Processo nº 144/2021(I) Data: 28.01.2022
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Aclaração de acórdão; (art. 572°, al. a) do C.P.C.M.).
Obscuridade.
Ambiguidade.
SUMÁRIO
1. A “aclaração” de uma decisão apenas se justifica quando a mesma padeça de “obscuridade” – ou seja “ininteligível”, o que se verifica quando aquela apresente aspectos de significação inextrincável, em termos de não ser possível apurar qual o seu sentido e o que se quis efectivamente dizer – ou se mostre “ambígua” e passível de se lhe atribuir, total ou parcialmente, dois (ou mais) sentidos.
2. Não se pode confundir uma “discordância” (em relação ao decidido) com uma (eventual) “obscuridade”, a fim de, “camufladamente”, se viabilizar um revisitar e uma repetida colocação de questões (anteriormente) já decididas, e que são, (como no caso sucede), irrecorríveis, tentando-se, desta forma, (como que) criar um “novo grau de recurso”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 144/2021(I)
(Autos de recurso civil e laboral)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Nos presentes autos, e em sessão e conferência que teve lugar no passado dia 17.12.2021, proferiu esta Instância o seguinte acórdão:
“Relatório
1. “A”, (“甲”), A., melhor identificada nos autos, intentou contra os “MEMBROS DA ADMINISTRAÇÃO DO [EDIFÍCIO(1)]”, (“[大廈(1)]管理機關成員”), procedimento cautelar especificado de “restituição provisória da posse” relativamente aos lugares – ou parques – de estacionamento do [Edifício(1)], melhor identificado nos autos; (cfr., fls. 2 a 21 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Em apreciação da pretensão apresentada proferiu-se decisão com o teor seguinte:
“A autora A, melhor identificada nos autos, veio intentar o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse dos lugares de estacionamento do [Edifício(1)]. Segundo a requerente, ela possui a posse dos respectivos lugares de estacionamento e sempre os tem gerido e utilizado desde a conclusão da construção do referido prédio em 1989. No entanto, em 3 de Janeiro de 2021, foi esbulhada violentamente da sua posse pelos membros da Administração do edifício (ora requeridos). Portanto, veio requerer a restituição provisória de posse através deste procedimento cautelar.
Em primeiro lugar, para confirmar a susceptibilidade da autora requerer a restituição provisória de posse, temos de saber se ele sempre exerceu a posse sobre os falados lugares de estacionamento desde a inauguração do [Edifício(1)].
No seu requerimento inicial, a autora argumenta que os lugares de estacionamento são parte comum do prédio em causa, e que desde a sua inauguração em 1989 sempre considerou todo o prédio, incluindo os lugares de estacionamento, como seu bem próprio.
Ainda segundo a requerente, após a constituição da propriedade horizontal do prédio, vendeu sucessivamente as 788 fracções autónomas deste através de celebração de escritura de compra e venda.
A questão prévia de que cumpre conhecer agora consiste em saber se os lugares de estacionamento em causa, ou seja, parte comum do edifício, continuaram a pertencer à autora depois de ela ter vendido as 788 fracções autónomas do condomínio.
Dispõe o artigo 1323.º, n.º 1 do Código Civil, “1. Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do condomínio.”
Portanto, os lugares de estacionamento, enquanto parte comum do condomínio, são possuídos em comum pelos condóminos.
A doutrina entende que as partes comuns dum condomínio são na verdade partes de uso comum, mas não verdadeira “compropriedade”. O professor Mota Pinta até as caracterizou como “compropriedade forçada”1. Quer dizer que são diferentes da compropriedade em sentido geral2, insusceptíveis de divisão e de renúncia.
O prédio foi inaugurado em 1989. É verdade que, antes de a requerente começar a vender as fracções autónomas de propriedade horizontal, o direito sobre os lugares de estacionamento (parte comum do edifício) pertencia ao prédio no seu conjunto. Visto que a requerente era na altura a proprietária do prédio, é certamente correcto dizer que o estacionamento (enquanto parte comum do edifício) pertencia a ela.
