Processo n.º 839/2021
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 20 de Janeiro de 2022
ASSUNTOS:
- Direito de preferência legal reconhecido com comproprietário
SUMÁRIO:
I - O artigo 1309º do CCM exige que o preferente tenha conhecimento de elementos essenciais de venda, nomeadamente os respeitantes ao preço e às condições de pagamento. Sobre o Recorrente recai o ónus de provar que a Recorrida já tenha tido conhecimento desses elementos há mais de 6 meses quando propunha a respectiva acção de preferência.
II - O direito de preferência legal só pode ser entendido “extinto” nas duas situações:
1) – Renúncia expressa ou tácita pelo titular do direito em causa;
2) – Exercício intempestivo de direito (fora de 6 meses) quando o titular sabia todas as condições de compra e venda que um dos comproprietários pretendia dispor do bem em causa (artigo 1308º do CCM).
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 839/2021
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 20 de Janeiro de 2022
Recorrente : A (A) (1º Réu)
Recorrida : B (B) (Autora)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A (A), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 11/05/2021, que julgou procedente o pedido de execução específica formulado pela Recorrida (Autora, comproprietária do imóvel identificado nos autos), dela veio, em 05/07/2021, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 272 a 298, tendo formulado as seguintes conclusões:
i) A autora e ora recorrida veio através da pressente acção peticionar o reconhecimento do direito de preferência sobre a metade indivisa adquirida pelo aqui recorrente, do prédio urbano sito em Macau na Rua ......, nº 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° **** a fls. 5v do livro B24, e que aquela seja considerada a titular inscrita do direito de propriedade, em detrimento do ora recorrente.
ii) Como é sabido, os direitos e obrigações resultantes do contrato-promessa de compra e venda, que não sejam exclusivamente pessoais, transmitem-se aos sucessores das partes contraentes - art. 406°, n° 1, do CC.
iii) Na qualidade de sucessora hereditária da C, falecida durante a pendência da acção execução específica, a recorrida assumiu a posição de promitente-vendedora e ré naquela acção, todavia, a ora recorrida nunca promoveu o necessário incidente de habilitação de herdeiros nos autos de execução específica, caso em que teria adquirido a posição processual da ré, C - o que certamente a faria incorrer numa situação de incompatibilidade com a posição de interveniente processual, face ao manifesto conflito de interesses enquanto obrigada a conceder a preferência e a de preferente legal.
iv) Por outro lado, a recorrida vem aos presentes autos invocar uma suposta violação do direito de preferência que a consorte vendedora C se encontrava obrigada - art. 1308°, n° 1, do CC., porém, aquela passou a ficar vinculada à promessa de venda do imóvel em apreço ao aqui recorrente e responsável pelo seu incumprimento, por força da sucessão hereditária da C.
v) O direito de preferência previsto no art. 1308°, n° 1, do CC. implica o interesse de um comproprietário em contraposição a outro, isto é, a existência de direitos e obrigações opostas numa relação entre sujeitos distintos, pois seria absurdo que o titular do direito de preferência viesse a exigir dele próprio esse direito, o que é o que se verifica neste caso, onde se reúnem na esfera da recorrida direitos e obrigações incompatíveis, como o direito de preferência pela venda e, em simultâneo, o dever de comunicar a si mesma essa venda.
vi) Efectivamente, a partir do momento em que a recorrida sucedeu nos direitos e obrigações da C, ainda antes do trânsito em julgado da decisão que julgou procedente a execução específica, passou a reunir a qualidade de credora e devedora relativamente ao direito de preferência, pelo que este se extinguiu por confusão - art. 859° do CC.
vii) Assim, e salvo melhor opinião, o direito de preferência invocado pela recorrida já se encontrava extinto antes da propositura da presente acção, por ser incompatível com o seu direito de propriedade sem determinação de parte ou direito, da metade indivisa do imóvel em causa, o que impede que seja invocado.
viii) Portanto, entende o recorrente que se verifica uma situação de ilegitimidade activa e de falta de interesse processual, que o tribunal a quo não poderia ter deixado de conhecer oficiosamente, absolvendo o ora recorrente da instância - art. 412°, n° 2, do CPC, ex vi art. 413°, al. e) e al. h), do CPC.
ix) Verifica-se ainda a existência de caso julgado quando se propõe uma acção idêntica a outra já decidida por sentença que não admita recurso ordinário, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir - art. 416°, n° 1 e 417°, nº 1, ambos do CPC, o que configura uma excepção dilatória, a qual obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância - art. 412°, n° 2 e art. 413°, al. j), ambos do CPC e é do conhecimento oficioso do tribunal - art. 414° do CPC.
x) O pedido nesta acção tem como fundamento a qualidade de preferente legal da ora recorrida na aquisição da metade indivisa do acima referido imóvel e a falta de comunicação para o seu exercício - que se deu por provimento da acção de execução específica intentada pelo ora recorrente contra C, que correu termos no 2° Juízo cível do TJB, sob o nº CV2-11-0008-CAO.
xi) Conforme bem apontado pelo tribunal a quo, "A forma de operacionalizar o direito de preferência supra aludido, se não se tiver concedido a preferência a quem de direito nos termos do art. 410° do CC (ex vi nº 2 do art. 1308° do CC), é a via judicial através da acção de preferência prevista no art. 1309° do CC (nº1)".
xii) Quando teve conhecimento da sentença pela qual se deu a transmissão da metade indivisa do imóvel em causa, no processo sob o n° CV2-11-0008-CAO, a ora recorrida estava em tempo, tinha legitimidade e fundamento legal para intentar a acção de preferência.
xiii) Conforme ficou provado nestes autos e decorre dos documentos junto aos mesmos, da sentença que julgou procedente a acima referida acção de execução específica veio a aqui recorrida interpor recurso, através do qual invocou a violação do direito de preferência legal por falta da comunicação prévia, alegando que deveria ter sido citada a fim de depositar o preço do imóvel no prazo de 8 dias, ao abrigo do art. 1309°, n° 1, do CC, e nos termos "princípios da economia processual, adequação formal, celeridade processual e flexibilidade processual do pedido".
