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Processo nº 720/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 27 de Janeiro de 2022
Recorrentes: B, D e E
Recorrido: A
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção de impugnação pauliana contra
  B, C, D e E, todos, também, com os demais sinais dos autos,
  Pedindo que seja a acção julgada provada e procedente e, em consequência, declarar-se o direito do Autor à restituição, na medida do seu interesse, do direito que a 2ª Ré tinha sobre o imóvel que é a fracção “W10” do 10º andar “W”, do prédio sito em Macau, nºs ... a ... da Rua do ......, Bairro Fai Chi Kei, na freguesia de N. Senhora de Fátima, inscrito na matriz predial sob o nº 7****, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2****, a fls. 97V, do Livro B106, com o regime de propriedade horizontal inscrito sob o nº 3****, a fls. 146, do Livro F126M, inscrita em nome do 3º Réu D, casado com E, no regime da comunhão de adquiridos, sob os nºs 1****G e 25****G; mais se reconhecendo ao Autor o direito a executar tal direito no património dos 3º e 4ª RR., tudo com as devidas consequências legais.
  Proferida sentença, foi julgada a acção procedente e, em consequência, declara-se:
a) Que é inoponível ao autor a venda feita pelo 1º réu (B) ao 3º réu (D) de metade indivisa da fracção autónoma designada por “W10”, do 10º andar W do prédio sito em Macau com os nºs ... a ... da Rua do ......, Bairro Fai Chi Kei, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, a fls. 97v do livro B106, venda essa constante da escritura pública de 16/08/2013, exarada a fls. 130 e 131 do Livro nº **** do Notário Privado F, depositada no 2º Cartório Notarial;
b) Que, em consequência dessa inoponibilidade, o autor tem direito à restituição da garantia patrimonial do seu crédito, constituída pelo direito da 2ª ré (C) sobre a referida metade indivisa vendida, na medida em que tal restituição seja necessária à satisfação do crédito que o autor tem sobre a referida 2ª ré;
c) Que o autor pode, designadamente, executar o referido direito da 2ª ré mesmo que se encontre no património dos 3º e 4º réus.
  Não se conformando com a sentença proferida vieram os 1º, 3º e 4ª Réus interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
A. O facto de “fez isso devido à 2ª. ré ou a 2ª. ré também deu uma contribuição” não foi levantado ou confirmado e, o autor é responsável por provar tais factos para contrariar o facto de que se trata de “bem próprio” do 1º. réu, porque o facto provado já é suficiente para provar que o preço de compra era “bem próprio” do 1º. réu (apoiado por familiar e empréstimo pessoal antes do casamento), mas não há qualquer facto que possa apoiar uma confirmação contrária.
B. A decisão recorrida, sem dúvida, afirmou um facto de que o autor invocou a inexistência deste facto e o facto foi utilizado como fundamento da decisão. Portanto, a decisão recorrida apresentava vícios de que o facto provado fosse insuficiente para fundamentar a decisão, ou fosse proferida sem o apoio do facto.
C. Nos termos da aplicação subsidiária estipulada no artigo 1589º do Código Civil, mesmo que houvesse prestações pagas pela 2ª. ré, certamente era apenas uma pequena parte ou absolutamente não havia. 1/2 do direito da propriedade da “fracção W do 10º andar do Edifício XXXX” ainda deve integrar o bem próprio do 1º. réu e, a 2ª. ré só pode receber compensação.
D. Pelo que, deve julgar, nos termos do artigo 605º do Código Civil, que o autor não tem a legitimidade de impugnação, indeferindo o pedido do autor.
E. De acordo com a experiência ou hábitos sociais, ressalta-se que a assinatura da ordem de pagamento é a última etapa da concessão de empréstimo, portanto, o depoimento das testemunhas, a ordem de pagamento e a declaração de responsabilidade assinadas em 14 de maio de 1996 pelo 1º. réu e pelo 3º. réu comprovou que o pagamento do preço de imóvel do banco seria feito num curto espaço de tempo para cumprir a alínea (d) do artigo 3º estipulada no contrato-promessa, de efectuar pagamento do remanescente do preço dentro de sete dias após a emissão da licença de ocupação.
F. Pelo que, o artigo 24º de factos por ser provados: “antes de o 1º. réu e a 2ª. ré terem casado, o 1º. réu e o 3º. réu já pagaram a totalidade do preço de imóvel para aquisição da “fracção W do 10º andar do Edifício XXXX” não foi confirmado apresentava erro notório na apreciação da prova, o referido facto por ser provado devia ser provado.
G. Nos termos do artigo 1604º, aplicando-se subsidiariamente a alínea b) do no. 1 do artigo 1584º, por virtude de direito próprio anterior ao casamento ou à adopção do regime da comunhão de adquiridos não são considerados bens comuns. Mesmo se o 1º. réu procedesse à disposição de 1/2 do direito de propriedade da “fracção W do 10º andar do Edifício XXXX”, isso não constituirá má-fé nem prejudicará o autor.
