)
o) A barraca 135 é ocupada pelo 22º Réu; (resposta ao quesito nº 20 da base instrutória dos autos principais)
p) Os 13º RR AP, sua mulher AQ, seu filho F, sua filha BB e seu genro AT desde data anterior a 1982 vivem na povoação de XX Chun; (resposta ao quesito nº 23 da base instrutória dos autos principais)
q) Pelo menos desde 1986 o Réu AP instalou no terreno aludido em a) o café “X Kei”; (resposta ao quesito nº 25 da base instrutória dos autos principais)
r) Foi AV quem recebeu as rendas e lhe emitiu os respectivos recibos até 1982; (resposta ao quesito nº 26 da base instrutória dos autos principais)
s) Em 1982, em dia que não conseguem precisar, AV, deixou de cobrar as rendas devidas; (resposta ao quesito nº 27 da base instrutória dos autos principais)
t) Desde data anterior a 1982 AP (este até falecer) e F têm habitado nas Barracas X (que correspondem aos nºs 27 e 27A na planta aludida em d) praticando quanto às mesmas aos actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição; (resposta ao quesito nº 29 da base instrutória dos autos principais)
u) Nelas faz as obras de reparação; (resposta ao quesito nº 30 da base instrutória dos autos principais)
v) AP (este até falecer) e F têm praticado os actos referidos supra quanto às Barracas X (que correspondem aos nºs 27 e 27A na planta aludida em d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 32 da base instrutória dos autos principais)
w) O 1º Réu B e o 12º Réu C, vivem na Povoação de XX Chun há mais de 60 anos, tendo posteriormente passado a viver com eles a mulher deste último, AL e seus filhos AO e AM e a mulher deste AN; (resposta ao quesito nº 34 da base instrutória dos autos principais)
x) O 1º Réu B e o 12º Réu C pagavam renda a uma pessoa cuja identidade não foi possível apurar; (resposta ao quesito nº 35 da base instrutória dos autos principais)
y) Foram os 1º Réu B e o 12º Réu C quem construiu as barracas G6 (que correspondem às barracas nºs 8, 8 A na planta aludida em d); (resposta ao quesito nº 36 da base instrutória dos autos principais)
z) A partir de pelo menos 1977 passou a ser AV a cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 37 da base instrutória dos autos principais)
aa) Em 1982, AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 39 da base instrutória dos autos principais)
bb) O 1º Réu B desde há mais de 60 anos que habita e pratica nas barracas X (que correspondem às barracas nºs 8, 8A na planta aludida em d) todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição; (resposta ao quesito nº 41 da base instrutória dos autos principais)
cc) O 1º Réu B nela faz as obras de reparação; (resposta ao quesito nº 42 da base instrutória dos autos principais)
dd) 1º Réu B tem praticado os actos referidos supra quanto às Barracas X (que correspondem às barracas nºs 8, 8A na planta aludida em d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 44 da base instrutória dos autos principais)
ee) Os 14º Réus, BD e seu filho E mudaram-se para a povoação de XX Chun em 1972; (resposta ao quesito nº 46 da base instrutória dos autos principais)
ff) BD pagava uma renda; (resposta ao quesito nº 47 da base instrutória dos autos principais)
gg) BD comprou a barraca G25 (que corresponde à barraca nºs 28 na planta aludida em d); (resposta ao quesito nº 48 da base instrutória dos autos principais)
hh) Em 1982, AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 49 da base instrutória dos autos principais)
ii) Desde 1972 os 14º Réus, BD e seu filho E desde essa data, habitam e praticam nas aludidas barracas todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição; (resposta ao quesito nº 51 da base instrutória dos autos principais)
jj) Nelas fazem as obras de reparação; (resposta ao quesito nº 52 da base instrutória dos autos principais)
kk) Os 14º Réus, BD e seu filho E têm praticado os actos referidos supra quanto à barraca G25 (que corresponde à barraca nºs 28 na planta aludida em d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 54 da base instrutória dos autos principais)
ll) O 22º Réu BU mudou-se para a povoação de XX Chun em 1971; (resposta ao quesito nº 56 da base instrutória dos autos principais)
mm) O 22º Réu BU desde aquela data vivia na barraca G22 (que corresponde à barraca nº 135 na planta aludida em d) com os pais os quais pagavam uma renda; (resposta ao quesito nº 57 da base instrutória dos autos principais)
nn) Em 1982, AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 58 da base instrutória dos autos principais)
oo) Desde essa data, por si e antepossuidores, o 22º Réu habita e pratica na aludida barraca todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição; (resposta ao quesito nº 60 da base instrutória dos autos principais)
pp) Nela fazendo as reparações necessárias; (resposta ao quesito nº 61 da base instrutória dos autos principais)
qq) O 22º Réu BU tem praticado os actos referidos supra quanto à barraca G22 (que corresponde à barraca nº 135 na planta aludida em d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 63 da base instrutória dos autos principais)
rr) Na década de sessenta os 16º Réus G e sua mulher BK e o seu irmão, 21ºs RR, BQ e sua mulher BT mudaram-se para a povoação de XX Chun; (resposta ao quesito nº 65 da base instrutória dos autos principais)
ss) Os pais dos 16º Réus G e sua mulher BK e o seu irmão, 21ºs RR, BQ e sua mulher BT ocuparam a barraca G26 (que correspondem às barracas nºs 44, 44A e 130 na planta aludida em d), mediante o pagamento de uma renda; (resposta ao quesito nº 66 da base instrutória dos autos principais)
tt) Em 1982, AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 67 da base instrutória dos autos principais)
uu) Pelos menos desde a década de oitenta que os 16º e 21º RR habitam e praticam na barraca G26 (que correspondem às barracas nºs 44, 44A e 130 na planta aludida em d) todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição; (resposta ao quesito nº 69 da base instrutória dos autos principais)