xiv) À luz das motivações do recurso interposto torna-se evidente que a recorrida já formulou a mesma pretensão e com os mesmos fundamento, de reconhecimento e o exercício do direito de preferência previsto no art. 1309°, n° 1, do CC., decorrente da realização de transmissão da metade indivisa do direito, sem o cumprimento da obrigação de comunicação do projecto de venda à comproprietária e titular do direito de preferência, não obstante tê-lo feito em sede de recurso ordinário da sentença que julgou procedente a execução específica.
xv) Num acórdão que se mostra exemplar, TUI considerou - o que agora parece ser pacífico - que a recorrida exerceu a acção de preferência legal através de meio jurídico que não se mostra legalmente adequado, visto que deveria ter sido por via judicial autónoma.
xvi) Salvo melhor opinião, entende o aqui recorrente que, face ao acima exposto, verifica-se uma identidade de (i) sujeitos, de (ii) pedido e de (iii) causa de pedir, entre os presentes autos e os referidos autos de recurso do processo sob o nº CV2-11-0008-CAO - art. 417° do CPC, o que configura situação de caso julgado, que o tribunal a quo não poderia ter deixado de conhecer oficiosamente, absolvendo o ora recorrente da instância - art. 412°, nº 2, do CPC, ex vi art. 413º, al. j), do CPC e art. 414° do CPC.
xvii) Deve, portanto, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva o 1° Réu e ora recorrente do pedido.
xviii) No seu acórdão, o tribunal a quo considerou que a presente acção foi intentada tempestivamente, por não estar esgotado o prazo de 6 meses a contar da transmissão da metade indivisa do imóvel em causa, o que no seu entendimento se consumou com o trânsito em julgado da sentença de execução específica, em 22.06.2020.
xix) Note-se que o art. 1309° do CC não se refere à data da celebração ou consumação do negócio, mas sim o do conhecimento dos elementos essenciais da alienação pelo preferente.
xx) O que importa saber, portanto, é a data em que a recorrida teve conhecimento dos elementos do negócio, e não quando este foi consumado.
xxi) Conforme está assente nestes autos, em Maio de 2017 foi proferida sentença na acção de execução específica intentada pelo ora recorrente contra C, que correu termos no 2° Juízo cível do TJB, sob o n° CV2-11-0008-CAO, a qual emitiu declaração de vontade em substituição da ré, no sentido de vender ao autor a metade indivisa do imóvel acima identificado - doc. 5 da pi.
xxii) Na sequência dessa decisão, a ora recorrida interpôs recurso para o TSI, invocando interesse na causa, alegando nas motivações que a mesma violou o seu direito de preferência legal.
xxiii) Como facilmente se verifica pela leitura do referido documento, na decisão que julgou procedente a execução específica já constam todos os elementos essenciais da transmissão do imóvel em causa, tais como o nome do adquirente e o preço acordado.
xxiv) A recorrida ficou a conhecer todos os elementos essenciais da alienação a partir da prolação da sentença, ao reconhecer a legitimidade para invocar a qualidade de preferente legal e exigir a substituição ou sub-rogação do adquirente, por omissão de comunicação prévia da venda, ao abrigo do art. 1309°, n° 1, do CC.
xxv) Aliás, foi o próprio TUI que esclareceu, no seu douto acórdão, que a ora recorrida estava em tempo, tinha a legitimidade e os fundamentos para intentar a acção de preferência, o que deveria ter feito através de acção autónoma e não enxertada no recurso da sentença da acção de execução específica.
xxvi) O prazo a que se refere a norma citada é de caducidade e porque se trata de um direito indisponível, pode e deve o tribunal, nos termos do nº 1 do art. 333º, conhecer oficiosamente da extinção do direito real de preferência.
xxvii) Por isso, a acção de preferência prevista no art. 1039° do CC, está sujeita a caducidade, e uma vez ultrapassado o prazo fica precludido o direito de intentar a acção de preferência - art. 291° do CC -, impondo-se ao tribunal conhecer o momento em que a recorrida tomou conhecimento dos elementos essenciais da transmissão - art. 325°, n° 1, do CC.
xxviii) Importa sublinhar que o prazo estabelecido no art. 1309° do CC. para intentar a presente acção de preferência não se suspendeu nem se interrompeu com o referido recurso interposto pela aqui recorrida, pelo que o mesmo deverá começar a contar desde o conhecimento do teor da sentença de execução específica, proferida pela primeira instância - art. 320° do CC.
xxix) Em suma, a sentença que julgou procedente em primeira instância a acção de execução específica reuniu desde logo todos os elementos necessários para o exercício da tutela prevista para a violação do direito de preferência e o início da contagem do prazo para o exercício do direito através da acção de preferência ocorre com o conhecimento pela ora recorrida do teor da referida sentença o que se deu não depois de Maio de 2017, quando interpôs recurso da mesma.
xxx) O direito da acção de preferência caducou pelo menos em Dezembro de 2017, o que desde já e para os devidos efeitos legais se invoca.
xxxi) Por mera cautela e dever de patrocínio e na eventualidade de não procederem os fundamentos acima invocados, e se considerar que a presente acção foi intentada tempestivamente, o que não se concede, sempre se dirá o seguinte:
xxxii) Com a sentença que deu provimento em primeira instância à acção de execução específica, a aqui recorrida optou por interpor recurso da mesma, quando não era parte no processo, com a pretensão de exercer o direito de preferência legal sobre a parte do imóvel transmitida, por violação do mesmo, nos termos da acção de preferência prevista no art. 1309° do CC.
xxxiii) Enquanto o recurso estava pendente para apreciação o prazo para promover a acção de preferência nos termos do art. 1309° do CC. foi ultrapassado, fazendo caducar o mesmo.
xxxiv) Não se pode deixar de notar que a pretensão da agora recorrida é nada mais do que uma tentativa de emendar a mão, depois do insucesso do referido recurso decretado pela douta decisão do TUI, fazendo crer nos presentes autos que o prazo para o exercício do direito de preferência se constituiu com o trânsito em julgado da sentença recorrida.
xxxv) Salvo o devido respeito, a ora recorrida vem propor a presente acção exactamente com os mesmos fundamentos em termos substantivos que esgrimiu no recurso dos autos de execução específica, que se mostrou não ser a forma processual hábil, e servir-se da presente acção como se se tivesse estendido ou renovado o prazo para invocar o direito de preferência, o que resultaria num beneficio ilegítimo e constitui numa forma abusiva do direito, o que desde já se invoca - art. 326º do CC.
xxxvi) Por tudo o acima exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e alterada por decisão que julgue o recorrente absolvido do pedido e da instância.