H. Pelo que, existem contradições entre os artigos 16º a 18º dos factos provados e os artigos 21-23 dos factos provados.
I. A partir do registo de imóvel e do contrato-promessa anexado aos autos, pode-se concluir que o 1º. réu assinou um contrato-promessa antes do casamento (menor) e pediu dinheiro emprestado em seu próprio nome, esses bens eram os bens pré-matrimoniais do 1º. réu e, os bens trocados por tais bens, apesar de o contrato de compra e venda ser formalmente assinado após o casamento, deviam integrar os bens individuais do 1º. réu.
J. A decisão recorrida interpretou erroneamente o artigo 1604º, aplicando-se subsidiariamente a alínea b) do no. 1 do artigo 1584º, artigos 1589º e 605º do Código Civil.
K. Quanto ao acto de venda da quinhão da fracção, a declaração tácita não possuía qualquer possibilidade, em relação ao acto de o 1º. réu ter vendido 1/2 do direito de propriedade da “fracção W do 10º andar do Edifício XXXX” ao 3º. réu e à 4ª. ré, não existia o acto tácito por parte da 2ª. ré, uma vez que não existia “é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.”, não existia a eficácia da declaração de vontade devido à expressão tácita ou presunção de que a lei considerava tácita.
L. A decisão recorrida interpretou e aplicou erroneamente as disposições dos artigos 605º, 607º e 209º do Código Civil.
  Contra-alegando veio o Autor apresentar as seguintes conclusões:
a) Estão reunidos nos presentes autos os requisitos de que deriva a decisão de impugnação pauliana julgada procedente.
b) Os Réus recorrentes apenas impugnam o requisito que se traduz na “diminuição da garantia patrimonial” da 2ª Ré porque, como dizem, o bem alienado não era um bem comum do casal constituído pelo 1º e 2ª Réus.
c) Incumbia-lhes provar o facto que alegaram, o que não lograram fazer.
d) Deve, pois, improceder o recurso interposto, mantendo-se a sentença do Tribunal “a quo” nos seus precisos termos.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. FACTOS
  
  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) O 1.º réu casou-se com a 2.ª ré em 1997 sem ter escolhido nenhum regime de bens.
b) Em 21/06/2000, os 1.º, 2.ª e 3.º RR. compraram – na proporção de 1/2 (metade), para os 1.º e 2.º RR., e 1/2 (metade) para o 3.º R., ainda como solteiro – a fracção autónoma designada por “W10” do prédio sito na Rua ......, n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 2****.
c) Em 14 de Março de 2012, com base do contrato de mútuo aludido no item 3 e da livrança aludido no item 4, o A. requereu a execução contra a 2.ª R., pelo valor, então em dívida, de HKD$6.270.000,00, equivalentes a MOP$6.470.640,00, acção essa corre os seus termos sob o n.º CV1-13-0022-CEO.
d) O 1.º R., em 16/08/2013, vendeu ao 3.º R. a metade (1/2) indivisa da fracção autónoma “W10”, de que ele, o 1.º R. e a sua mulher, a 2.ª R., eram proprietários pelo preço de MOP$131.810,00.
e) Os 3º e 4º réus são casados entre si no regime de participação nos adquiridos.
f) Os 1.º e 3.º RR. são irmãos.
g) Em 10 de Novembro de 2011, o Autor concedeu à 2.ª Ré um empréstimo no valor de HKD$5.500.000,00, equivalente a MOP$5.676.000,00, empréstimo este que ficou titulado por um contrato de mútuo entre ambos assinado.
h) A 2.ª Ré subscreveu uma livrança de HKD$6.050.000,00 para garantir as suas responsabilidades no contrato de mútuo aludido no item 3.
i) O empréstimo aludido no item 3 foi concedido pelo prazo de 1 ano.
j) O empréstimo aludido no item 3 vencia juros, calculados à taxa convencionada de 1% ao mês.
k) Os juros do empréstimo aludido no item 3 são liquidados até ao dia 11 de cada mês subsequente.
l) A 2.ª R., em Janeiro de 2012, deixou de pagar ao A. os juros que, nesse mês, se venceram.
m) Em 10 de Novembro de 2012, a 2.ª Ré não devolveu ao A. o capital mutuado.
n) No processo de execução instaurada pelo Autor contra a 2.ª Ré, não obstante terem sido penhorado já direitos da 2.ª R. sobre um bem imóvel, o valor destes direitos não é suficiente para pagar o valor em dívida.
o) O 1.º Réu vendeu a metade indivisa que ele e a 2.ª R. detinham na fracção autónoma “W10” sem o consentimento expresso da 2.ª R.
p) O 1.º R. vendeu a metade indivisa que ele e a 2.ª R. detinham na fracção autónoma “W10” por um preço igual ao valor matricial correspondente.