vv) Nela fazendo obras de reparação; (resposta ao quesito nº 70 da base instrutória dos autos principais)
ww) Os 16º e 21ºs RR têm praticado os actos referidos supra quanto à barraca G26 (que correspondem às barracas nºs 44, 44A e 130 na planta aludida em d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 72 da base instrutória dos autos principais)
xx) Os Autores C, F e G residem na Povoação de XX, freguesia da Nossa Senhora do Carmo, Taipa, Macau R.A.E.; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória do Apenso D)
yy) Em data não apurada mas após 2012 a Ré iniciou a realização de obras no prédio id. em B., junto ao muro existente no Caminho das Hortas id. no documento de fls. 52 do Apenso D, cujo teor aqui se dá por reproduzido; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória do Apenso D)
zz) Obras essas consistem na fixação de uns pilares de ferro para fixar uns taipais, murando o terreno X; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória do Apenso D)
aaa) (….) e onde existem casas / barracas onde residem os AA.; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória do Apenso D)
bbb) Após C e B terem ido viver para a povoação de XX construíram as barracas identificadas com os nºs 26 e 26A na planta referida na alínea d); (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória do Apenso D)
ccc) As barracas foram construídas há mais de 60 anos aí habitando ainda hoje o C com a sua respectiva família; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória do Apenso D)
ddd) Num dia de 1982 o Sr. AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória do Apenso D)
eee) Desde que construiu as barracas identificadas com os nºs 26 e 26A na planta referida na alínea d), o A. C usufrui das aludidas barracas habitando-as e praticando, nomeadamente, obras de reparação, autorizadas pelo Administrador do Conselho das Ilhas, secção da polícia administrativa mediante a autorização nº 46/74 de 4 de Dezembro de 1974; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória do Apenso D)
fff) O A. C tem praticado os actos referidos supra quanto às barracas identificadas com os nºs 26 e 26A na planta referida na alínea d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 17 da base instrutória do Apenso D)
ggg) Aquela barraca foi ocupada por B há mais de 60 anos e depois por seu filho N, o qual aí ainda hoje habita; (resposta ao quesito nº 21 da base instrutória do Apenso D)
hhh) Em 1982, o Sr. AV, deixou de cobrar as rendas devidas; (resposta ao quesito nº 25 da base instrutória do Apenso D)
iii) Desde que construiu as barracas nºs 8 e 8A na planta indicada na alínea d), o N por si e antepossuidores usufrui das aludidas barracas habitando-as e praticando, nomeadamente, o seu pai B obras de reparação, autorizadas pelo Administrador do Conselho das Ilhas, secção da polícia administrativa mediante a autorização nº 47/73 de 18 de Agosto de 1973; (resposta ao quesito nº 27 da base instrutória do Apenso D)
jjj) O N tem praticado os actos referidos supra quanto às barracas identificadas com os nºs 8 e 8A na planta indicada na alínea d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 29 da base instrutória do Apenso D)
kkk) AP em data anterior a 1982 construiu as barracas identificadas com os nºs 27 e 27A na planta aludida em d), aí tendo vivendo com a sua família o que até hoje continua a fazer Autor F com a sua família; (resposta ao quesito nº 31 da base instrutória do Apenso D)
lll) O Autor F por si e antepossuidores usufrui das barracas identificadas com os nºs 27 e 27A na planta aludida em d) habitando-as e praticando obras de reparação; (resposta ao quesito nº 36 da base instrutória do Apenso D)
mmm) O A. F tem praticado os actos referidos supra quanto às barracas identificadas com os nºs 27 e 27A na planta indicada na alínea d) à vista de toda a gente e sem interrupções, sendo que até 2006 sem oposição por parte de quem quer que seja; (resposta ao quesito nº 38 da base instrutória do Apenso D)
nnn) Em 1982 o Sr. AV, deixou de cobrar as rendas; (resposta ao quesito nº 42 da base instrutória do Apenso D)
ooo) Desde 1972 o Autor E por si e antepossuidores usufrui das barracas identificadas com o nº 28 na planta aludida em d) habitando-a e praticando, nomeadamente, obras de reparação, autorizadas pelo Administrador do Conselho das Ilhas, secção da polícia municipal mediante a autorização nº 28/72 de 14 de Agosto de 1972; (resposta ao quesito nº 44 da base instrutória do Apenso D)
ppp) Em 1982 o Sr. AV, deixou de cobrar as rendas devidas. (resposta ao quesito nº 50 da base instrutória do Apenso D)
Cumpre assim apreciar e decidir.
Da excepção peremptória da prescrição aquisitiva da usucapião.
Vêm os Réus contestantes com excepção da 20ª Ré alegar ter adquirido por usucapião o direito de propriedade sobre a parte do prédio onde se encontra edificada a sua construção e respectivo logradouro.
Nos termos do artº 1212º e 1221º ambos do C.Civ. a posse não titulada, de boa-fé, pacífica e pública do direito de propriedade ou outros direitos reais quando mantida por mais de 15 anos, ou 20 anos se for de má-fé, faculta ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua actuação.
Alegam os Réus estar na posse das barracas e terreno onde foram edificadas desde datas anteriores a 1999, ano em que entrou em vigor o actual Código Civil, pelo que, na apreciação da questão sub judicie há que atender à sucessão de leis, ainda que, na matéria não tenha havido alterações significativas.
Segundo o disposto no artº 1251º do C.Civ. de Macau de 1966 «a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
Esta norma mantem-se inalterada no artigo 1175º do actual Código Civil de Macau, sendo que a posse se adquire nos termos previstos no artº 1263º do C.Civ. de 1966 e actualmente do artº 1187ºdo C.Civ..