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B (B), Recorrida, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 311 a 332, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Inconformado com a douta decisão do Tribunal de Primeira Instância que julgou procedente a acção intentada pela ora Recorrida e consequentemente lhe reconheceu o direito de preferência em relação à aquisição da metade indivisa o prédio sito na Rua ...... n.º 21 e, consequentemente, decretou a substituição do Recorrente, pela Recorrida, na posição de compradora do referido prédio, veio o Recorrente interpor o recurso a que ora se Responde, apontando a tal decisão os seguintes vícios: ilegitimidade activa e falta de interesse processual, efeito de caso julgado, caducidade do direito e abuso de direito.
II. O Recorrente alega que a ora Recorrida e Autora nos presente autos, carece de legitimidade activa e falta de interesse processual uma vez que, dada a morte da promitente-vendedora do imóvel da Rua ...... n.º 21, mãe da ora Recorrente, esta última assumiu aquela posição de promitente-vendedora e, como tal, deveria ter promovido o incidente processual de habilitação de herdeiros no processo de execução específica que correu os seus termos pelo 2.º Juízo Cível sob o n.º CV2-11-0008-CAO, assim assumido a posição processual de ré naquela acção e, como tal, passou a ficar vinculada à promessa de venda o que leva à extinção do seu direito de preferência por confusão, nos termos do disposto no artigo 859.º do Código Civil.
III. Não estão preenchidos os pressupostos da aplicação da extinção de direitos/obrigações por confusão, como sejam: A reunião na mesma pessoa das qualidades de credor e devedor; Não pertença do crédito e da dívida a patrimónios separados; Inexistência de prejuízo para os direitos de terceiro.
IV. A obrigação de cumprir o contrato-promessa de compra e venda celebrado pela falecida com o ora Recorrente incide sobre a herança representada por todos os seus herdeiros, uma vez que, no presente caso, a herança continua indivisa.
V. Ora, o direito legal de preferência só se extingue por confusão se o preferente legal adquirir o objecto do direito, e isso não aconteceu no presente caso!
VI. E sendo assim, por maioria de razão, não se verificam também os pressupostos supra mencionados de Não pertença do crédito e da dívida a patrimónios separados e Inexistência de prejuízo para os direitos de terceiro.
VII. A obrigação de celebração do contrato-promessa da herança indivisa representada pelos seus herdeiros, dentre eles a ora Recorrida, não anula ou extingue o direito legal de preferência da ora Recorrida, enquanto comproprietária de metade indivisa do imóvel, por não se terem concentrado na mesma pessoa e nem no mesmo património!
VIII. Donde, salvo devido respeito por melhor opinião, não se verifica qualquer ilegitimidade activa por parte da ora Recorrida e nem existe falta de interesse processual, devendo consequentemente improceder o primeiro vício assim assacado pelo Recorrente à decisão recorrida.
IX. Seguidamente, vem o Recorrente invocar a existência da excepção de caso julgado em virtude da decisão proferida pelo Tribunal de Última Instância no âmbito do recurso interposto pela ora Recorrente no âmbito do processo que correu os seus termos pelo 2.º Juízo Cível sob o n.º CV2-11-0008-ClV.
X. Não se alcança como pode o Recorrente vislumbrar que a decisão assim proferida pelo TUI naqueloutro processo constitua caso julgado em relação ao presente processo, quando, resulta claro que o pedido e pretensão formulada pela ora Recorrida no seu recurso não é igual ao formulado no âmbito dos presentes autos e, como tal, a decisão do TUI não recaí e nem sequer se debruça sobre a existência do direito legal de preferência da ora Recorrida em relação à venda da metade do imóvel em causa nos presentes autos!
XI. Na verdade, aquilo que se pretendia com aquele recurso era a anulação de todo o processado no âmbito do processo de execução especifica e a citação naqueles autos da ora Recorrido para poder a mesma exercer o seu direito legal de preferência...
XII. Por outro lado, para além do ora Recorrente, os demais Réus da presente acção nem sequer eram partes no âmbito do processo em relação ao qual o Recorrente invoca a excepção de caso julgado.
XIII. Assim sendo, não havendo identidade de sujeitos, não sendo idênticos os pedidos aduzidos pela ora Recorrida naquele recurso, e nem se tendo o douto Acórdão do TUI debruçado sobre a existência do direito legal de preferência da ora Recorrida, não se vislumbra em que medida estamos perante uma situação de caso julgado.
XIV. O douto Acórdão do TUI, como se disse, não se debruça, nem sequer ao de leve, sobre a existência ou viabilidade do exercício do direito legal de preferência que assiste à ora Recorrida, tendo apenas decidido que tal direito não pode ser exercido no âmbito daquela acção de execução específica, nada mais, e como tal, não representa qualquer caso julgado que impeça a presente acção, ou seja, de modo algum a decisão a proferida nos presentes autos tem a capacidade de contradizer a decisão assim proferido pelo TUI, criando no ordenamento jurídico duas decisões incompatíveis em relação à mesma relação jurídica controvertida.
XV. Ainda nesta sede, pretende o Recorrente proceder à junção de um documento, qual seja, o requerimento de interposição de recurso apresentado pela ora Recorrida no âmbito daqueloutra acção, porém, não invoca qualquer norma legal que lho permita ou sequer justificar a pertinência e utilidade da junção, que, desde já se avança, é nenhuma ... pelo que, salvo devido respeito, deve ser indeferida a junção por a mesma não se enquadrar na previsão que legitima a junção de documentos em sede de recurso, ou seja, o artigo 616.º do CPC.