q) O 1.º R. vendeu a metade indivisa que ele e a 2.ª R. detinham na fracção autónoma “W10” por um preço muito inferior ao respectivo valor real.
r) Os 1.º, 3.º e 4.º RR. tinham conhecimento da situação de manifesta incapacidade económica da 2ª Ré
s) Os RR fizeram o negócio aludido no facto assente D. para que o Autor ficasse impedido de nomear à penhora o direito indiviso que a 2.ª R. detinha no imóvel vendido.
t) Os RR. tinham a consciência de que a venda de metade da fracção autónoma “W10” aludido no facto assente D. visava prejudicar o A..
u) RR. tinham consciência do prejuízo que o negócio aludido no facto assente D. causava ao Autor.
v) 2.ª R., até à data, não reagiu à alienação aludida no facto assente D.
w) No processo penal n.º CR2-16-0155-PCC, com base no Contrato de mútuo celebrado em 10 de Novembro de 2011 entre o autor e a 2.ª ré e na livrança assinada pela 2.ª ré, o autor pediu, na qualidade de assistente e requerente civil, ao Tribunal a condenação oficiosa em indemnização e no dia 13 de Junho de 2017 o Tribunal condenou a aqui segunda ré a indemnizar o autor no montante de HKD$5.500.000,00 acrescido de juros legais a contar da data do Acórdão até o integral pagamento.
x) Em 30 de Março de 1995, o 1.º réu era solteiro.
y) Em 30 de Março de 1995, os 1.º e 3.º réus celebraram o Contrato-promessa de compra e venda da fracção “EDF. XXXX, 10.º andar W” pelo preço de HKD$449.860,00, sendo o respectivo documento constante de fls. 49 a 50 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
z) Os 1º e 3º réus pediram juntos ao Banco YYY, S.A. o crédito à habitação no valor de HKD$344.874,00; foi autorizada a concessão desse crédito para uso de comprar a fracção “EDF. XXXX, 10.º andar W”.

  O recurso interposto versa essencialmente sobre a matéria de facto que o tribunal “a quo” entendeu ter sido provada.
  Segundo os Recorrentes e Réus na acção havia o tribunal “a quo” de ter dada como provada a matéria do item 24º da Base Instrutória com base nos depoimentos da testemunha G mãe do 1º e 3º Réu e da testemunha H mãe da segunda Ré.
  Ora sobre esta matéria o que consta da fundamentação do tribunal aquando da resposta à Base Instrutória é o seguinte:
  «A quarta testemunha inquirida demonstrou conhecimento dos factos sobre que depôs por ser a mãe dos primeiro e terceiro réus, tendo dado conta ao tribunal da forma como os filhos negociaram a compra do imóvel em discussão nos autos, com a ajuda financeira da própria testemunha e com recurso a empréstimo bancário. Apesar do presumível interesse em que o tribunal decida em sentido favorável aos réus, prestou depoimento claro, pormenorizado embora algo conclusivo e tendo referido, designadamente não saber a razão por que a segunda ré figurou na escritura de compra.
  A quinta testemunha inquirida demonstrou conhecimento dos factos sobre que depôs por ser a mãe da segunda ré e sogra do primeiro réu, tendo vivido com o casal após o casamento, tendo prestado depoimento de forma algo titubeante e afectada pela situação de ausência prolongada da segunda ré para o exterior da RAEM. O depoimento foi também algo conclusivo e incoerente, designadamente quanto à afirmação que a segunda ré não contribuiu com dinheiro para pagamento do preço do imóvel apesar de já trabalhar.
  Quanto à prova documental, foi avaliada tendo em conta que nenhum dos documentos juntos aos autos mereceu razões de dúvida, quer quanto à sua genuinidade, quer quanto ao seu conteúdo.
  (…)
  Quanto ao quesito 24º (os 1º e 3º réus pagaram o preço de compra antes do casamento do primeiro réu), a convicção do tribunal no sentido de não estar provada a matéria quesitada ancorou-se na total falta de prova, pois que as duas últimas testemunhas inquiridas não depuseram em sentido afirmativo e a escritura de compra e venda (fls. 55 a 64) indicia que o preço foi pago no ano 2000, depois do casamento do 1º réu em 1997, pois foi aí que o Banco concedeu empréstimo aos réus, a qual poderá ter sido destinado ao pagamento do preço.».
  Das passagens dos depoimentos destas testemunhas transcritas pelos Recorrentes não resulta o contrário do que consta da convicção do tribunal.
  A mãe dos 1º e 3º Réus sabe dos pagamentos por si feitos para ajudar os filhos a comprarem o imóvel dos autos, e quanto ao mais sabe apenas que os filhos pediram empréstimo ao banco para a compra da fracção, situa-o mais ou menos em 1996, o valor indicado está próximo do pedido, mas já não sabe porque é que a 2ª Ré participa na escritura de compra do imóvel nem o justifica e nada diz quanto ao empréstimo então contraído e seu pagamento.