A posse é composta por dois elementos sendo um o «corpus», isto é, o poder de facto traduzido em ter colocado a coisa sob o seu poder e na possibilidade de o continuar a exercer, e o «animus» que consiste no elemento subjectivo ou intenção com base na qual se exerce o poder de facto – isto é agindo como proprietário, titular do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção, titular do domínio útil, etc… –2
O prédio a que se reportam os autos é um prédio em regime de propriedade plena.
No caso dos autos os Réus alegam que haviam arrendado o terreno onde edificaram as barracas ou onde estas já estariam edificadas e que em 1982 a pessoa que vinha cobrar as rendas deixou de aparecer e lhes “doou as barracas e logradouros”.
Ou seja, daquilo que os Réus alegavam, teriam sido arrendatários das partes que usavam do terreno até 1982 e por inversão do título da posse por força da doação – al. d) do artº 1263º do C.Civ. 1966 e al. d) do actual artº 1187º do C.Civ. -, a partir dessa data passaram a comportar-se como donos do mesmo porque lhes foi doado.
Contudo se se provou que em 1982 a indicada pessoa deixou de aparecer para cobrar as rendas, já não se demonstrou que haja doado o prédio e menos ainda qual a relação dessa pessoa com o prédio dos autos, nem tão pouco, que por qualquer outro meio legalmente previsto os Réus hajam invertido o título pelo qual ocupavam/usavam o terreno em causa.
Tal como já alegavam em sede de contestação tinham os Réus a consciência de que não conseguindo provar a inversão do título da posse improcederia a invocada excepção da prescrição aquisitiva, invocando nesse caso serem arrendatários do prédio.
Pelo que, tendo os Réus construído e usado as barracas primeiro através de um eventual arrendamento do espaço e após por mera tolerância do titular do direito, não tendo havido inversão do titulo da posse, bem sabendo que ao terreno onde estão implantadas as barracas não têm direito algum e não havendo, nem se provando o “animus possidendi”, impõe- -se concluir pela improcedência da invocada excepção da prescrição aquisitiva.
Do pedido de reconhecimento de aquisição por usucapião do apenso D.
Conforme supra se identificou e explicou cabe agora conhecer do pedido formulado no apenso D.
No apenso D são cinco os Autores, sendo que, o 1º Autor corresponde a um dos 12º Réus, o 3º Autor corresponde a um dos 14º Réus, o 4º Autor corresponde a um dos 13º Réus e o 5º Autor corresponde a um dos 16º Réus.
A 2ª Autora não é parte na acção principal.
Alega a 2ª Autora que é casada com N o qual por óbito da 1ª Ré H veio a ser habilitado a prosseguir na causa no lugar daquela.
A 2ª Autora para além de invocar ser casada com N e de com ele viver na Barraca nº 6, o que invoca é que o sogro e o marido tinham a posse da referida barraca, posse essa que era boa e por tempo bastante para usucapir.
Porém, a final vem esta Autora pedir que se declare ser a proprietária da barraca G6.
Ora, ainda que se admitisse que segundo uma solução em direito possível a 2ª Autora D por ser casada com N pudesse vir pedir que tinha usucapido o imóvel, sempre seria necessário que no mínimo tivesse demonstrado ser casada com quem diz ser e qual o regime, sem prejuízo de, salvo melhor opinião ter de invocar ser também ela possuidora do imóvel o que de modo algum faz, limitando-se a dizer que ali habita com o marido, sendo certo que nem isto se provou.
É que, pese embora pudesse haver comunicabilidade do bem consoante o regime do casamento, tal – a comunicabilidade – só acontece depois do bem jurídico integrar a esfera jurídica do cônjuge, o que só ocorre depois de ser reconhecido que este – o cônjuge – usucapiu, o que salvo melhor opinião tem de ser pedido pelo próprio e não acontece de forma automática mas apenas através de reconhecimento judicial (sem prejuízo dos efeitos da usucapião retroagirem à data do inicio da posse – artº 1213º do C.Civ. -).
Ora, o facto de viver na casa com o marido, sem que mais se alegue, não é bastante para se concluir que tem a posse.
O facto do marido ser possuidor não quer dizer que a mulher o seja também.
As pessoas de quem a 2ª Autora diz ser mulher e nora e que segundo ela seriam os possuidores do imóvel ou parte dele, não vieram pedir que fosse reconhecido terem adquirido o imóvel por usucapião.
Destarte, com base em tudo quanto já antes se disse relativamente aos caracteres da posse e para onde se remete, não pode a acção proceder quanto à segunda Autora, uma vez que, nem invoca ser a possuidora do imóvel.
Quanto aos 1º, 3º, 4º e 5º Autores, C, E, F e G, sendo os factos e os fundamentos de direito do pedido de reconhecimento do direito por usucapião iguais aos factos e fundamentos de direito que fundamentavam a excepção da prescrição aquisitiva, vale aqui o que se disse supra, concluindo-se que não adquiriram o imóvel por usucapião, uma vez que – repete-se - ao não demonstrarem a inversão do título e que hajam passado a possuir como titulares do direito de real, o que resulta dos autos é apenas que ocupavam o terreno, inicialmente mediante o pagamento de uma renda e após essa deixar de ser cobrada, por mera tolerância ou inércia do titular do direito, não resultando por isso que o fizessem como se fossem donos e proprietários do mesmo, bem sabendo que a ele não tem direito algum.
Do direito de propriedade da Autora
Nos termos do nº 1 do artº 1235º do C.Civ. «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».
Segundo o artº 1241º do C.Civ. «O direito de propriedade adquire-se por contrato, (…)».
No caso dos autos, não só a Autora goza da presunção de ser a titular do direito de propriedade sobre o prédio a que respeitam os autos face à presunção decorrente do registo a seu favor nos termos do artº 7º do CRP, como também, está assente que adquiriu o respectivo direito por compra nos termos do nº 1 do artº 402º e alínea a) do artº 1242º ambos do C.Civ..