No entanto, à medida que a requerente gradualmente vendia as 788 fracções autónomas do referido condomínio a terceiros, estes condóminos também passaram a ser comproprietários da parte comum em causa, ou seja, dos lugares de estacionamento. Do ponto de vista jurídico, eles passaram a ter em comum, a partir da aquisição das fracções autónomas do condomínio, o direito de uso sobre a referida parte comum. Por outras palavas, a requerente, ao celebrar escrituras de compra e venda com os condóminos, não só lhes alienou o direito de propriedade sobre as fracções autónomas do prédio, como ainda lhes transmitiu, proporcionalmente, o direito sobre aquela parte comum que servia de estacionamento. Devido à sua natureza de compropriedade imperativa, as partes comuns não podem existir independentemente do condomínio, a não ser que haja deliberação tomada pela unanimidade de todos os condóminos do condomínio no sentido de alterar, mediante a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal e do título das fracções autónomas do condomínio, a natureza do título do estacionamento que é parte comum do prédio (artigo 1321.º do CC). No entanto, não era este o caso dos autos.
A posse não pode ser exercida sobre coisas insusceptíveis de existência autónoma3. Portanto, os lugares de estacionamento em análise, enquanto parte comum do prédio, pertencem a cada condómino em compropriedade imperativa, e não são susceptíveis de posse pela requerente.
A requerente tem sido responsável pelo funcionamento do estacionamento em causa ao longo dos anos. A sua conduta só pode ser considerada como “detenção” dessa parte comum, uma vez que, a partir da data da celebração das escrituras de compra e venda das respectivas fracções autónomas, ela deixou de ter o aminus possidendi sobre a referida parte comum devido ao efeito de transmissão do direito de propriedade resultante das vendas.
Dessarte, por a requerente deixar de ter a posse dos lugares de estacionamento em causa a partir da venda das fracções autónomas do prédio, a acção de restituição provisoria de posse por ela instaurada deve ser indeferida liminarmente por manifesta improcedência.
Custas pela requerente”; (cfr., fls. 574 a 575).
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Inconformada, a requerente recorreu para o Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 582 a 587).
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Pronunciando-se sobre o dito recurso proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 27.07.2021, (Proc. n.° 595/2021), onde consignou o seguinte:
“Nos termos do disposto no artigo 589.º do CPC, o recurso tem como objecto as questões especificadas nas conclusões da alegação e as de conhecimento oficioso do tribunal de recurso.
No recurso em apreço, não há qualquer questão de conhecimento oficioso deste Tribunal.
De acordo com a alegação do recurso, a única questão suscitada pela recorrente reside em saber se os factos por ela invocados constituem a posse sobre a parte comum do prédio em causa.
Quanto à questão de se saber se a requerente tem posse sobre os lugares de estacionamento que constituem parte comum do [Edifício(1)] e se essa posse deve ser defendida por meio de providência cautelar, a primeira instância já fez julgamento e tomou decisão, com cujos fundamentos concordamos inteiramente. Portanto, nos termos do disposto no artigo 631.º, n.º 5 do CPC, este Tribunal decide negar provimento ao recurso interposto remetendo para os fundamentos invocados na sentença recorrida”; (cfr., fls. 719 a 721-v).
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Ainda inconformada, vem a requerente recorrer para este Tribunal de Última Instância, alegando para, a final, produzir as seguintes conclusões:
“1. As duas instâncias recorridas indeferiram liminarmente o procedimento cautelar de restituição provisória de posse intentado pela recorrente sobre os lugares de estacionamento do [Edifício(1)], com fundamento de que os lugares de estacionamento não são susceptíveis de ser objecto de posse por ser parte comum do condomínio, e que a recorrente não tem animus possidendi. Salvo o devido respeito, a recorrente discorda do entendimento jurídico seguido pelos dois tribunais.
2. A posse, distinta do direito de propriedade e dos outros direitos reais de gozo, é uma situação jurídica importante legalmente tutelada.
3. À luz das análises efectuadas pelos académicos chineses Wang Liming (王利明) e Tan Yuanchun (覃遠春) e académicos portugueses Luciana Raquel Ribau Lourenço e Durval Ferreira em relação ao regime da defesa da posse, o estabelecimento deste instituto visa garantir que aquele com o poder de facto sobre uma coisa possa continuar a gozar e dispor dela antes do estabelecimento do direito, de forma a manter o statu quo e assegurar a harmonia e estabilidade social.