  O mesmo se diga do depoimento da testemunha H que nem sabe se a filha pagou ou não apesar de trabalhar nem tão pouco quando compraram.
  Dos documentos que constam dos autos o que resulta é que os 1º e 3º Réus assinaram a declaração de responsabilidade e a livrança no valor de HKD380.000,00 em 14.05.1996 – cf. fls. 51 e 52 -. Mas os honorários/despesas do advogado quanto ao registo da compra e hipoteca são pagos em 21.06.2000 quando os 1º e 2º Réus já estão casados – cf. fls. 54 -, na escritura de compra e venda e facilidades bancárias realizada em 21.06.2000 a 2ª Ré outorga e reconhece-se devedora da quantia de HKD344.874,00 – cf. fls. 55 a 64 – e este empréstimo apenas vem a ser dado como liquidado pelo banco em 25.05.2010 – cf. fls. 53 e 65 -.
  Ou seja durante a constância do casamento dos 1º e 2ª Réus é contraído um empréstimo naquele valor para pagar a compra da fracção autónoma independente desse empréstimo até já ter sido contraído apenas pelos 1º e 3º Réus anos antes, eventualmente em 1996 mas de 1996 a 2000 apenas se pagou a diferença dos iniciais HKD380.000,00 para as HKD347.874,00.
  Quem pagou, como foram feitos os pagamentos, de que conta saiu o dinheiro, quem era titular da conta onde eram feitos os débitos para liquidação do empréstimo, quem e como provisionava para que essa conta tivesse dinheiro para os pagamentos e a origem do mesmo, nada se diz nos autos, pelo que, tendo em conta o regime de casamento entre os 1º e 2ª Réus e a data do empréstimo outra resposta não poderia ter sido dada ao item 24º da Base Instrutória que não fosse a de não provado.
  Quanto à alegada contradição entre as respostas dadas aos itens 16º a 18º e 21º a 23º da Base Instrutória, pelas razões constantes da fundamentação do tribunal a quo resulta evidente não haver contradição alguma, uma vez que, pese embora o bem haja sido prometido comprar quando o 1º e 2ª Ré ainda eram solteiros a escritura de compra e venda e subsequentes pagamentos só se realizaram quando estes já estavam casados, pelo que, não se provou que o bem não fosse comum do casal.
  Sobre esta matéria veja-se Acórdão deste Tribunal de 15.10.2021 proferido no processo nº 240/2021:
  «Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
  Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
  “1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
  2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
  Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
  Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
  A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
  Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
  Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
  Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
  Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão aos autores.».
  Destarte, não resultando da fundamentação do tribunal “a quo” quanto às respostas dadas à Base Instrutória, erro grosseiro e manifesto, de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso quanto à matéria de facto.
  
2. DO DIREITO
  
  Em sede de direito vêm os Recorrentes imputar à decisão recorrida a errada aplicação do direito.
  É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «1. Considerações gerais.
  Sintetizando o objecto desta acção composto pelo pedido e pela causa de pedir que lhe serve de fundamento, temos que o autor invoca que um contrato de compra e venda celebrado entre os 1º e 3º réus não lhe é oponível porque, sendo o bem vendido um bem comum do casal a que pertence o réu vendedor, a venda reduz a garantia patrimonial do crédito que o autor tem sobre a esposa do réu vendedor, a 2ª ré, uma vez que esta não lhe restituiu o dinheiro que dele recebeu emprestado e não tem outros bens.
  A impugnação pauliana é um meio concedido ao credor para defender e conservar, contra actos do devedor que não sejam de natureza pessoal, a garantia geral do seu crédito, a qual é constituída essencialmente pelo património do devedor (arts. 605º e 596º do CC). Essas defesa e conservação da garantia operam tornando ineficazes em relação ao credor os actos impugnados (art. 612º do CC). É evidente o interesse do credor em que se mantenha na titularidade do devedor o património deste, pois é esse património que irá “cumprir” a correspectiva obrigação do devedor e é ele que, até efectivo cumprimento, garante que tal cumprimento irá ocorrer.
  A protecção dos interesses do credor contra os interesses do terceiro que adquiriu gratuitamente bens do devedor é de fácil aceitação, tendo em conta que o terceiro se enriquece sem esforço e o credor se vê privado da garantia do seu crédito sem contribuir para isso, devendo ceder aquele que pretende obter um benefício gratuito perante aquele que pretende evitar um prejuízo1. Já quando o terceiro adquiriu onerosamente do devedor, os seus interesses só devem ceder perante os do credor se a aquisição do terceiro merecer um mínimo de censura por este saber que da sua aquisição ocorria prejuízo para o credor. É esta a doutrina do art. 607º do CC.