XVI. Invoca ainda o Recorrente que o direito de propor a acção de preferência ora em causa caducou em Dezembro de 2017, porém, salvo devido respeito, não lhe assiste razão, uma vez mais.
XVII. Ora, a leitura feita pelo Recorrente da letra do disposto no artigo 1039.º do Código Civil, olvida uma parte essencial da previsão constante da norma, como seja, o facto de esta norma estar pensada para uma situação em que a violação do direito de preferência se encontra consumado, ou seja, depois da alienação do imóvel objecto da preferência.
XVIII. Antes da alienação do imóvel, o direito de preferência é exercido nos termos do artigo 410.º do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1308.º, n.º2 do mesmo diploma legal.
XIX. Resulta aliás claro do Acórdão do TUI sacado no âmbito do processo de execução específica que a presente acção de preferência apenas podia ter sido intentada a partir do momento em que a venda se consuma de forma válida, donde, outra conclusão não se pode chegar que o prazo para a propositura da acção de preferência previsto no artigo 1309.º do C.C.M. nunca pode começar a contar-se antes de consumada a venda do imóvel, o que no caso dos autos, só se verifica com o trânsito em julgado da sentença de execução específica.
XX. Solução diversa impossibilitaria que se alcançassem os efeitos práticos da acção de preferência, através da qual se alcança uma mera substituição dos sujeitos activos da venda e, para isto logicamente tem que existir venda consumada e válida.
XXI. Aliás, está-se em crer que a aquilo que a Lei estipula é que o prazo para a propositura da acção de preferência não se pode começar a contar antes do momento em que o preferente tenha conhecimento dos elementos essenciais da venda, e não a partir do momento do conhecimento da venda.
XXII. Assim, sendo, salvo devido respeito por melhor opinião, a actuação da ora Recorrida em nada ameaça a tempestividade da presente acção. Com efeito,
XXIII. Como se pode verificar dos documentos juntos aos autos, designadamente do documento n.º 5 junto com a p.i. e para o qual ora se remete, assim que tomou conhecimento da sentença que decretou a execução especifica do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o Recorrente e a falecida C, a ora Recorrida interpôs recurso da mesma e nas suas alegações de recurso deixou por demais claro que queria exercer o seu direito de preferência,
XXIV. Sendo que o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente aquele recurso, tendo depois, na sequência de Recurso interposto pelo ora Recorrente, o Tribunal de Última Instância decidiu revogar o Acórdão do TSI e confirmar a decisão do Tribunal de Base, tendo a mesma transitado em julgado em 22 de Junho de 2020.
XXV. Ora, só depois do dia 22 de Junho de 2020 se pode considerar a que a alienação do imóvel foi efectivada e consequentemente preterido o direito de preferência que à ora Recorrida cabia.
XXVI. A propositura da presente acção reputa-se tempestiva, devendo por isso, soçobrar também o Recurso a que ora se responde quanto ao apontado vício de caducidade do direito da ora Recorrida.
XXVII. A ora Recorrida lançou mão dos meios legais que considerou ter a seu dispor, alegando os factos e o direito que entendeu ser aplicável, tendo ademais obtido decisões que lhe foram favoráveis, quer no âmbito do recurso que interpôs no processo de execução específica, quer no âmbito da presente acção.
XXVIII. A ora Recorrida é titular do direito de preferência sobre a metade indivisa do prédio de que é proprietária, conforme provou, essa metade indivisa foi prometida vender sem o conhecimento da ora Recorrida e, posteriormente, em acção que não foi parte a ora Recorrida, o Recorrente obteve a execução especifica desse contrato-promessa de compra e venda.
XXIX. Tendo tomado conhecimento dessa decisão, antes da mesma transitar em julgado, a ora Recorrida dela interpôs recurso com os fundamentos que melhor constam do documento n.º 5 dos presentes autos, tendo o Recurso por si interposto sido julgado procedente pelo douto Tribunal de Segunda Instância, conforme melhor resulta do documento n.º 5 dos presentes autos, não obstante ter vindo tal decisão a ser revogada pelo TUI.
XXX. Assim sendo, e na senda do decidido pelo TUI, a ora Recorrida lançou mão da presente acção de preferência, tendo o douto Tribunal de Primeira Instância dado provimento ao seu pedido.
Ora,
XXXI. Não existe abuso de direito nenhum, a ora Recorrida não altera factos, não se contradiz, não tenta enganar ocultado a realidade e nem sequer pretende emendar a mão depois do insucesso do seu Recurso naqueloutra acção de execução específica, pois que o seu direito não ficou aí precludido!
XXXII. A conduta da ora Recorrida não preenche a figura do abuso de direito em nenhuma das suas modalidades - supressio, surrectio, venire contra factum proprium, exceptio doli, tu quoque e o desequilíbrio (vide Prof. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português", Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, Livª Almedina, págs. 249-269.)
XXXIII. Se o Recorrente considera que a ora Recorrida age em abuso de direito, deveria ter invocado os factos que integram tal conduta em sede própria e perante o tribunal a quo, e não agora, em sede de Recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
O prédio urbano objecto da presente acção, sito na Taipa, com o nº 21 da Rua ......, está descrito na conservatória do Registo Predial com o nº **** a fls 5v do Livro B 24 e inscrito na matriz predial sob o artigo nº 04****, conforme resulta das certidões de registo predial e matricial juntas sob designação de documento nº 1 e 2 e que, à semelhança dos demais documentos juntos, se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.- DOCS. 1 e 2
Por escritura de 05 de Agosto de 1986 a fls 28v do livro 9-E do Cartório Notarial das Ilhas o sobredito prédio foi adquirido por C e D, na proporção de metade (1/2) para cada, conforme inscrição nº 10**** (LºG80, fls 181)- cfr. DOC. 1
Com o falecimento de D metade do prédio foi adquirido, por sucessão hereditária-partilha, pela Autora, conforme resulta da inscrição nº 25****G – DOC.1.