4. O objecto da posse pode ser diferente do direito de propriedade ou dos outros direitos reais de gozo. Se uma pessoa só dispuser de uma parte da coisa, o âmbito de protecção da posse também deve estender-se a essa parte. Ou seja, o objecto da posse não só se limita a uma coisa no seu conjunto, mas também pode ser parte desta.
5. No que tange à posse de partes da coisa, como sustenta o Professor alemão Savingy in «Das Recht des Besitzes», uma determinada parte da coisa é susceptível de posse se por si só puder constituir um conjunto especial; no caso de a coisa não ser verdadeiramente dividida em partes, a posse dessa parte hipotética também pode ser adquirida caso o seu âmbito seja explicitamente delimitado.
6. Tan Yuanchun (覃遠春) ainda analisou as coisas susceptíveis de ser objecto de posse no plano do direito comparado. No seu entender, tanto a coisa na sua totalidade como as suas partes constitutivas (incluindo os componentes importantes e não importantes) podem ser objecto de posse contanto que sejam susceptíveis de um domínio autónomo.
7. No caso sub judice, não obstante a certidão do registo predial e o título constitutivo do [Edifício(1)] mostrarem que os lugares de estacionamento são parte comum do prédio, é de salientar que cada lugar de estacionamento pode ser utilizado autonomamente, sendo, pois, susceptível de ser objecto de posse.
8. As legislações, antigas e actual, reguladoras do regime de propriedade horizontal em Macau são: o Código Civil Português (CCP) de 1966, a Lei n.º 25/96/M de 1 de Outubro de 1996 e o vigente Código Civil de Macau de 1999.
9. Quando a construção do [Edifício(1)] teve início na década de 1980 não existia qualquer regime jurídico que permitisse o registo autónomo do direito de propriedade dos lugares de estacionamento.
10. O que era gravemente desconforme com a realidade social da altura, e resultou no surgimento das transacções de “lugares de estacionamento sem título de propriedade”, nas quais ambas as partes contraentes consideravam que os lugares de estacionamento eram susceptíveis de propriedade autónoma mesmo que os mesmos tivessem sido registados como parte comum.
11. Muitos edifícios em Macau – entre os quais o Edifício [Edifício(2)], o Edifício [Edifício(3)] e o Edifícios [Edifício(4)] – foram construídos com lugares de estacionamento que não se encontravam registados como fracções autónomas (vulgarmente conhecidos por “lugares de estacionamento sem título de propriedade”).
12. A então Assembleia Legislativa, obviamente ciente da existência desse problema e tentando resolvê-lo mediante legislação, deu início à discussão da Lei n.º 25/96/M (regime jurídico de propriedade horizontal).
13. Tal legislação inovadora resolveu três desafios relativamente ao direito de propriedade dos lugares de estacionamento. No entanto, sobre algumas partes comuns destinadas ao estacionamento automóvel não incidiu o direito de propriedade autónomo, pela única razão de tal aumentar a percentagem das fracções.
14. Daí se vê que o que preocupava os legisladores na consideração da propriedade das partes comuns dos prédios já construídos não era a susceptibilidade de ser objecto da propriedade, mas antes os problemas relativos ao aumento da percentagem das fracções.
15. Os lugares de estacionamento são, na sua essência, um espaço, mas não uma coisa física. Pelo que é necessário recorrer aos meios de delimitação e demarcação para lhes atribuir o sentido de uso.
16. O n.º 2 da Lei n.º 25/96/M regulava os espaços susceptíveis de ser destinados a estacionamento automóvel.
17. Como entendeu o TUI no processo n.º 181/2020, o espaço utilizado para estacionamento automóvel mas não identificado como fracção autónoma é susceptível de ser objecto da posse.
18. Se for adoptado o entendimento das duas instâncias recorridas sobre o objecto da posse, os titulares do direito aos “lugares de estacionamento sem título de propriedade” actualmente existentes em Macau não serão legalmente protegidos na qualidade de possuidores pese embora a sua utilização permanente dos mesmos enquanto proprietários. Isso perturbará a ordem jurídica e causará desarmonia e instabilidade sociais.
19. Como reiterou a recorrente no requerimento e na alegação recursiva para o TSI, os lugares de estacionamento em causa foram suficientemente delimitados e numerados, com saída própria para a via publica. Portanto, os mesmos reúnem as condições para ser objecto do direito de propriedade autónomo.