Pelo que, face ao disposto no nº 1 do artº 402º e alínea a) do artº 1242º ambos do C.Civ. se tem de concluir que a Autora é a titular do direito de propriedade do prédio a que se reportam os autos.
Resulta também da factualidade apurada que os Réus B, O, C e mulher AL, AM e mulher AN, F, AR, AT, E, G e mulher BK, BQ e mulher BT e BU estão a ocupar o prédio objecto destes autos, usando as barracas que ali têm edificadas.
Pelo que, deve proceder a pretensão da Autora quanto a serem condenados os Réus indicados no parágrafo anterior a reconhecerem ser aquela a titular do direito de propriedade sobre o prédio a que se reportam os autos.
Do alegado arrendamento por banda dos Réus.
Segundo o disposto no nº 2 do artº 1235º do C.Civ. «havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei», situação esta que ocorre sempre que aquele que ocupa/usa a coisa dispõe de título legítimo para o efeito.
Ser arrendatário do imóvel será um título legítimo para impedir a restituição.
Os Réus contestantes à excepção da Ré BR alegam que pagavam renda por ali terem as barracas, mas que em 1982 a pessoa que vinha receber as rendas deixou de o fazer.
Embora se limitem a daqui retirar que havia erro na forma de processo – excepção que já foi julgada improcedente em sede de saneador -, não estando o tribunal vinculado à alegação das partes em matéria de direito e estando subjacente à mesma a existência de um arrendamento e serem os Réus arrendatários o que expressamente se afirma, cabe apreciar esta matéria enquanto excepção ao efeito pretendido pela Autora – a restituição da coisa -.
De acordo com o artº 969º do C.Civ. diz-se locação o «contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar a outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.»
Quanto a esta matéria para além de que a pessoa que cobrava as rendas deixou de o fazer em 1982, nada mais se alega, nomeadamente quem arrendou e com base em que direito, qual o prazo e qual o valor da renda.
Também não alegam nem demonstram os Réus que hajam diligenciado pelo pagamento ou depósito das rendas.
Nos termos do nº 1 do artº 335º do C.Civ. cabia aos indicados Réus contestantes ter feito a prova dos factos constitutivos do direito que invocam – ter sido celebrado um contrato de arrendamento - o que não fazem nem tão pouco invocam os factos constitutivos do arrendamento.
Ora, dizer que alguém deixou de vir cobrar as rendas não é bastante nem suficiente para se poder concluir que ainda exista um contrato de arrendamento, sendo certo que, já decorreram 38 anos desde esse facto e nada mais se alega.
Logo, porque não se demonstra a existência de um contrato de arrendamento do qual sejam arrendatários os Réus contestantes, improcede a invocada excepção, nada obstando a que seja ordenada a restituição da coisa.
Nos termos do nº 2 do artº 1235º do C.Civ. havendo reconhecimento do direito real a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.
Ora, nada se tendo provado que obste à restituição, impõe-se julgar este pedido da Autora procedente.
Procedendo o pedido de restituição da Autora cabe apreciar do pedido indemnizatório formulado por esta, uma vez que, este pedido pressupõe que foi ilegitimamente impedida de usufruir de coisa sua.
Quanto a esta matéria prova alguma foi feita.
Embora resulte da lógica e das regras da experiência que enquanto os Réus não desocuparem o terreno a Autora está impedida de o poder destinar ao fim que entender, o certo é que, para se concluir pela existência de um prejuízo é preciso demonstrar-se que houve uma diminuição patrimonial ou perda de uma expectativa de ganho.
No caso dos autos, nada do que a Autora alegava sobre esta matéria se provou.
Destarte, sem necessidade de outras considerações apenas se pode concluir pela improcedência da acção quanto a esta matéria.
Da má fé dos Réus.
Relativamente ao pedido de condenação como litigantes de má-fé dos Réus contestantes, não se verificando os pressupostos da mesma previstos no artº 385º do CPC, não se justifica a sua condenação como tal, sendo de improceder este pedido.
Das custas.
Na acção principal a Autora instaura a acção contra 23 grupos de Réus vindo a obter vencimento apenas quanto 8 desses grupos.
Ora a actividade processual em muito se alterou face ao número de Réus indicados, sendo uma decorrência dela.
Por outro lado o pedido indemnizatório da Autora não obteve vencimento.
Assim sendo, considerando que a Ré BR que veio contestar disse apenas que nada tinha a ver com o prédio dos autos, não se tendo provado o contrário, e que dos demais Réus não contestantes apenas quanto à 2ª Ré se provou também ser ocupante de uma das barracas assim como os demais Réus contestantes, entendemos que, quanto à acção CV1-06-0040-CAO as custas devem ser suportadas em 8/16 pela Autora e em 1/16 a cargo de cada um dos 1º, 2º, 12º, 13º, 14º, 16º, 21º e 22º Réus.
No apenso D as custas devem ser integralmente suportadas pelos Autores.
Termos em que, pelos fundamentos expostos, decide-se:
- Julgar a acção instaurada pela Companhia de Investimento e Desenvolvimento A Limitada parcialmente procedente porque parcialmente provada e condenar os Réus B, O, C e mulher AL, AM e mulher AN, F, AR, AT, E, G e mulher BK, BQ e mulher BT e BU a reconhecerem a Autora como proprietária do prédio rústico, composto por terreno, com a área de 4.198 m2, sito na Povoação de XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº ..., a fls. … do Livro … e a entregá-lo em 6 meses à Autora livre e devoluto de pessoas e bens, absolvendo os demais Réus destes pedidos e todos os Réus dos remanescentes pedidos.
- Julgar a acção instaurada por C, D, E, F e G improcedente porque não provada e absolver a Ré do pedido.
Custas quanto à acção CV1-06-0040-CAO na proporção de 8/16 pela Autora e em 1/16 a cargo de cada um dos 1º, 2º, 12º, 13º, 14º, 16º, 21º e 22º Réus.
No apenso D custas a cargo dos respectivos Autores.