Com efeito,
Por decisão transitada em julgado em 13 de Dezembro de 2007 proferida no âmbito do processo de inventário que correu termos, por morte de D, no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base sob nº CV3-05-0021-CIV, foi adjudicada a metade indivisa do sobredito prédio à Autora, que passou, assim, a ser sua comproprietária, tudo conforme melhor consta do documento anexo à certidão predial junta sob designação de documento nº 1.
Por contrato de promessa de compra e venda de 02 de Maio de 2007, outorgado entre C, na qualidade de promitente vendedora, e A, aqui 1º Réu, na qualidade de promitente comprador, aquela prometeu vender, e este prometeu comprar, “o prédio urbano situado na ilha da Taipa, na Rua ...... nº 21 (descrito na Conservatória do Registo Predial sob nº ****) …(em manuscrito): o preço de venda dos imóveis situados na Rua ...... nº 21 é de dois milhões e oitocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (…)” conforme se extrai da cópia do contrato e respectiva tradução que ora se juntam como documentos nº 3 e 4 – DOCS. 3 e 4.
Sendo que,
Nessa data, a metade indivisa do imóvel que pertencia ao falecido D não estava ainda partilhada – o que apenas ocorreu em 13 de Dezembro de 2007, com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha – e
A promitente vendedora prometeu vender a totalidade do imóvel e não apenas a metade indivisa que então lhe pertencia.
Depois de se ter tornado proprietária da metade indivisa do referido imóvel, a Autora sempre disse a C, sua mãe, que, caso ela pretendesse avançar com a venda da metade que lhe pertencia, a ora Autora queria comprá-la para si, por forma a ficar com a totalidade do prédio.
C - promitente vendedora e então comproprietária da aqui Autora - nunca comunicou à Autora as condições da venda, nomeadamente o exacto preço de venda da metade indivisa do prédio, a data para o seu pagamento e a data para a realização da escritura.
Volvidos quase 4 anos sobre a data da celebração do contrato promessa supra referido sem que tivesse sido celebrada a escritura de compra e venda, o 1º Réu intentou contra a promitente vendedora acção de execução específica que correu termos no 2º juízo cível do tribunal judicial de base sob o nº CV2-11-0008-CAO e que demorou quase uma década a ter um fim,
Por decisão proferida no sobredito processo, já transitada em julgado, o Tribunal “substitui-se à Ré C e emite a declaração de vontade desta no sentido de vender ao Autor, A, metade indivisa do prédio urbano sito em Macau na Rua ...... nº 21, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº **** a fls 5v do Livro B 24” conforme certidão da sentença que se junta sob designação de documento nº 5. – DOC. 5.
A ora Autora não foi parte no referido processo de execução específica.
Porém, inconformada com a aludida decisão a aqui Autora, na qualidade de comproprietária do imóvel, - nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 585º do CPC - interpôs recurso para o Venerando Tribunal de Segunda Instância que, por douto Acórdão proferido em 18 de Julho de 2019 no processo 253/2018, concedeu provimento ao mesmo, anulando todo o processado após as citações pelo Tribunal Judicial de Base realizadas no âmbito dos autos ali registados com o nº CV2-11-0008-CAO (cfr. doc. 5)
Em síntese, foi entendimento do Tribunal que:
«[…]
No caso vertente, trata-se de uma acção de execução especifica intentada pelo promitente comprador, ora Autor, contra a promitente vendedora C (Ré nos autos), sendo esta titular de metade indivisa do imóvel nº **** melhor identificado nos autos.
Enquanto titular de outra metade indivisa do mesmo imóvel, a recorrente não teve qualquer intervenção no contrato promessa de compra e venda celebrado entre o Autor A e a Ré C.
[…]
No caso vertente, não obstante que a recorrente não é parte outorgante do contrato promessa, a verdade é que a procedência da acção de execução especifica depende de a recorrente, na qualidade de preferente legal, não vir exercer o seu direito de preferência na compra do prédio.
Nestes termos, para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, no sentido de obter regulamentação definitiva da situação concreta das partes relativamente ao pedido de execução especifica da metade indivisa do imóvel nº ****, há de mandar citar a recorrente, na qualidade de comproprietária da outra metade indivisa do prédio, para, querendo, intervir na acção com vista a apurar se a mesma pretende exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel. […]»
Não conformada com a sobredita decisão o aqui 1º Réu recorreu para o Venerando Tribunal de Última Instância que, concedendo provimento ao recurso, em decisão proferida em 05 de Junho de 2019, no processo 138/2019, revogou o Acórdão recorrido.
Resultou expresso no aludido acórdão que:
«[…] Nos termos do estatuído no art. 1308° do C.C.M (…)
Remetendo o transcrito comando legal para os “artigos 410° a 412°”, vale a pena atentar que, em conformidade com primeiro destes, e sob a epígrafe “Conhecimento do preferente” se estatui aí que (…).
Em face do assim preceituado, desde logo resulta que o direito de preferência pode ser exercido, (digamos que, no “momento ideal”), perante a “comunicação do projecto de venda” a que se refere o n.° 1 do aludido art. 410° do C.C.M. (e art. 1220° do C.P.C.M.), cabendo ao preferente observar o que aí se prescreve.
In casu, diversa é a situação.
No caso dos autos, a “venda”, (ainda que através da decretada “execução específica”), está “consumada”, ultrapassada estando a fase da possibilidade do preferente (optar por) aceitar ou não o “projecto de venda”, podendo, apenas, “reagir” à mesma.
[…]
Com efeito, é caso para se dizer que o “direito de preferência” em questão nasce com a sentença de execução específica, antes disso, existindo, apenas, uma mera “expectativa jurídica”
E, a ser assim, sentido cremos que não faz anular-se todo o processado que culminou com a sentença que decretou a execução específica do contrato promessa de compra e venda em questão–até porque não se vislumbra viabilidade prático-processual em se “enxertar” na acção de execução específica, (proposta e já finda), uma “acção de preferência”, no âmbito da qual, após citada a ora recorrida, até pode suceder que nada venha a dizer, (com a eventual necessidade de repetição de tudo o que já se processou)–adequado se mostrando de considerar que a “reacção” que (eventualmente) pretenda adoptar, (assim como o resultado que possivelmente queria alcançar), deve antes ter lugar e ocorrer na dita “acção de preferência”, se, para tal, verificados estiveram os seus pressupostos legais.»