20. Daí resulta que a parte comum em causa é susceptível de ser objecto do direito de propriedade.
21. Conforme o entendimento dos Professores Sandra Passinhas e Moitinho de Almeida, e o plasmado no acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 2010, Processo n.º 1727/07.1TVLSB.Ll-6, o direito de propriedade duma coisa é susceptível de aquisição por usucapião contanto que não seja parte comum imperativa do condomínio.
22. A usucapião pressupõe necessariamente a posse. Por isso, qualquer coisa que não é parte comum imperativa do condomínio pode ser objecto de posse.
23. A posse reclamada pela recorrente pode existir porque: os lugares de estacionamento têm sido caracterizados, quer pelas legislações antigas quer pela lei vigente, como parte comum não imperativa; e reúnem as condições objectivas para ser objecto do direito de propriedade autónomo.
24. A recorrente ainda entende que as duas instâncias anteriores decidiram mal ao considerar que a recorrente perdeu o animus possidendi e a posse com a venda dos lugares de estacionamento.
25. Tanto o TUI como o TSI definiram o animus possidendi como a intenção do possuidor de agir como titular do direito de propriedade da coisa.
26. A existência do animus depende dos factos concretos poder ou não reflectir a situação psicológica do interessado. Para isso, é necessário ter em conta globalmente todos os elementos objectivos no momento da posse, particularmente as actuações praticadas e o contexto temporal, uma vez que determinados comportamentos, quando colocados num contexto temporal e social específico, pode significar uma certa situação psicológica.
27. No seu requerimento a recorrente especifica os actos concretos por ela praticados para provar que ao utilizar e administrar os lugares de estacionamento em escrutínio age como titular do direito de propriedade.
28. As duas instâncias ao negar o animus da recorrente fundamentaram-se meramente numa determinada situação psicológica individual inferida através da aplicação das normas legais aos actos concretos, ignorando todavia completamente a implicação importante que determinados actos podiam ter num contexto temporal específico.
29. Na ausência de adequado regulamento jurídico, os construtores começaram a vender “lugares de estacionamento sem títulos de propriedade” aos indivíduos compradores, o que talvez fosse uma das razões que motivaram a alteração introduzida pela Lei n.º 25/96/M, que permitia o registo dos lugares de estacionamento como fracções autónomas.
30. Portanto, as normas e o raciocínio doutrinal por si sós não bastam para se concluir que a recorrente não age na convicção de ser proprietária dos lugares de estacionamento por os ter vendido “sem título de propriedade” na década de 80.
31. O facto de a recorrente ter vendido os lugares de estacionamento através do modo de transacção existente nessa altura já reflecte o seu intuito de actuar como proprietária dos mesmos.
32. Os referidos lugares de estacionamento são objectiva e suficientemente susceptíveis de distinção. De resto, apesar de a recorrente ter vendido 12 deles, o seu poder exclusivo sobre todos os outros lugares de estacionamento do mesmo prédio ainda não atingiu o seu termo, pelo que da referida venda não resultou a perda da sua posse sobre os mais de 200 lugares de estacionamento restantes.
33. Por outro lado, a transmissão do direito de propriedade não se confunde com a da posse. A posse só se extingue juntamente com a transmissão do direito de propriedade quando o possuidor também expresse a vontade de transmissão e perda da mesma.
34. Quanto aos lugares de estacionamento em causa, a recorrente não os entregou ao uso dos compradores com celebração das escrituras de compra e venda, mas continuou a os utilizar e gerir de forma exclusiva, sem nunca demonstrar a intenção de perder/abandonar/ceder a posse. Por isso, a celebração das escrituras de compra e venda das fracções autónomas não fez com que a recorrente perdesse a posse sobre os lugares de estacionamento.
35. A recorrente é a concessionária do terreno do [Edifício(1)]. Após a inauguração do prédio, não entregou os lugares de estacionamento ao uso dos adquirentes das fracções autónomas habitacionais, mas ante continuou a os utilizar e administrar exclusivamente. Portanto, nos termos do artigo 1181.º, n.º 2 do CC, deve presumir-se a posse continuada da recorrente sobre os lugares de estacionamento a partir da conclusão da construção do prédio.