Registe e Notifique.
Notificadas da sentença as partes, vieram os Réus da acção nº CV1-06-0040-CAO B, O, C, AL, AM e Lei AN, F, AT, BB, E, G, BK, BQ, BT e BU recorrer dela para este TSI, tendo para o efeito formulado as seguintes conclusões e pedidos:
A. O presente recurso vem interposto do Acórdão de fls. 2041 e seguintes, que julga a acção parcialmente procedente e condena os aqui Recorrentes a reconhecerem a A. como proprietária do prédio em questão e, ainda, a entregar-lho em seis meses livre e devoluto.
B. Decisão, essa, que pelas razões que a seguir se explanam, não colhe a aquiescência dos, ora, Recorrentes.
C. O Tribunal a quo não explica de que facto provado retira a conclusão que os Recorrente bem sabiam não ter direito ao prédio, nem explica como conclui não ter julgado provado o animus possidendi.
D. Para o Tribunal a quo parece ser irrelevante terem sido os próprios Recorrentes a construir as suas Barracas, tal como julgou provado, por exemplo, em P, T, U,V, W, Y, BB, CC, DD, FF, GG, II, JJ, KK, LL, MM, OO, PP, QQ, RR, SS, UU, VV, WW.
E. Embora julgue provado todos estes factos, conclui em sentido diferente, ao qualifica-los, apenas, como corpus da posse.
F. O que não corresponde à verdade pois, nestes factos, pode inferir-se também animus possidendi.
G. Todas as testemunhas afirmaram que os respectivos familiares eram proprietários das barracas, como foi julgado provado pelo Tribunal.
H. Ora, não podemos pedir às testemunhas que distingam entre propriedade plena, domínio útil ou direito de concessão para arrendamento, conceitos de direito que escapam à larga maioria da população de Macau.
I. O Tribunal a quo julga, por um lado, provada pela prática reiterada, pacífica e pública dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade
J. Para, por outro, despachar os Recorrentes por não haverem provado o animus possidendi!
K. A este propósito, o Ac. do S.T.J. de 16/10/2008, no processo 08A2357 contradiz em toda a linha o decidido pelo Tribunal a quo: “A relação material com a coisa (isto é o corpus), em si mesma, não chega para caracterizar a posse, visto que é idêntica na posse e na detenção, daí que seja o elemento subjectivo (o animus) que fará a diferença, caracterizando a situação de facto como posse em nome próprio ou como detenção, consoante a intenção com que o detentor exerce o poder de facto sobre a coisa.
II - Havendo título, é por ele que se determina a natureza do animus e, portanto, se caracteriza a relação material com a coisa.
III - Pode falar-se em animus domini, enquanto: a) intenção de exercer o direito de propriedade (animus possidendi); b) intenção de exercer um direito real sobre coisa alheia, ou mesmo de um animus de exercer sobre a coisa um direito pessoal.
IV - Faltando o título, como acontece na aquisição unilateral, em que não existe qualquer colaboração do anterior possuidor na constituição da nova posse (cf. art. 1263.º do CC.), presume-se, em caso de dúvida, que o possuidor possui em nome próprio, ou, como se diz no art. 1252.º, n.º 2, do CC “... presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto...”.
V - No caso concreto, não tendo o A. provado o invocado empréstimo dos bens ao seu falecido irmão e à Ré, mulher deste, nem tendo esta provado a alegada doação desses bens, não há título a justificar a entrega dos mesmos e a caracterizar a detenção deles pela Ré e seu falecido marido.
VI - Não se podendo dizer que este detinham os bens em nome do Autor, antes se provando que agiram directamente sobre as coisas reivindicadas com animus dominii (o qual, aliás, também se podia presumir), conclui-se que adquiriram a posse dos bens que lhes foram entregues, unilateralmente, pela prática reiterada, pacífica e pública dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade - art. 1263.º, al. a), do CC.
VII - O direito de propriedade do A. sobre os bens entregues, não impedia a posse em nome próprio da Ré e falecido marido. Atenta a duração da posse pelo tempo necessário ao funcionamento da usucapião, deu-se a aquisição da propriedade dos bens pelos possuidores, assim se destruindo a propriedade do A. sobre esses bens.”
L. Assim, faltando o título, como acontece na aquisição unilateral, situação em que não existe qualquer colaboração do anterior possuidor na constituição da nova posse (Art. 1187.º al. a) do CC), é a própria lei que, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, como se diz no Art. 1176.º n.º 2 do CC “... presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto ...”
M. Os Recorrentes adquiriram a posse dos bens unilateralmente, agindo directamente sobre as coisas com animus domini (que no nosso entender se provou, mas que podia presumir-se).
N. Verifica-se in casu uma aquisição originária e unilateral da posse (Art. 1187.º al. a), não tendo por isso, qualquer sentido trazer à colação a figura da inversão do título, que é outro meio de adquirir a posse (Art. 1187.º al. e)
O. Ainda sobre a presunção do Art.1176.º n.º 2 (1252.º n.º 2 no Código de 1966), também o S.T.J., no Ac. de 2016-05-12 (Processo n.º 9950/11.8TBVNG.P1.S1) ensina que: “A presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252.º do CC é estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do doutrinado no AUJ do STJ, de 14/05/1996.”
P. O Tribunal a quo conseguiu decidir em tudo em sentido contrário ao apontado pelo S.T.J.
Q. O Tribunal a quo errou, também, ao indeferir o pedido de reconhecimento de aquisição por usucapião do Apenso D.
R. As razões foram as mesmas os erros foram também os mesmos do indeferimento da excepção da prescrição aquisitiva.
S. Mutatis mutandis damos aqui por reproduzidas as mesmas conclusões.
T. Devendo ter reconhecido não só o corpus, mas também o animus dominii dos Recorrentes.
U. Pois dúvidas não restam dos factos julgados como provados pelo Tribunal a quo é perfeitamente possível e razoável extrair a aquisição por parte, pelo menos, dos l.º, 3.º, 4.º e 5.º Autores do Apenso D, ora Recorrentes, a aquisição dos seus imóveis por usucapião.