Entretanto C veio a falecer, conforme resulta da certidão que se junta sob designação de documento nº 6 – DOC. 6
Tendo deixado como únicos herdeiros os filhos B - aqui Autora - e I e G, aqui 2ºs Réus (Cfr. Doc. 7)
* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
A. RELATÓRIO
B (**** **** ****), casada com E, aliás E1, no regime da comunhão de adquiridos, portadora do BIR de Macau n.º 5******(2), residente em澳門氹仔東北大馬路......花園......苑...樓...座
propôs a presente acção de preferência contra
A, casado com F no regime de comunhão de adquiridos, portador do BIR de Macau nº 7******(3), residente em Macau na Rua Dois dos Jardins do Oceano nº ..., Jardins ......, Edifício “......”, ...º andar ..., Taipa, e G casado com H no regime da separação de bens, portador do HKIC nº E******(5), residente em Hong Kong em 九龍渡船角......街......樓...號...樓, e I, divorciada, portadora do BIR de Macau nº 7******(6) residente em Macau na 氹仔孫逸仙大馬路......號......花園第...座...樓...座, na qualidade de herdeiros de C (**** **** ****), com última residência em Macau, RAE, na Travessa ...... nº ..., Taipa, portadora que foi do BIR de Macau nº 7****** (1) falecida em 03 de Agosto de 2019.
É o seguinte o pedido:
- Ser judicialmente reconhecido o direito de preferência da ora Autora na aquisição pelo 1º Réu de metade indivisa do prédio urbano sito na Taipa, com o nº 21 da Rua ......, está descrito na conservatória do Registo Predial com o nº **** a fls 5v do Livro B 24 e inscrito na matriz predial sob o artigo nº 04**** e em consequência;
- Ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição efectuado a favor do 1º Réu pela inscrição nº 3****F da Conservatória do Registo Predial e
- Ser determinada a inscrição a favor da ora Autora do direito de propriedade
Funda-se o pedido na circunstância de C, do qual são herdeiros os 2º e 3º RR, ter alienado ao primeiro R., através da decisão judicial proferida no quadro de acção de execução específica (e que supriu a sua falta de vontade no cumprimento de contrato de promessa de compra e venda que com este subscreveu), a respectiva quota (1/2) no prédio supra descrito, tudo por nunca ter viabilizado o exercício do direito de preferência do A..
Suporta o A. tal pretensão por ser titular de metade indivisa da propriedade de tal imóvel.
*
Regularmente citados, os RR não contestaram, pelo que se consideraram provados os factos constantes da petição inicial (arts. 405º, nº1 C.P.Civil).
Cumprido que foi o disposto no nº2 do supra citado artº, importa proceder em conformidade.
B. SANEAMENTO
O Tribunal é absoluta e relativamente competente.
As partes têm personalidade e capacidade Judiciária, são legítimas e o A está devidamente patrocinada.
Não há excepções, nulidades ou outras questões prévias que cumpra conhecer.
*
C. MOTIVAÇÃO
DE FACTO
(...)
DE DIREITO
Questão a resolver: terá a A direito de preferência na venda da metade indivisa do imóvel supra descrito?
Vejamos.
O direito de preferência dos comproprietários na alienação de quota da coisa comum encontra assento legal na norma contida no art. 1308º nº 1 do Código Civil. Aí se estabelece que “o comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos consortes”1 2.
De acordo com o teor literal daquela disposição legal, podemos dizer que os pressupostos legais do direito de preferência ali previstos são os seguintes: (i) venda ou dação em cumprimento, a terceiros; (ii) da quota de qualquer dos consortes.
Regista-se sempre com agrado a operacionalização dos direitos de preferência dos comproprietários por assim se dar cumprimento a um desiderato do legislador em relação à propriedade: “São três os fins principais que justificam a concessão da preferência no caso especial da compropriedade: (i) fomentar a propriedade plena, que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens; (ii) não sendo possível alcançar a propriedade exclusiva, diminuir o número dos consortes; (iii) impedir o ingresso, na contitularidade do direito de pessoas com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer.”3
A forma de operacionalizar o direito de preferência supra aludido, se não se tiver concedido a preferência a quem de direito nos termos do artº410 do CC (ex vi nº2 do artº1308 do CC), é a via judicial através da acção de preferência prevista no artº1309 do CC: (nº1) - «O comproprietário a quem não se dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contando que o requeira dentro de 6 meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite, nos 8 dias seguintes ao despacho que ordene a citação, o preço devido, acrescido das despesas, quando e na medida em que o beneficiem, com emolumentos notariais e de registo e com impostos devidos pela aquisição.»
Volvendo-nos ao caso, diremos que é em tudo pertinente a citação do insuperável Ac. do TUI supra descrito na matéria assente e por definir o caminho desta decisão, caminho esse que sempre seria o nosso (sendo, de resto, incompreensível como se entendeu que a aqui A. tinha de estar presente na acção executiva específica assinalada).
Diz-se naquele A. supra citado:
«[…] Nos termos do estatuído no art. 1308° do C.C.M (…)
Remetendo o transcrito comando legal para os “artigos 410° a 412°”, vale a pena atentar que, em conformidade com o primeiro destes, e sob a epígrafe “Conhecimento do preferente” se estatui aí que (…).
Em face do assim preceituado, desde logo resulta que o direito de preferência pode ser exercido, (digamos que, no “momento ideal”), perante a “comunicação do projecto de venda” a que se refere o n.° 1 do aludido art. 410° do C.C.M. (e art. 1220° do C.P.C.M.), cabendo ao preferente observar o que aí se prescreve.
In casu, diversa é a situação.
No caso dos autos, a “venda”, (ainda que através da decretada “execução específica”), está “consumada”, ultrapassada estando a fase da possibilidade do preferente (optar por) aceitar ou não o “projecto de venda”, podendo, apenas, “reagir” à mesma.