36. Por conseguinte, o despacho de indeferimento liminar exarado pelo Tribunal recorrido deve ser revogado por violação da lei aplicada(sic), devendo os presentes autos prosseguir os seus ulteriores termos”; (cfr., fls. 733 a 746 e 14 a 49 do Apenso).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
2. O presente recurso tem como objecto o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Base que indeferiu liminarmente a pela recorrente peticionada “restituição provisória da posse” dos lugares – ou parques – de estacionamento do [Edifício(1)], (devidamente identificado nos autos).
Vejamos que solução adoptar.
Pois bem, os Tribunais existem para afirmar e proteger os direitos por Lei reconhecidos às pessoas.
Porém, esta função, para ser eficaz, implica muitas vezes a rápida defesa de direitos ou interesses que, com a habitual e normal demora dos processos, poderiam ficar – irremediavelmente – prejudicados.
Daí se consagrar, logo no art. 1°, n.° 2, do C.P.C.M. que:
“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.
Infere-se assim – da parte final – do normativo em questão que a (principal) função das (aí referidas) “providências” é de evitar a perda da utilidade do efeito jurídico-prático pretendido pelo autor entre o momento em que este recorre ao Tribunal e o momento em que é proferida decisão que lhe reconhece a existência do seu direito.
No que diz respeito às suas características, comum é dizer-se que estas “medidas” são “provisórias”, pois que visam a composição provisória do litígio até à decisão final na acção principal, sendo também “instrumentais”, porque dependentes do processo principal, e “sumárias”, dada a simplicidade no seu processamento.
Atentas estas “características” de “provisoriedade”, “instrumentalidade”, e “sumariedade”, considerava Manuel de Andrade que “através do mecanismo próprio destes procedimentos, pretendeu a lei seguir a linha média entre dois interesses: o de uma justiça pronta, mas com o risco de ser precipitada; e o de uma justiça cauta e ponderada, mas com o risco de ser platónica por não chegar a tempo”; (in “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 10).
Estes “procedimentos” são “especificados”, se especialmente previstos na Lei, porém, sendo a realidade da vida complexa, e não se podendo abarcar todas as situações com “risco de lesão”, prevêem-se também procedimentos “não especificados”, (inominados ou comuns).
No que toca à sua “finalidade”, podem ser agrupados em duas categorias distintas: os “conservatórios” e “antecipatórios”, consoante visem manter inalterada a situação existente ou prevenir um dano, obtendo-se, adiantadamente, a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício; (sobre o tema, vd., A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 624, Jorge Augusto Pais de Amaral in, “Direito Processual Civil”, pág. 32, e A. Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, pág. 166 e segs.).
Atenta a providência pela ora recorrente pretendida e agora em questão – e que é especificada e antecipatória – vejamos.
Preceitua o art. 338° do C.P.C.M., (respeitante à “Restituição provisória de posse”), que:
“No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
São assim considerados como pressupostos da restituição provisória da posse:
- a existência de posse, (na concepção objectiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção);
- seguida de esbulho;
- com violência; (cfr., v.g., Menezes Cordeiro in, “Direitos Reais”, Vol. II, pág. 833).
O “esbulho” corresponde a um acto pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada.
Há esbulho, para efeito de aplicação do art. 338° do C.P.C.M., sempre que alguém se vê privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar a fazer; (cfr., v.g., Manuel Rodrigues in, “A Posse”, pág. 363, e Moitinho de Almeida in, “Restituição da Posse e Ocupações de Imóveis”, pág. 100).
No esbulho, o terceiro não permite que o possuidor actue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.
Quanto à “violência”, e como já Alberto dos Reis defendia: “tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor, (…) a violência pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coacção moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública”; (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 670, e Lebre de Freitas in, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 78, onde considera que “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador”).
Assim, será de considerar violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo esbulhador; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 27.11.2020, Proc. n.° 181/2020).
Aqui chegados, tendo presente o que se consignou, e ponderando na(s) decisão(ões) recorrida(s), assim como no que pela ora recorrente foi, e vem alegado, cremos que motivos não há para se lhe reconhecer razão, muito não se mostrando necessário expor para se demonstrar este nosso ponto de vista.