  Também é de fácil aceitação a protecção dos interesses do credor contra os actos de redução do património do devedor que ocorram depois de o crédito se ter constituído. Na verdade, o credor aceita constituir o seu crédito com expectativas quanto às forças do património do devedor para cumprir, pelo que a redução posterior deste património redunda em frustração de expectativas legítimas do credor, as quais, por isso, devem ser protegidas. Já quando a redução patrimonial na esfera jurídica do devedor ocorreu antes da constituição do crédito, o credor não pode, no momento em que aceita constituir o seu crédito, ter expectativas de vir a obter o cumprimento desse mesmo crédito através de um património que já existiu no património do devedor, mas que já ali não existe. Se o credor tiver tais expectativas sem que seja o devedor a provocar-lhas maliciosamente, elas não merecem protecção por não terem justificação que as legitime.
  No fundo, o fundamento da ineficácia perante o credor dos actos de redução patrimonial do devedor está na necessidade de equilíbrio entre a liberdade contratual do devedor, e os interesses do terceiro e do credor2.
  2. Da diminuição da garantia patrimonial.
  Dispõe o art. 605º do CC que “os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor…”.
  E dispõe o art. 596º do mesmo código que “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora…”.
  Um dos requisitos de procedência da impugnação pauliana é, pois, que o acto impugnado diminua a garantia patrimonial do crédito, isto é, que reduza os bens do devedor susceptíveis de penhora. No caso em apreço está em causa uma venda. A venda só reduz a garantia se o bem vendido pertencer ao devedor, seja devedor principal, seja condevedor, fiador ou outro. Cabe, pois averiguar se o bem vendido pertencia à 2ª ré, situação que é facto constitutivo do direito do autor à impugnação pauliana do contrato de compra e venda celebrado pelo marido da ré devedora. Na verdade, o autor não alegou que o 1º réu também é devedor, uma vez que não alegou que a dívida contraída pela 2ª ré é comunicável ao respectivo cônjuge, o 1º réu.
  O autor alegou que o bem vendido pertencia à segunda ré enquanto cônjuge meeira e os 1º, 3º e 4º réus alegaram que pertence em exclusivo ao 1º réu (indirectamente alegaram também que pertence ao 3º réu se se atentar na alegação da participação meramente formal do 1º réu na compra, para criar aparência favorável à obtenção de empréstimo bancário).
  Como regra geral, os factos constitutivos pertencem ao ónus de prova a cargo do autor, sendo este que tem de demonstrar os factos de onde deriva o seu direito (art. 335º, nº 1 do CC).
  Ocorre que o 1º réu e a 2ª ré, casados entre si, tinham registada a seu favor a aquisição da referida metade indivisa vendida através do contrato impugnado (al. b) da factualidade provada e certidão de fls. 246). O autor beneficia, pois da presunção que o direito da 2ª ré existe, presunção advinda do art. 7º do Código do Registo Predial. Se o autor tem o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito, esta regra inverte-se quando há presunção legal (arts. 335º e 337º do CC). São pois os réus que têm o ónus de prova de que o bem vendido não pertence à 2ª ré. Para dar satisfação a tal ónus invocaram duas situações fácticas. Alegaram os 1º, 3º e 4º réus que o bem vendido (metade indivisa do direito de propriedade) não era bem comum do casal do réu vendedor por duas razões:
  - Apesar de ter sido adquirido por escritura pública celebrada na pendência do casamento do réu vendedor, foi adquirido com prévia celebração de um contrato-promessa de compra e venda celebrado antes do casamento tendo por promitentes-compradores apenas os 1º e 3º réus, ainda solteiros;
  - O 1º réu figurou como comprador na escritura de compra e venda apenas formalmente, para permitir ao terceiro réu, que também figurou como comprador, obter empréstimo bancário em melhores condições.
  Por um lado, os réus alegam que o bem vendido é bem próprio do réu vendedor em nada pertencendo à ré devedora. Por outro lado, alegam que tal bem nem sequer é do réu vendedor, pois este era apenas titular aparente e formal por ter figurado como comprador para permitir ao verdadeiro comprador, o 3º réu, obter mais facilmente empréstimo bancário. Apesar da contradição lógico-jurídica, pois que as duas situações se excluem mutuamente e só uma delas pode ocorrer, e apesar de os réus terem abandonado esta questão nas suas alegações de direito, há que saber se o réu vendedor é proprietário exclusivo ou se nem é proprietário por ter sido mero mandatário sem representação ou mero “testa de ferro” do terceiro réu quando celebrou a escritura pela qual foi adquirida a metade que mais tarde vendeu ao 3º réu e que aqui se impugna.
  Quanto à aquisição meramente formal pelo 1 réu para favorecer o 3º réu na contracção de empréstimo bancário.