[…]
Com efeito, é caso para se dizer que o “direito de preferência” em questão nasce com a sentença de execução específica, antes disso, existindo, apenas, uma mera “expectativa jurídica”
E, a ser assim, sentido cremos que não faz anular-se todo o processado que culminou com a sentença que decretou a execução específica do contrato promessa de compra e venda em questão–até porque não se vislumbra viabilidade prático-processual em se “enxertar” na acção de execução específica, (proposta e já finda), uma “acção de preferência”, no âmbito da qual, após citada a ora recorrida, até pode suceder que nada venha a dizer, (com a eventual necessidade de repetição de tudo o que já se processou)–adequado se mostrando de considerar que a “reacção” que (eventualmente) pretenda adoptar, (assim como o resultado que possivelmente queria alcançar), deve antes ter lugar e ocorrer na dita “acção de preferência”, se, para tal, verificados estiveram os seus pressupostos legais.»
Resulta deste extracto que a A. podia e devia reagir a referida venda através desta acção, como o fez, e por não lhe ter sido comunicado qualquer projecto de venda como supra resulta assente: «C - promitente vendedora e então comproprietária da aqui Autora - nunca comunicou à Autora as condições da venda, nomeadamente o exacto preço de venda da metade indivisa do prédio, a data para o seu pagamento e a data para a realização da escritura.»
E ao fazê-lo, fê-lo tempestivamente através desta acção (com entrada em juízo a 16.11.20, computando o prazo a que alude o artº1309 nº1 do CPC tendo como marco a venda da metade indivisa do imóvel supra descrito, venda que se consumou com a decisão transitada da execução específica (22-6-2020) que supriu a relapsa vontade da então comproprietária da A., promitente vendedora da metade indivisa objecto de preferência: «C, entretanto falecida conforme resulta da certidão que se junta sob designação de documento nº 6 – DOC. 6, tendo deixado como únicos herdeiros os filhos B - aqui Autora - e I e G, aqui 2ºs Réus (Cfr. Doc. 7).»
Igualmente se fez o depósito a que alude tal preceito conforme consta de fls. 197, ou seja, o valor correspondente ao preço e por mais não ser devido por não se vislumbrarem as demais despesas, emolumentos (…) a que o preceito 1309º nº1 do CC alude (a venda posta em crise concretizou-se por decisão judicial, não tendo ocorrido qualquer despesa com emolumentos notariais, não se apurando quais foram as despesas do registo provisório da acção de execução específica e sua conversão em definitivo, igualmente não se apurando o imposto, sequer se foram pagos pelo 1º R., por via da transmissão da propriedade da metade indivisa que aqui se prefere).
Assim sendo, observados todos os requisitos para o efeito exigidos, debalde nos perderíamos em mais retórica a propósito da motivação da presente decisão e no sentido de fazer proceder a pretensão da A. de operacionalizar o seu direito de preferência.
Impõe-se, pois, a procedência da acção, reconhecendo-se à A. o direito de preferência na venda da metade indivisa do prédio que se identifica na matéria assente e, em consequência, operacionalizando-se a substituição do R. A, na qualidade de comprador que até ora manteve, pela A. B (com eficácia desde a data de trânsito em julgado da decisão de execução específica referida supra, ou seja, 22-6-2020 (fls.98)), assim também se determinado o cancelamento da inscrição nº3****F, constante do registo predial do imóvel descrito na CRP sob o nº****, com consequente registo a favor desta B.
C. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, julgo totalmente procedente por totalmente provada a presente acção e, em consequência disso, reconheço à A. o direito de preferência na venda da metade indivisa do prédio que se identifica na matéria assente e, por tal facto, decreto a substituição do R. A, na qualidade de comprador que até ora manteve, pela A. B, com eficácia desde a data de trânsito em julgado da decisão de execução específica referida supra, ou seja, 22-6-2020 (fls.98).
Mais se decide pelo cancelamento da inscrição nº3****F, constante do registo predial do imóvel referido e descrito na CRP sob o nº****, com consequente registo a favor da A..
*
Comunique ao R. A o depósito do montante relativo ao preço da aquisição.
Custas da acção pelos RR.
Registe e notifique.
Quid Juris?
Neste recurso, o Recorrente veio a suscitar, perante este TSI, as seguntes quetões:
1) – Ilegitimidade activa e falta de interesse processual;
2) – Violação do caso julgado;
3) – Caducidade do direito de preferência da Autora;
4) – Abuso de direito pela Recorrida/Autora.
*
Começando pela 1ª questão levantada: Ilegitimidade activa e falta de interesse processual:
No entender do Recorrente, a Recorrida/Autora não é parte do contrato-promessa, que foi assinado entre o ora Recorrente e a mãe (promitente-vendedora) que veio a falecer, a Recorrida/Autora devia promover o incidente processual de habilitação de herdeiros no processo de execução específica (CV2-11-0008-CAO), assumindo assim a posição da Ré naquele processo.
Independentemente da exactidão ou não destes argumentos do Recorrente, importa frisar que a Recorrida/Autora deste processo, sendo comproprietária do imóvel em causa, nunca lhe tendo sido comunicado pela ex-comproprietária (falecida) o projecto de venda, traduzido na celebração do contrato-promessa pela falecida, a morte da promitente-vendedora (mãe da Recorrida/Autora) nunca faz extinção do direito de preferência da Recorrida/Autora, enquanto comproprietária nos termos do disposto no artigo 1308º do CCM. Ou seja, na venda da compropriedade a intervenção no processo da comproprietária é necessária legalmente, por isso a questão da falta de interesse processual e da ilegitimidade levantada pelo Recorrente é uma questão falsa, inútil.
Nesta óptica, manifestamente improcedem os argumentos invocados pelo Recorrente neste ponto.
*
2ª. Questão: Violação do caso julgado:
Ora, na acção intentada pelo Recorrente em que foi pedida a execução específica e que foi julgado procedente o respectivo pedido (CV2-11-0008-CAO), são partes apenas o Recorrente e C (promitente-vendedora, mãe da Recorrida, que veio a falecer na pendência da acção), não há identidade dos sujeitos, não se pode falar de caso julgado em relação à Recorrida, que não interveio naquela acção.