Com efeito – salientando-se que a situação dos presentes autos não se apresenta idêntica, ou sequer próxima, da que em causa estava no já referido Proc. n.° 181/2020, pois que, aí, (e independentemente do demais), pelo A. era alegada uma efectiva e prolongada utilização do “lugar de estacionamento” objecto da requerida providência – e notando que é a própria recorrente que diz que vendeu as fracções autónomas do referido edifício, e que os agora “reclamados” lugares – ou parques – de estacionamento são “parte comum” do mesmo prédio, evidente se nos apresenta que a sua pretensão (e argumentação) não prospera.
Vejamos.
No Capítulo respeitante à matéria da “Propriedade horizontal”, e como seu “Princípio geral”, prescreve o art. 1313° do C.C.M. que:
“Podem pertencer a proprietários diversos, em regime de propriedade horizontal, as fracções que integram um condomínio, em condições de constituírem unidades independentes”.
Por sua vez, sob a epígrafe “Objecto da propriedade horizontal” preceitua também o art. 1315° que:
“1. Podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública.
2. Podem ainda constituir fracções autónomas os lugares de estacionamento, desde que o respectivo espaço seja suficientemente delimitado e tenha saída própria para uma parte comum do condomínio ou para a via pública, mesmo que esses lugares não constituam unidades distintas e isoladas entre si.
3. Entende-se por espaço suficientemente delimitado a área individualizada pela demarcação, por forma indelével, dos seus limites de contiguidade, com afixação de numeração ou designação própria e, quando seja o caso, a indicação da designação da fracção autónoma em que esteja integrada, ou a cujo uso exclusivo se ache afecto”.
Ora, in casu, (para além de, como se referiu, ser a própria recorrente a considerar e reconhecer que o “objecto” da sua pretensão é “parte comum do prédio”), sem esforço se mostra de constatar que os pretendidos “lugares – ou parques – de estacionamentos” não tem a qualidade de “unidades independentes”, (cfr., art. 1313°), nem tão pouco se apresentam constituir “espaço suficientemente delimitado” nos termos e para os efeitos do transcrito art. 1315°, n.° 2 e 3.
Por sua vez, importa (também) atentar no estatuído no art. 1323° do citado C.C.M., onde, sob a epígrafe “Direitos dos condóminos sobre o prédio” se preceitua que:
“1. Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do condomínio.
2. O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição”.
Dest’arte, (em face do pela recorrente alegado e do assim estatuído), vista está a solução.
Com efeito, claro nos parece que sentido não faz que a ora recorrente pretenda a restituição na “posse exclusiva” daquilo que se configura – e que ela própria reconhece – constituir uma “parte comum” do prédio, e, como tal, objecto do “direito de gozo comum de todos os condóminos”.
Por outro lado, ainda que assim não se entendesse e se aceitasse, (eventualmente), que em termos de “realidade física”, possível fosse a apropriação individual de uma parte comum como o parque de estacionamento de um prédio, (visto que se poderia controlar o acesso e excluir o gozo do mesmo aos restantes condóminos, ao contrário do que se passa com um “telhado” que protege todo o prédio, e, por isso, a simples apreensão material não afasta o gozo comum dos demais condóminos resultante da protecção conferida pelo telhado), sempre se teria de conceder que a ora recorrente não indicou quaisquer factos dos quais pudesse resultar a sua posse “individual” e “exclusiva” sobre referida “parte comum”.
Na verdade, se como alega, vendeu, sucessivamente, as 788 fracções autónomas do prédio através de escrituras públicas de compra e venda, inegável parece de concluir que houve “tradição da sua posse” nos termos do art. 1187°, alínea c) do C.C.M., (até mesmo porque não se discute que as fracções autónomas não tenham sido entregues aos seus proprietários), sendo da própria natureza das coisas que o empossamento numa fracção autónoma dá também lugar ao empossamento, (em regime de composse), nas respectivas “partes comuns”, não se podendo pois perder de vista que a “adequação legal do conteúdo típico da propriedade a um objecto dual, fracção e partes comuns, que a um tempo outorga ao condómino o gozo da propriedade singular (sobre a fracção autónoma) e a outro lhe impõe a concorrência com a posição de outros proprietários (partes comuns do edifício)” (cfr., v.g., José Alberto Vieira in, “Direitos Reais”, pág. 742).
Como se preceitua no art. 1323°, n.° 2, são “direitos incindíveis”, (não se podendo assim transmitir a posse apenas quanto à “fracção autónoma”).
