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Processo n.º 957/2021 Data do acórdão: 2022-1-28
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O

Como após analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, não pode ter esse tribunal cometido erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 957/2021
(Recurso em processo penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B
3.a arguida C
4.o arguido D




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 634 a 643 do Processo Comum Colectivo n.° CR5-21-0100-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados o 1.o arguido A, o 2.o arguido B, a 3.a arguida C e o 4.o arguido D pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime (qualificado) de auxílio (à imigração clandestina), p. e p. pelo art.o 14º, n.o 2, da Lei n.o 6/2004, e punidos os 1.o, 2.o e 4.o arguidos com a pena, igualmente, de cinco anos e seis meses de prisão, e a 3.a arguida com cinco anos e três meses de prisão.
Inconformados, vieram todos os quatro arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido A alegou e peticionou, no essencial, na sua motivação a fls. 709 a 713 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– o acórdão recorrido padece do erro notório na apreciação da prova, não devendo ser considerados provados os factos provados 4, 16 e 17 descritos na fundamentação fáctica do próprio acórdão no respeitante ao dolo dele na prática dos factos de auxílio à imigração clandestina, com consequente devida absolvição dele do crime por que vinha condenado em primeira instância, sendo de frisar ainda que, fosse como fosse, a matéria descrita no facto provado 16 no tangente à obtenção de vantagem ilícita nunca poderia ter sido dada como provada em relação ao próprio recorrente em face dos elementos probatórios dos autos, razão subsidiária pela qual ele deveria, pelo menos, passar a ser condenado pela prática do crime de auxílio simples do art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, com necessária nova medida da pena.
Já o 2.o arguido B alegou, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 693 a 705 dos presentes autos, o seguinte:
– o acórdão recorrido enferma, a título principal, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) (devido à ausência de prova suficiente demonstrativa do já conhecimento recíproco entre ele e a 3.a arguida, nem da participação dele na prática dos actos de auxílio à imigração clandestina, nem tão-pouco da obtenção, por ele, para si ou para outrem, de qualquer recompensa como contrapartida da prestação do auxílio à imigração clandestina), devendo, pois, ele passar a ser absolvido penalmente, ou, pelo menos, a ser condenado pela prática apenas do crime de auxílio simples do n.o 1 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004, isto apesar de, subsidiariamente falando, haver sempre excesso na medida da sua pena feita no aresto recorrido.
Enquanto a 3.a arguida C alegou, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 716 a 731 dos autos, o seguinte:
– a actuação dela não integra o crime qualificado nem o crime simples de auxílio à imigração clandestina (porquanto a sua conduta não preenche o elemento objectivo do crime de auxílio em apreço), e quanto muito só se circunscreve à mera cumplicidade (dado que ela nem sequer conhecia os outros três arguidos, nunca os viu e nunca os encontrou, antes ou depois dos factos dos autos, não tendo ela tomado, assim, parte directa na execução dos factos de auxílio à entrada clandestina em Macau, nem agiu ela mediante acordo prévio com os demais arguidos, de maneira que, em suma, ela nada decidiu em conjunto com os demais arguidos, nada executou em conjunto com os outros arguidos e não repartiu tarefas com estes, na execução dos factos descritos na acusação);
– ou seja, a actuação dela própria quedou-se por uma mera prestação da informação à pessoa imigrante ilegal em Macau, o que foi totalmente independente da actuação dos demais arguidos;
– deve ela, assim, passar a ser absolvida, ou a ser condenada apenas como cúmplice;
– e fosse como fosse, a pena aplicada a ela não deixaria de ser severa, merecendo antes ela a redução da mesma, tendo em conta a enorme disparidade na actuação dela, em comparação com a dos demais.
Por outra banda, o 4.o arguido D alegou, essencialmente, na sua motivação apresentada a fls. 675 a 685 dos autos, que o Tribunal recorrido errou notoriamente na apreciação da prova e há contradição insanável entre as provas dos autos, pelo que por força do princípio de in dubio pro reo, deve ele passar a ser absolvido, ou passar a ser condenado no crime de auxílio simples do n.o 1 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004.
Respondeu a Digna Delegada do Procurador ao recurso do 1.o arguido a fls. 759 a 762, ao recurso do 2.o arguido a fls. 763 a 767, ao recurso da 3.a arguida a fls. 768 a 771, e ao recurso do 4.o arguido a fls. 772 a 775v dos autos, tudo no sentido de improcedência dos mesmos recursos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 833 a 837v, no sentido de improcedência dos quatro recursos.
Posteriormente, veio expor a 3.a arguida a fls. 839 a 841 dos autos que ela, ao abrigo do art.o 2.o, n.o 4, do Código Penal (CP), não deixaria de dever beneficiar do art.o 72.o da nova Lei n.o 16/2021, vigente a partir de Novembro de 2021.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 634 a 643 dos autos, cujo teor (incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, debruça-se sobre o vício de erro notório na apreciação da prova, esgrimido materialmente, e a título principal, pelos 1.o, 2.o e 4.o arguidos nas respectivas motivações de recurso (sendo de notar que apesar de o 2.o arguido ter invocado, na sua motivação, a existência, no acórdão recorrido, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, os argumentos concretamente tecidos por ele – traduzidos, em síntese, na alegada ausência de prova incriminatória suficiente nos autos – para sustentar a verificação deste vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP já não tem nada a ver com este vício, mas sim materialmente com o vício de erro notório na apreciação da prova; ademais, da leitura atenta da fundamentação fáctica do mesmo aresto recorrido, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já investigou todo o tema probando dos autos, sem omissão alguma, pelo que nunca pode o mesmo Tribunal ter cometido o vício referido na dita alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP; e sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014):
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado o conteúdo dos diversos elementos probatórios analisados em global e de modo crítico. E o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, estando efectivamente já feita a prova suficiente dos factos descritos como provados na fundamentação fáctica do próprio aresto impugnado.