  É evidente que a alegada intervenção do primeiro réu na compra para favorecer o seu irmão junto da banca na obtenção de empréstimo não o impede de adquirir para si ou para o casal nem impede a impugnação pauliana. Com efeito, não foi alegada uma situação de simulação ou acordo simulatório com o vendedor para enganar o Banco, pelo que o contrato de compra e venda pelo qual o 1º réu e a 2ª ré adquiriram não pode ser considerado nulo com manutenção da validade do eventual contrato dissimulado relativo à aquisição pelo 3º réu (art. 232º do CC). Por outro lado, se o vendedor não sabia da vontade do primeiro réu adquirir para o 3º réu, então tratar-se-ia de mera reserva mental sem qualquer interferência na validade do contrato (art. 237º, nº 1 do CC). Por outro lado ainda, caso se tratasse de mandato sem representação, também o 1º réu adquiriria para si ou para o casal, ficando com o dever de transmitir para o 3º réu (arts. 1106º e 1107º do CC) e essa transmissão seria feita pela venda impugnada que, assim, continuaria a poder ser impugnada, desde que a aquisição pelo 1º réu tivesse ocorrido como bem comum do casal.
  Não foi alegada simulação nem reserva mental na compra feita pelo 1º réu e é inócuo ponderar a situação de mandato sem representação, uma vez que a venda feita pelo 1º réu destinada a transferir a propriedade para o 3º réu mandante também poderia ser impugnada.
  Não impede, pois a impugnação o alegado pelos réus quanto à compra pelo 1º réu apenas para favorecer o 3º réu junto da banca.
Quanto à aquisição pelo primeiro réu como bem próprio.
O 1º réu e a 2ª ré eram casados no regime da comunhão de adquiridos quando celebraram a escritura pública onde declararam comprar metade indivisa da fracção autónoma de prédio urbano designada por “W10” que o 1º réu vendeu depois ao 3º réu através do contrato ora impugnado pelo autor (al. a) da factualidade provada e art. 1717º do anterior Código Civil vigente na data do casamento – 1997).
Nos termos conjugados do disposto nos arts. 1603º, 1604º e 1584º, nº 1, al. b) do CC, que disciplinam o regime conjugal de bens da comunhão de adquiridos, não fazem parte da comunhão conjugal os bens que advierem para o cônjuge na constância do casamento por virtude de direito próprio anterior ao casamento.
O 1º réu comprou no estado de casado após ter celebrado, ainda quando solteiro, um contrato-promessa de compra e venda onde prometeu comprar a metade indivisa da fracção autónoma “W10” que vendeu ao 3º réu.
A questão é, pois, esta: fica excluído da comunhão conjugal o bem comprado por ambos os cônjuges na pendência do casamento se um deles, antes do casamento, celebrou um contrato promessa onde prometeu comprar tal bem?
A resposta não tem sido unânime na jurisprudência portuguesa3, que aqui se invoca considerando a similitude dos sistemas jurídicos e por se desconhecer Jurisprudência da RAEM publicada sobre a questão (os dois acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância referidos nas alegações de direito dos réus não tratam da questão aqui em discussão, pois que um se reporta à posição contratual de promitente comprador como bem próprio ou comum e não ao direito de propriedade já adquirido através da compra prometida - processo nº 27/2020 - e outro se reporta a bens adquiridos depois do divórcio por um dos ex-cônjuges - processo nº 5/2020).
Também a doutrina está dividida na resposta à questão de saber se o contrato-promessa configura direito próprio anterior ao casamento capaz de excluir da comunhão os bens adquiridos na pendência do casamento em cumprimento da promessa anterior4.
A boa resposta há-de encontrar-se na consideração de três aspectos interpretativos: os exemplos típicos dados pelo nº 1 do art. 1585º do CC; a norma da al. c) do art. 1587º do mesmo código e a natureza jurídica do casamento.
O casamento é um contrato destinado à constituição de uma comunhão de vida plena por duas pessoas de sexo diferente que empenhadamente cooperam entre si num ambiente de igualdade e respeito mútuo (cfr. arts. 1462º e 1532º a 1537º do CC). Se por força da lei ou de convenção houverem de ser comuns os bens adquiridos na pendência do casamento, é sublime que se trate dos bens adquiridos pelo esforço conjunto, devendo presumir-se que existe tal conjugação sadia de esforços. Ora, a outorga como promitente-comprador de um contrato-promessa antes do casamento nada ou muito pouco diz sobre a cooperação empenhada ou sobre a falta dela na futura aquisição efectiva através da compra prometida. Nada diz para se saber se a futura aquisição efectivada através da celebração da compra prometida é o “resultado do esforço conjugado de ambos os cônjuges ou apenas por um deles, mas com a instigação e apoio estimulante do outro, no desenvolvimento de um projecto comum, com vista a resultados benéficos e satisfatórios. O núcleo do património comum limita-se, conforme pondera o Professor Antunes Varela (Ob. cit., pág. 371), aos bens cuja aquisição, assenta numa real cooperação dos cônjuges"5 e a celebração de um contrato promessa antes do casamento não exclui que a futura aquisição resulte de cooperação, nem demonstra que resultou de esforço unilateral.