V. Pelo que também aqui o Tribunal a quo andou mal.
W. Quanto ao direito de propriedade da A. que só por dever de patrocínio se concede, o Tribunal a quo seguiu o caminho mais fácil.
X. Ao não ver a usucapião resta-lhe a presunção decorrente da inscrição no registo a seu favor, nos termos do Art. 7.º do C.R.P.
Y. Neste caso o erro precede à presunção.
Z. Como a aquisição originária dos Recorrentes se deveria ter sobreposto à aquisição derivada da A.
AA. Ao não reconhecer essa aquisição originária a decisão do Tribunal a quo estava já prejudicada.
BB. Pelo que o Tribunal a quo não tinha salvação e persistir no erro de reconhecer a A. como titular do direito de propriedade sobre o terreno em causa.
CC. Também ao apreciar o alegado arrendamento dos Recorrentes o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não esteve nos seus melhores dias.
DD. A razão para o Tribunal a quo não reconhecer a usucapião dos Recorrentes, quer como excepção, quer como aquisição originária foi a falta do animus possidendi.
EE. Isto porque, no entender do Tribunal a quo havia um arrendamento que impedia os Recorrentes de agirem como proprietário.
FF. Assim, num primeiro momento não há usucapião há arrendamento.
GG. Depois, no segundo momento, não há arrendamento porque houve, apenas, tolerância ou inércia do titular do direito
HH. Teimando o Tribunal a quo em desconsiderar os factos que julgou provados mas, que se nega em reconhecer como usucapião.
II. Para o Tribunal a quo a tolerância ou inercia do titular do direito, por mais de 38 anos, valem mais do que os actos de construção, reparação, fruição, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, dos Recorrentes.
JJ. Assim, por um lado o Tribunal a quo retira aos Recorrentes o direito de aquisição originária por haver arrendamento e depois entrega o prédio à A., por não haver arrendamento...
KK. O Tribunal a quo não pode escolher haver para um efeito e não haver para outro.
LL. Sublinhe-se, ainda, que foram juntos aos autos vários recibos de pagamento de rendas.
MM. Pelo que o tribunal a quo não tem razão quando escreve que “... para além de que a pessoa que cobrava as rendas deixou de o fazer em 1982, nada mais se alega,…”
NN. Assim, se considerou o arrendamento válido para afastar a usucapião, não tinha outro caminho senão considerar o arrendamento válido para recusar a entrega imediata do prédio à A.
OO. O Tribunal a quo violou os Arts. 1176.º n.º 2, 1187.º al. a) e e), 1213.º, 1235.º n.º 2 do C.C.
Nestes termos,
Com o Mui Douto suprimento de Vossas Ex.ªs, requer-se seja considerado procedente, por provado, o presente recurso e, em consequência, seja revogado o Acórdão, que julga a acção parcialmente procedente e condena os aqui Recorrentes a reconhecerem a A. como proprietária do prédio em questão e, ainda, a entregar-lho em seis meses livre e devoluto e substituído por outro que acolha as conclusões aqui formuladas.
Assim
fazendo-se
a costumada
JUSTIÇA!
Notificada a A, Lda., contra-alegou pugnando pelo não provimento do recurso.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Tal como fizemos notar no relatório do presente Acórdão, foi interposto e admitido um recurso interlocutório pela A, Lda. da decisão que julgou improcedente a excepção de litispendência por ela deduzida em sede de contestação nos autos de apenso nº CV3-13-0044-CAO.
Não tendo a A, Lda. interposto recurso da sentença final de primeira instância de ambas as acções, o recurso interlocutório não é apreciado em primeiro lugar face ao disposto no artº 628º/2 do CPC, à luz do qual os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada.
Face ao disposto nesse artº 628º/2 do CPC, devemos debruçar-nos sobre o recurso final primeiro.
Então vejamos.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Não há questões que temos de conhecer ex oficio.
De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso, as questões suscitadas pelos ora recorrentes podem ser reduzidas a uma única questão de saber, se, perante a materialidade fáctica, não impugnada nos termos do disposto no artº 599º do CPC, podemos inferir dos modos de actuação ou ocupação por parte deles sobre as barracas e os espaços anexos a intenção de domínio, isto é, o animus possidendi.
Para o Tribunal a quo, tendo os Réus (ora recorrentes) construído e usado as barracas primeiro através de um eventual arrendamento do espaço e após por mera tolerância do titular do direito, não tendo havido inversão do titulo da posse, bem sabendo que ao terreno onde estão implantadas as barracas não têm direito algum e não havendo, nem se provando o “animus possidendi”, impõe-se concluir pela improcedência da invocada excepção da prescrição aquisitiva e do pedido de aquisição por usucapião.
Por sua vez, defendem os recorrentes que, tendo sido provada pela prática reiterada, pacífica e pública por parte dos recorrentes dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, deve concluir pela existência do animus possidendi.
Antes de mais, cabe notar que, independentemente da verificação ou não da inversão do título de posse, faltando o animus possidendi por parte dos Réus, improcedem logo os pedidos de aquisição por via de usucapião da propriedade dos terrenos em que se alicerçaram as barracas e dos espaços anexos.
Perante a matéria de facto fixada na primeira instância, temos assente que, em relação aos recorrentes e/ou aos seus familiares já falecidos, eles têm habitado e/ou habitaram nas barracas em causa, praticando quanto às mesmas aos actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, ……. nelas fizeram as obras de reparação, à vista de toda a gente e sem interrupções e sem oposição por parte de quem quer seja.
Todavia, para nós, por razões que iremos expor infra, isso não tem a virtude de nos levar a acolher a tese defendida pelos recorrentes.