E, assim, necessário era que – oportunamente – pela ora recorrente tivesse sido alegada matéria de facto relativa a uma “inversão do título da posse” quanto às “garagens” ou “lugares de estacionamento nas garagens” do dito prédio, o que, no caso dos presentes autos, (de todo), não sucedeu.
Nesta conformidade, e ociosas se apresentando mais alongadas considerações, cabe decidir como segue.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça de 10 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 826 a 847-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Notificada, e tempestivamente, veio a recorrente, (“A”), requerer o “esclarecimento” do decidido; (cfr., fls. 856 a 860-v).
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Após resposta dos requeridos, (cfr., fls. 863 a 870), e observada que foi a devida tramitação do suscitado incidente, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Vem requerido o “esclarecimento” do acórdão de 17.12.2021 por esta Instância prolatado nos presentes autos.
Como cremos que é pacífico e adquirido, o esclarecimento – ou a “aclaração” – de uma decisão, apenas se justifica quando a mesma se apresente ou contenha alguma “obscuridade” ou “ambiguidade”; (cfr., art. 572° do C.P.C.M.).
Com efeito, nos termos do art. 572° do C.P.C.M..
“Pode qualquer das partes requerer no tribunal que proferiu a sentença:
a) O esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha;
(…).
No primeiro caso – “obscuridade” – a sentença ou parte dela é ininteligível.
No segundo caso – “ambiguidade” – apresenta-se, total ou parcialmente, com um sentido duplo.
Assim, a aclaração de uma decisão apenas se justifica quando a mesma seja ininteligível – o que se verifica quando aquela apresente aspectos de significação inextrincável, em termos de não ser possível apurar o que se quis dizer – ou se mostra passível de se lhe atribuir dois (ou mais) sentidos.
Fixado o alcance dos respectivos conceitos, vejamos se se verificam os imputados vícios.
No caso, admitindo-se – obviamente – outro entendimento, cremos que o decidido não padece das assinaladas “deficiências”, nada havendo a esclarecer, (pois que “in claris non fit interpretatio”); (cfr., v.g., o Ac. de 27.04.2021, Proc. n.° 200/2020-I).
Na verdade, e como de uma mera leitura ao veredicto por esta Instância proferido se constata, (assim como do teor do agora deduzido incidente igualmente resulta), nada se apresenta de esclarecer, pois que a referida decisão não padece de qualquer “obscuridade” ou “ambiguidade”, (cfr., o cit. art. 572° do C.P.C.M.), afigurando-se-nos, como cremos que o próprio requerente não deixa de reconhecer, que o mesmo, alcançou, clara e integralmente, tudo o que no dito acórdão se consignou, sendo, também, evidente, que a “questão” que em sede do seu (e a título de) “pedido de esclarecimento” coloca, tão só demonstra o seu “inconformismo” em relação ao decidido, que, embora, e como é óbvio, muito se respeita, não constitui fundamento próprio e legal para o pedido que em sede do presente incidente apresenta.
Com efeito, não se pode perder de vista que jamais se pode confundir uma “discordância” (em relação ao decidido) com uma (eventual) “obscuridade”, a fim de, “camufladamente”, se viabilizar um revisitar e uma repetida colocação de questões (anteriormente) já decididas, e que são, como no caso sucede, consabidamente irrecorríveis, tentando-se, desta forma, (como que) criar um “novo grau de recurso”.
Dest’arte, sendo o que manifestamente sucede com o presente pedido, e apresentando-se-nos o Acórdão de 17.12.2021 poe este Tribunal de Última Instância prolatado isento de qualquer ambiguidade ou obscuridade, resta decidir como segue.
Decisão
3. Nos termos que se deixam expendidos, em conferência, acordam indeferir o pedido deduzido.
Custas pela requerente com taxa de justiça de 5 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 28 de Janeiro de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Fong Man Chong, Manual de Regime Jurídico da Propriedade Horizontal, p. 45 e seguintes e as obras nelas citadas, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2009.
2 Tratando-se de compropriedade em geral, qualquer comproprietário pode exigir a divisão da coisa comum. Vide artigo 946.º e seguintes do CPC.
3 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, p. 127 e ss. Manuel Rodrigues, A Posse, p. 119 e ss.
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