É por tudo isso que também o art. 1587, al. c) do CC dispõe que não são comuns os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges. Se um dos cônjuges prometeu comprar antes do casamento e o preço do contrato definitivo foi pago pelo outro cônjuge não promitente com dinheiro ou valores seus, a coisa adquirida será bem próprio do cônjuge que pagou e não do cônjuge que prometeu comprar.
Se se atentar nos exemplos típicos de bens adquiridos por virtude de direito próprio anterior que constam do nº 1 do art. 1585º concluir-se-á que em todos eles o esforço que havia a fazer para adquirir, se o havia, foi feito antes do casamento e que os factos aquisitivos que demandam actuação do adquirente ocorrem antes do casamento. Assim não acontece com o contrato promessa se o preço ou parte dele só for pago no momento da celebração do contrato definitivo.
Alguma jurisprudência e doutrina dão ainda relevância ao facto de se tratar de contrato promessa com eficácia real porquanto a futura aquisição tem por base um direito real de aquisição, especialmente se ocorrer em acção de execução específica em que é exercido um direito próprio de um só dos cônjuges. Porém esta situação é diferente da dos presentes autos, pelo que não merece aqui atenção especial.
O contrato-promessa alegado pelos réus não é suficiente para fazer da metade indivisa vendida pelo contrato impugnado um bem próprio do primeiro réu. E não se provou que a aquisição por parte do primeiro réu e da segunda ré tivesse sido feita com dinheiro ou valores próprios do primeiro réu, razão por que tem de se considerar que o bem vendido pelo contrato impugnado pelo autor é bem comum do casal constituído pelo réu vendedor, o 1º réu, e pela ré devedora, a 2ª ré. É o que se dispõe no art. 1603.º do CC (“se o regime de bens … for o da comunhão de adquiridos, cada cônjuge conserva o domínio e fruição dos bens que lhe pertenciam à data do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens e passa a ser titular em comunhão com o outro cônjuge dos bens adquiridos por qualquer dos cônjuges na constância desse regime, que não sejam exceptuados por lei, nos termos dos artigos seguintes”).
Está, pois, verificado o primeiro dos requisitos de procedência da impugnação pauliana: o acto impugnado envolve diminuição da garantia patrimonial do crédito.
3. Do acto do devedor.
Só estão sujeitos à impugnação pauliana os actos do devedor6, sejam unilaterais ou não. É o que resulta de várias disposições legais, designadamente do art. 607º, nº 1 e 611º, nº 1 do CC. Porém, no caso dos autos parece impugnar-se um acto de terceiro, do marido da devedora que, sem o consentimento desta, vendeu a terceiro uma quota-parte de um imóvel que era bem comum do casal. De facto o marido da devedora é terceiro se não se alegar e provar que a dívida contraída pela sua mulher é também da responsabilidade do marido, sendo que o autor não alegou que há comunicabilidade da dívida ao réu vendedor.
Porém o acto impugnado é ainda da ré mulher do vendedor, que, por omissão ou de forma tácita, nele participou conluiada, como o autor alegou designadamente no art. 32º da petição inicial e se provou (als. s) a v) da factualidade provada). É que a ré mulher do vendedor apenas não expressou o seu consentimento (sem o consentimento expresso, refere-se na al. o) dos factos provados), mas consentiu ao conluiar-se com o marido vendedor e com o cunhado comprador, como resulta dos factos provados referidos sob as alíneas s) a v).
Ao não invocar a anulabilidade decorrente da falta da sua participação na venda de um bem comum do casal que necessitava do seu consentimento, a ré mulher do vendedor sanou, com a sua omissão, o eventual vício do contrato. E ao ter intenção conjunta com os demais réus de impedir a nomeação à penhora do bem vendido, aquela ré foi parte no contrato impugnado, porquanto deu o seu consentimento à actuação do vendedor, ainda que de forma tácita.
Não está em causa a impugnação pauliana do acto de dar consentimento, ainda que de forma tácita, nem está em causa a impugnação pauliana do acto omissivo de não arguir a anulabilidade do contrato por falta de consentimento. Está em causa o próprio contrato de compra e venda em que a própria 2ª ré é outorgante, ainda que na forma de consentidora ou anuente.
O acto impugnado é, pois, um acto do devedor para efeitos de impugnação apuliana. E não é o acto de consentir. É o acto de contratar. Contratar de forma sub-reptícia ou conluiada.
De todo o modo, diga-se que as omissões do devedor que já não podem ser objecto de acção sub-rogatória do credor são impugnáveis através da acção apuliana desde que tenham valor de declaração negocial, como é o caso da não arguição da anulabilidade que tem o valor de convalidação do contrato7. Assim, mesmo que a ré devedora não argua a anulabilidade e o credor também já não o possa fazer em sub-rogação da devedora por já ter expirado o prazo de arguição, mesmo assim o credor pode recorrer à acção pauliana no prazo permitido para esta.