Pois, notamos que, em rigor, as descrições inseridas nesta matéria dita de facto não podem ser tidas como descrições fácticas, susceptíveis de ser demonstradas pela prova testemunhal, em que se apoiaram os recorrentes, nomeadamente as expressões actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, e à vista de toda a gente, uma vez que estas descrições comportam conceitos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos e portanto devem ser tidas por não escritas – artº 549º/4 do CPC.
Como se sabe, ao redigirem os articulados, não poucas vezes, as partes utilizam expressões contendo elementos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos, e descrições qualificativas de factos concretos que, quando não concretizadas pelos factos materiais, não podem ser objecto da prova.
Assim, tanto as partes como o Tribunal, devem distinguir bem a matéria de facto da de direito.
Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…… Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207, e 209.
Todavia, há que reconhecer uma realidade: hoje em dia, muitas expressões originariamente utilizadas na doutrina jurídica ou na lei como elementos normativos já invadiram na terminologia largamente usada na nossa comunicação quotidiana, tais como escritura pública, estado civil de solteiro ou casado, cheques, livrança, arrendamento, posse, detenção, compra e venda, adopção, casamento.
Assim, não é raro que aceitamos habilmente, senão toleramos, a inserção deste tipo de expressões como parte integrante do thema probandum, de modo a permitir que o teor dessas expressões possa ser directamente demonstrado ou inferido da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados.
Todavia, nem sempre isso é viável e tolerável.
Na verdade, pelo contexto em que são inseridas, essas expressões não podem ser tidas como meramente fácticas, isso acontece, por exemplo, quando se discuta se estamos perante uma escritura pública, um cheque, uma livrança, um arrendamento, a posse ou a detenção de uma coisa, um contrato de compra e venda, um acto jurídico de adopção, um laço matrimonial, cujas validade e existência jurídica constituem em si já juízos valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto da simples prova.
Assim sendo, consoante a questão jurídica a discutir e a matéria controvertida tal como configuradas pelas partes nos seus articulados, o Juiz que se encarrega de elaborar o saneador deve ter muito cuidado na selecção da matéria para o questionário, especialmente na qualificação de expressões utilizadas pelas partes como matéria susceptível ou não de constituir objecto da prova.
É uma tarefa difícil, pois nem sempre é fácil a qualificação de uma expressão como matéria de facto ou como matéria de direito.
Esta tarefa do Juiz torna-se particularmente difícil quando as partes se socorrerem da prova testemunhal, na medida em que a representação de um determinado acontecimento que as testemunhas têm no seu mundo pessoal de pensamento pode não corresponder à avaliação jurídica desse acontecimento.
E mais difícil se torna a tal tarefa quando as partes misturaram nos seus articulados a matéria de facto com a matéria de direito, ou utilizaram abundantes expressões valorativas ou conclusivas, destituídas do suporte de factos materiais, e conceitos genéricos e vagos, não acompanhados de factos puros que os preenchem.
É justamente esta última situação com que estamos confrontados.
In casu, a questão essencial à boa solução jurídica da lide consiste em saber, se no plano jurídico, os recorrentes têm agido como se fossem proprietários, ou seja, com animus possidendi, sobre os terrenos em que se encontram construídas as barracas que têm ocupado ou os seus familiares falecidos ocupavam e os seus espaços anexos.
As expressões tais como a prática pelos recorrentes dos actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, à vista de toda a gente, sem que tivessem sido concretizadas de outros factos demonstrativos da intenção de domínio por parte dos recorrentes, não podem deixar de ser tidas por não escritas nos termos impostos pelo artº 549º/4 do CPC.
Mesmo que aceitássemos as tais expressões, seria de concluir que de actos necessários à exploração, melhoramento, conservação e fruição se não pode inferir a intenção de domínio, uma vez que tais actos não são exclusivos da autoria de um proprietário, pois um arrendatário pode explorar, melhorar, conservar e fruir um bem que tomou de arrendamento.
Isto é, mesmo que aceitássemos tais expressões serem capazes de demonstrar o elemento empírico e físico sobre a coisa, não se poderia entender que há posse por parte dos Réus, por não terem sido alegadas nem provadas outras actuações demonstrativas da vontade de domínio, ou seja, do animus possidendi na mente dos Réus.
Chegamos aqui, já estamos em condições de negar provimento ao recurso interposto pelos Réus.
Ex abundantia, cabe tecer algumas considerações quanto aos argumentos críticos em que os recorrentes se fizeram apoiar ao formular censura à sentença recorrida, não obstante o defendido na doutrina do saudoso Prof. Alberto dos Reis de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CPC anotado, Volume V – artºs 658º a 720º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Disseram os recorrentes que todas as testemunhas afirmaram que os respectivos familiares eram proprietários das barracas, como foi julgado provado pelo Tribunal.
Não podendo, todavia, as tais afirmações ser objecto da prova.
Ora, o conceito de proprietário que as testemunhas têm no seu mundo pessoal de pensamento pode não corresponder à qualificação jurídica de um sujeito como proprietário.
Assim, às testemunhas não pode ser feita a pergunta de que se alguém é proprietário de uma coisa.
E mesmo que tivesse sido feita tal pergunta e as respostas fossem afirmativas, as suas declarações não poderiam deixar de ser destituídas de qualquer valor para a convicção do Tribunal.
Por outro lado, alegaram os recorrentes em algures nas conclusões de recurso que o Tribunal a quo julga, por um lado, provada pela prática reiterada, pacífica e pública dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, para, por outro, despachar os Recorrentes por não haverem provado o animus possidendi – conclusões i) e j);
Não é verdade.
Tal como vimos supra, só consta da matéria de facto que em relação aos recorrentes ou aos seus familiares já falecidos, eles têm habitado ou habitaram nas barracas em causa, praticando quanto às mesmas aos actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, ……. nelas fizeram as obras de reparação, à vista de toda a gente e sem interrupções e sem oposição por parte de quem quer seja.