Portanto, ante a factualidade provada em primeira instância: o 1.o arguido, indubitavelmente, agiu com dolo nos factos de auxílio à imigração clandestina, imputados a ele no libelo acusatório; e é acertada a qualificação jurídico-penal dos factos feita pelo Tribunal recorrido (o que preclude a tese de cumplicidade sustentada pela 3.a arguida, já que sem a prática dolosa, por ela, dos factos descritos nos factos provados 9 e 10, o indivíduo chamado E e referido neste facto provado 9 não pôde ter sido transportado depois por via marítima para Macau para efeitos de imigração clandestina).
De frisar que o que a própria 3.a arguida fez não foi o fornecimento a esse indivíduo E dos meios de contacto ou informações do/sobre o indivíduo conhecido por “F”. Foi ela que, em 4 de Setembro de 2020, a pedido daquele indivíduo E, entrar em contacto, por via de Wechat, com este “F” (tido como capaz de auxiliar pretendentes de imigração clandestina para vir para Macau), e a pedido deste “F” ela disse a este o número telefónico daquele indivíduo E, e ela foi inclusivamente cobrar a este indivíduo pretendente imigrante ilegal o sinal (em dois mil Renminbis) do preço da imigração clandestina (tudo isto, em sintonia com a matéria sobretudo descrita no facto provado 9), e foi ela também dizer, em 5 de Setembro de 2020, àquele “F” que o indivíduo pretendente imigrante ilegal C já chegou a Zhuhai (conforme dita o facto provado 10). Por isso, a conduta dela não é subsumível ao tipo legal do art.o 72.o da Lei n.o 16/2021 (que dispõe que “Quem, embora não comparticipando nos crimes referidos nos dois artigos anteriores, mediante a contrapartida da obtenção, ou sua promessa, directamente ou por interposta pessoa, de recompensa, coisa, direito ou vantagem, para si ou para outrem, tiver facultado contactos ou outras informações às pessoas em busca de auxílio ou acolhimento e, dessa forma, facilitado a consumação de tais crimes, é punido com pena de prisão até 2 anos”).
De salientar também que o requisito, exigido na norma do n.o 2 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004 (vigente à data da prática dos factos), de obtenção de vantagem patrimonial como recompensa da prática do crime de auxílio já está verificado, devido à conduta da 3.a arguida de ter cobrado ao acima referido pretendente imigrante ilegal o sinal (em dois mil Renminbis) do preço de imigração clandestina. Por isso, não se pode convolar, para os quatro arguidos recorrentes, o crime qualificado de auxílio para o crime de auxílio simples do n.o 1 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004.
E a conduta da 3.a arguida de devolução dessa quantia em 10 de Setembro de 2020, aquando do conhecimento do malogro da imigração clandestina do indivíduo C para Macau (por este indivíduo ter sido interceptado em 6 de Setembro de 2020 pelas autoridades competentes de Macau nas águas de jurisdição de Macau – cfr. os factos provados 1 a 4), já não pôde ter a virtude de obstar à consumação, naquele anterior dia 6 de Setembro de 2020, do crime qualificado de auxílio à imigração clandestina deste indivíduo.
Finalmente, da questão de alegado excesso na medida da pena, levantada expressamente pelos 2.o e 3.a arguidos nas respectivas motivações de recurso:
O crime qualificado de auxílio do n.o 2 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004 é punível com pena de prisão de cinco a oito anos.
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já descritas como provadas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, tendo em conta também as inegáveis exigências da prevenção geral deste delito penal, realiza o presente Tribunal de recurso que a pena de cinco anos e seis meses de prisão aplicada pelo Tribunal recorrido ao 2.o arguido e a pena de cinco anos e três meses de prisão fixada à 3.a arguida já não admitem mais margem para redução, reflectindo, aliás, a dose desta pena da 3.a arguida já devidamente o grau de intervenção dela (a despeito de ser ela co-autoria, e não cúmplice) na prática do crime, em comparação com outros três arguidos.
Naufragam, assim, os quatro recursos em causa, sem mais indagação, por desnecessária ou prejudicada.
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos dos 1.o, 2.o, 3.a e 4.o arguidos, os quais deverão pagar as custas dos respectivos recursos, com três UC, quatro UC, seis UC e duas UC de taxas de justiça individuais, respectivamente.
Os 1.o e 2.o arguidos pagarão ainda, e individualmente, a quantia de duas mil e quinhentas patacas, a título de honorários aos respectivos Ex.mos Defensores Oficiosos.
Macau, 28 de Janeiro de 2022.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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