4. Dos demais requisitos de procedência da impugnação pauliana (natureza não pessoal do acto, constituição do crédito em data anterior ao acto, actuação de má fé do devedor e do terceiro e impossibilidade de satisfação integral do crédito, ou agravamento dessa impossibilidade).
Dos factos provados resulta evidente que está em causa a impugnação de um acto oneroso (venda), um acto que não tem natureza pessoal e que ocorreu depois da constituição do crédito do autor sobre a segunda ré, mulher do réu vendedor. Com efeito, a venda ocorreu em 2013 e a 1ª ré contraiu em 2011 o seu dever de restituir ao autor, no prazo de um ano, a quantia que dele recebeu emprestada (als. c), d), g) e i) dos factos provados).
Trata-se, pois, da impugnação de um acto oneroso (venda) do devedor (ainda que com a participação de terceiro - marido da devedora sem que se alegue que a dívida lhe é comunicável) que ocorreu em data posterior à constituição do crédito do autor sobre o cônjuge do vendedor.
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 605º e 607º do CC que os actos onerosos que não sejam de natureza pessoal e envolvam diminuição da garantia patrimonial dos créditos constituídos em data anterior podem ser impugnados pelo credor se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé com consciência do prejuízo que o acto causa ao credor e “resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”. Trata-se de requisitos cumulativos8, pelo que, faltando um, não pode proceder a pretensão de impugnação.
Nos termos do disposto no art. 606º do CC., “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor”. Nos termos gerais, com a referida excepção relativa à existência de bens aptos a solver a dívida, cabe ao autor a prova dos factos de que depende a procedência da impugnação pauliana.
Da factualidade provada, não restam dúvidas que também estes pressupostos de procedência estão verificados, apenas reclamando alguma atenção o requisito da má-fé do devedor e do terceiro que praticaram o acto oneroso redutor da garantia do crédito e da impossibilidade de satisfação do crédito causada ou agravada pelo acto impugnado.
No que respeita à má-fé, consubstancia-se ela na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art. 607º, nº 2 do CC). E da factualidade provada não podem restar dúvidas que, quer a ré devedora, 2ª ré, quer o réu comprador, 3º réu, têm consciência que a venda prejudica o autor por reduzir a garantia geral do seu crédito. Além disso, resulta também que o réu vendedor, 1º réu, tem também consciência do referido prejuízo.
No que respeita à impossibilidade de satisfação do crédito causada ou agravada pelo acto impugnado, considerando que é aos réus que cabe a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor que o crédito (art. 606º do CC) e tendo-se provado que a 2ª ré (devedora) tem dificuldades económicas e que na execução que o autor intentou para cobrança do seu crédito não foram penhorados bens suficientes, não se vê como negar que do acto impugnado de venda de bem comum do casal a que a devedora pertence resulta impossibilidade de satisfação do crédito ou agravamento da impossibilidade já existente.
Do que ficou dito se conclui que todos os requisitos de procedência da impugnação pauliana estão verificados no caso em apreço.».

A douta decisão recorrida faz uma correcta interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em função da matéria de facto apurada, à qual aderimos integralmente.
Destarte, nos termos do nº 5 e 6 do artº 631º do CPC, remetendo-se para os fundamentos de facto e de direito da decisão, nega-se provimento ao recurso.

III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas a cargos dos Recorrentes.

Registe e Notifique.

RAEM, 27 de Janeiro de 2022

Relator
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro

Primeiro Juiz-Adjunto
Lai Kin Hong

Segundo Juiz-Adjunto
Fong Man Chong

  

1 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I., 4ª edição, pág. 628.
2 Cfr. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 94.
3 A título de exemplo, Acórdãos do STJ nº, 087322 (JSTJ00028698), de 14/12/1995 e nº 05A838 (JSTJ000), de 27/04/2005 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de11/10/2004, proferido no processo nº 0453208 (JTRP00037225), todos acessíveis em www.dgsi.pt, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/02/2001, citado e sumariado em Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, 3ª edição, p. 558.
4 Em sentido negativo, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, Introdução Direito Matrimonial, 3ª ed., pág. 558 e Rita Lobo Xavier, Cadernos de Direito Privado, 5 (Janeiro/Março de 2004), anotação ao acórdão da Relação de Coimbra de 21.1.2003, pág. 32. Em sentido afirmativo, Castro Mendes, Direito da Família, Lisboa, AAFDL, 1990/1991, pág. 170 e Diogo Leite de Campos, Lições de Direito de família e das Sucessões, 2ª ed., Revista e Actualizada, pág. 395.
5 Acórdãos do STJ nº, 087322 (JSTJ00028698), de 14/12/1995, acessível em www.dgsi.pt.
6 Assim também João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 107.
7 Assim também, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 113.

8 José Carlos Brandão Proença, Lições…, pág. 411, citado em Gil de Oliveira e Cândido Pinho, Código Civil de Macau, Anotado e Comentado, Livro II, Volume VIII, pág. 420.
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720/2021 CÍVEL 33