Da parte alguma podemos inferir a prática pelos recorrentes dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Finalmente, os recorrentes alegaram que:
CC. Também ao apreciar o alegado arrendamento dos Recorrentes o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não esteve nos seus melhores dias.
DD. A razão para o Tribunal a quo não reconhecer a usucapião dos Recorrentes, quer como excepção, quer como aquisição originária foi a falta do animus possidendi.
EE. Isto porque, no entender do Tribunal a quo havia um arrendamento que impedia os Recorrentes de agirem como proprietário.
FF. Assim, num primeiro momento não há usucapião há arrendamento.
GG. Depois, no segundo momento, não há arrendamento porque houve, apenas, tolerância ou inércia do titular do direito
HH. Teimando o Tribunal a quo em desconsiderar os factos que julgou provados mas, que se nega em reconhecer como usucapião.
II. Para o Tribunal a quo a tolerância ou inercia do titular do direito, por mais de 38 anos, valem mais do que os actos de construção, reparação, fruição, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, dos Recorrentes.
JJ. Assim, por um lado o Tribunal a quo retira aos Recorrentes o direito de aquisição originária por haver arrendamento e depois entrega o prédio à A., por não haver arrendamento...
KK. O Tribunal a quo não pode escolher haver para um efeito e não haver para outro.
Ao que parece, estão a acusar o Tribunal a quo de ter feito afirmações contraditórias e aplicar um duplo critério quanto à existência de um arrendamento na fundamentação de direito da sentença.
Não são de acolher tais argumentos.
Ora, o Tribunal a quo diz, no que respeita ao alegado arrendamento por parte dos Réus (invocado pelos Réus como título legítimo para impedir a restituição), que
Quanto a esta matéria para além de que a pessoa que cobrava as rendas deixou de o fazer em 1982, nada mais se alega, nomeadamente quem arrendou e com base em que direito, qual o prazo e qual o valor da renda.
Também não alegam nem demonstram os Réus que hajam diligenciado pelo pagamento ou depósito das rendas.
Nos termos do nº 1 do artº 335º do C.Civ. cabia aos indicados Réus contestantes ter feito a prova dos factos constitutivos do direito que invocam – ter sido celebrado um contrato de arrendamento - o que não fazem nem tão pouco invocam os factos constitutivos do arrendamento.
Ora, dizer que alguém deixou de vir cobrar as rendas não é bastante nem suficiente para se poder concluir que ainda exista um contrato de arrendamento, sendo certo que, já decorreram 38 anos desde esse facto e nada mais se alega.
Logo, porque não se demonstra a existência de um contrato de arrendamento do qual sejam arrendatários os Réus contestantes, improcede a invocada excepção, nada obstando a que seja ordenada a restituição da coisa.
Ai, o Tribunal a quo concluiu pela inexistência do arrendamento sob ponto de vista jurídico.
O que em nada contradiz aquilo que o Tribunal a quo afirmou em sede de apreciação da invocada inversão do título da posse, onde, em vez de averiguar a existência ou validade jurídica de um arrendamento, mas apenas procura saber se os Réus têm pautado a sua conduta de acordo com um arrendamento existente, mesmo putativo, na sua mente, pois, não é de estranhar que, para os leigos de direito, não interesse muito saber se há um arrendamento juridicamente existente ou válido.
Portanto, não há contradição nem aplicação de um duplo critério, dado que uma coisa é o arrendamento como tal reputado pelos Réus na sua mente, outra coisa é um arrendamento face ao direito.
Na verdade, o elemento volitivo na mente de uma pessoa de possuir ou deter um bem sempre pressupõe a consciência por ele quanto à relação entre ela e o bem, v. g., estar a agir em relação ao bem como proprietário ou como mero arrendatário, pois a pessoa deve direccionar a sua vontade (de possuir ou deter) em função e na qualidade do titular do direito que reputa a ela pertencente, isto é, em função da consciência quanto à pertença do bem.
Assim, o sujeito que se convence de ser arrendatário age como mero detentor ou titular do mero direito de usar e fruir o bem, ao passo que só um sujeito que tem a consciência de ser proprietário ou quer passar a tornar-se proprietário contra o proprietário pode pautar a sua conduta enquanto titular do direito pleno de propriedade.
Portanto, não há contradição nem adopção do duplo critério quando por um lado o Tribunal a quo não reconhecer aos ora recorrentes o direito de aquisição originária por haver arrendamento putativo, e por outro não aceitar o tal arrendamento, por não ser juridicamente existente ou válido, como causa legítima impeditiva da restituição do bem à ora recorrida.
Improcedem assim todas essas críticas.
Em conclusão:
1. As expressões actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição, se não concretizadas de factos materiais concretos, devem ser tidas por não escritas – artº 549º/4 do CPC, uma vez que estas descrições comportam conceitos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto de prova.
2. O animus possidendi invocado na acção de usucapião não pode ser demonstrado e inferido directamente da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados, mas sim deve inferir-se da matéria de facto assente contendo actos materiais concretos demonstrativos da intenção de domínio.
3. Não tendo sido comprovada a intenção de domínio sobre um bem, não é de proceder o pedido de aquisição da propriedade do bem por usucapião.
Confirmada a sentença de mérito, não é de apreciar o recurso interlocutório interposto pela recorrida A, Lda. – artº 628º/2 do CPC.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
* não apreciar o recurso interlocutório interposto pela A, Lda. nos autos de CV3-13-0044-CAO; e
* negar provimento ao recurso interposto pelos Réus nos CV1-06-0040-CAO, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes da sentença final.
Registe e notifique.
RAEM, 20JAN2022
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
1 Nome corrigido na acta a fls. 1987.
2 Veja-se José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais pág. 86 a 94, Coimbra Editora, 1987.
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Ac. 771/2020-1