Mesmo que se defenda um conceito lato de caso julgado, a sentença que decretou a execução específica também não vinculou a Recorrida, já que esta nunca teve oportunidade de se pronunciar sobre o seu direito de preferência.
Improcedem deste modo os argumentos invocados pelo Recorrente nesta parte do recurso.
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3ª questão: Caducidade do direito de preferência da Autora:
Relativamente a esta questão, o Tribunal a quo já a analisou fundadamente, cujos argumentos merecem a nossa concordância, e destacamos aqui os seguintes aspectos:
O artigo 1309º do CCM exige que o preferente tenha conhecimento de elementos essenciais de venda, nomeadamente os respeitantes ao preço e às condições de pagamento.
Sobre o Recorrente recai o ónus de provar que a Recorrida já tenha tido conhecimento desses elementos há mais de 6 meses quando propunha a respectiva acção de preferência, mas tal ónus não foi cumprido pelo Recorrente.
Citem-se aqui, em nome de Direito Comparado tendo em conta a proximidade de sistemas jurídico-civis da RAEM e de Portugal, as seguintes decisões respeitantes à matéria em discussão:
“Proposta acção de preferência, aos réus cabe o ónus de provar que aos autores fora dado, há mais de 6 meses, conhecimento dos elementos essenciais do negócio realizado (Ac. RC, 5-6-1984: BMJ, 338.°-474).”
“I – O direito de preferência existe antes de efectuado o contrato de venda da coisa, mas é no momento em que a coisa é alienada que o direito de preferência se radica no seu titular, que ingressa efectivamente (e não apenas virtualmente) no património deste. II - Por isso, pode também afirmar-se que o direito é adquirido no momento da alienação (STJ, 17-12-1985: BMJ, 352.°-352).”
Vale o raciocínio dos arestos citado, mutatis mutandis, para o caso dos autos.
Pelo que, é de julgar improcedente o recurso nesta parte interposto pelo Recorrente.
*
5ª questão: abuso de direito por parte da Recorrida:
Uma realidade inegável: a Recorrida é titular do direito de preferência sobre a metade do imóvel em causa nos termos do artigo 1308º/1 do CCM. Resta saber se, ao exercitar o seu direito legalmente consagrado, a Recorrida exorbita os limites do exercício normal do direito, matéria esta que a sua alegação e comprovação impemde sobre o Recorrente, não bastam alegações abstractas.
À luz da doutrina dominante, o abuso de direito traduz-se numa das seguintes hipóteses: supressio, surrectio, eninre contra factum pro0prium, excepção doli, tu quoque e o desequlíbrio (cfr. Prof. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral I, 2ª edição, Coimbra, Livraria Almedina, pág. 249 a 269).
Não foi alegada e comprovada alguma das hipóteses apontadas, julga-se deste modo improcedente o recurso nesta parte interposto pelo Recorrente.
*
Em suma, não vale a pena complicar a situação, simplificando o caso em discussão: a Autora é titular (e a ex-comproprietária, mãe da Autora tinha, antes de falecimento) do direito de preferência legal ao abrigo do disposto no artigo 1308º/1 do CCM, o que o Recorrente tinha e tem obrigação de saber face ao teor do registo predial, porque está em causa um imóvel devidamente registado, e como tal o direito de preferência legal só pode ser entendido “extinto” nas duas situações:
a) – Renúncia expressa ou tácita pela sua titular do direito em causa;
b) – Exercício intempestivo de direito (fora de 6 meses) quando o titular sabia todas as condições de compra e venda que um dos comproprietários pretendia dispor do bem em causa.
Ora, no caso dos autos, nenhuma das hipóteses referidas está devidamente comprovada, subsiste como tal o direito de preferência legal assistido à Autora, é o que o Tribunal recorrido fez e correctamente.
*
Pelo que, é do nosso entendimento que, em face das considerações e impugnações da ora Recorrente, a argumentação produzida pelo MMo. Juiz do Tribunal a quo continua a ser válida, a qual não foi contrariada mediante elementos probatórios concretos, trazidos por quem tem o ónus de prova, razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de sustentar e manter a posição assumida na decisão recorrida.
Síntese conclusiva:
I - O artigo 1309º do CCM exige que o preferente tenha conhecimento de elementos essenciais de venda, nomeadamente os respeitantes ao preço e às condições de pagamento. Sobre o Recorrente recai o ónus de provar que a Recorrida já tenha tido conhecimento desses elementos há mais de 6 meses quando propunha a respectiva acção de preferência.
II - O direito de preferência legal só pode ser entendido “extinto” nas duas situações:
3) – Renúncia expressa ou tácita pelo titular do direito em causa;
4) – Exercício intempestivo de direito (fora de 6 meses) quando o titular sabia todas as condições de compra e venda que um dos comproprietários pretendia dispor do bem em causa (artigo 1308º do CCM).
*
Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo Recorrente.
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Registe e Notifique.
*
RAEM, 20 de Janeiro de 2022.
Relator
Fong Man Chong
Primeiro Juiz-Adjunto
Ho Wai Neng
Segundo Juiz-Adjunto
Tong Hio Fong
1 O direito legal de preferência é assumido como direito potestativo, com eficácia real, enquanto fundado em razões de interesse e ordem pública. É nesta natureza que colhe razão e fundamento que os direitos legais de preferência impliquem uma limitação à liberdade contratual e ao próprio exercício do direito de propriedade e que se imponha um dever de comunicação no qual se transmita «o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato», nos termos estabelecidos no nº 1 do art. 410º do CC.
2 Antunes Varela sustentava que, «Por um lado o preferente é titular de um verdadeiro direito de crédito, quer a preferência tenha, quer não tenha, eficácia real, por outro lado, gozando de eficácia real, como sucede com os direitos legais de preempção, a preferência atribui ainda a esse sujeito a titularidade de um direito real de aquisição» - In RLJ, 105, pp. 12/3
3 Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2º edição revista e actualizada, pág. 367.
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