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Processo nº 575/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 17 de Fevereiro de 2022

ASSUNTO:
- Embargos
- Habilitação
- Direito de ocupação temporária
- Direito real
- Usucapião
- Prédio da RAEM

SUMÁRIO:
- Não há oposição de interesses se os executados originários vierem a ser habilitados a prosseguir nos embargos a posição do terceiro embargante em direito que este reclamava e que se vier a ser reconhecido integra a herança aberta por óbito da parte falecida;
- O direito de ocupação temporária não é um direito real e como tal o seu titular não goza de posse sobre a coisa, sendo um mero detentor;
- Não sendo o direito real e não tendo o titular do mesmo a posse da coisa nunca a poderá usucapir com base nesse mesmo direito;
- De acordo com o artigo 7º da Lei Básica o direito de propriedade de terreno, não reconhecido como propriedade privada antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), não pode ser adquirido por usucapião;
- Não é possível o reconhecimento do direito de propriedade de construção em terreno do Estado, desde que este não tivesse sido reconhecido como propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM.


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Rui Pereira Ribeiro














Processo nº 575/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 17 de Fevereiro de 2022
Recorrentes: A, B, C e D
Recorridos: Associação de Beneficiência E e outros
Interveniente Principal: Região Administrativa Especial de Macau
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  F, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar embargos de terceiro contra a execução em que são exequentes Associação de Beneficiência E e executados A e outros.
  Para o efeito alega a embargante que todas as edificações existentes no prédio em causa foram realizadas pela embargante e o marido, sendo que o prédio foi sempre usado pelo casal para ali explorarem a estância de madeiras e para as suas empresas ali terem as suas sedes, sendo que desde 1950 quando deixou de pagar rendas que se comporta relativamente ao imóvel dos autos como se fosse a dona do mesmo, tendo a posse daquele, o qual adquiriu por usucapião.
  Concluindo pede que se julguem os embargos procedentes e se declare que a embargante adquiriu por usucapião o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº XXXX.
  Concluindo-se que o prédio havia sido concedido à exequente a título de ocupação temporária e que como tal não era susceptível de ser adquirido por usucapião veio a ser proferido despacho saneador onde se julgou a acção improcedente.
  Interposto recurso daquele despacho para este Tribunal de Segunda Instância veio a revogar-se o despacho proferido, remetendo-se os autos ao tribunal a quo para que previamente à decisão se diligenciasse pela correcção do direito inscrito no Registo Predial, vindo este Acórdão a ser confirmado em recurso que dele foi interposto para o Tribunal de Última Instância.
  
  Durante as instâncias de recurso veio a falecer a embargante e um dos executados, vindo a ser habilitados para prosseguir na causa na posição destes os seus filhos, os quais são os executados originais.
  
  Rectificada a inscrição no registo predial relativamente ao imóvel em causa vem novamente a ser proferida decisão em 1ª instância onde se volta a decidir pela improcedência dos embargos ordenando-se que se prossiga com a entrega judicial.
  Não se conformando com esta decisão vêm os executados agora como habilitados da embargante interpor recurso da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1. Em 1923, G, bisavô dos recorrentes, através da transmissão feita por H, original titular do direito da concessão por arrendamento, adquiriu os terrenos concedidos por arrendamento, descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX e XXXXX, com a área total de 1.260 m2. (vd. contrato de H e sua tradução)
2. Desde 28 de Dezembro de 1926 até 4 de Agosto de 1939, G construiu nos terrenos descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX, as casas n.º1 e n.º2, obras destas registadas pela Divisão de Fiscalização da DSSOPT que tinha assinado para servir de prova. (vd. volume 6 do processo de embargos de terceiro CV2-07-0069-CAO-C, a fls. 1328 a 1378, do documento historial existente no Arquivo de Macau relativo aos dados da DSSOPT com referência: MO/AH/DSSOPT/DU/003/0001)
3. Em 3 de Fevereiro de 1929, G, junto ao Governador de Macau, através de concessão por arrendamento, tomou de arrendamento um terreno sito na Avenida do XXXXX com a área de 502,27 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.ºXXXXX. (vd. Anexo 2 – contrato e sua tradução feita pela SAFP)
4. Em 1943, o Governador de Macau, através da Portaria n.ºXXXX, proferiu despacho concedendo a G a ocupação temporária do terreno sito na Avenida do XXXXX com a área de 1755,34 m2, composto por:
* Terreno rústico descrito sob o n.ºXXXX, a fls. 213 do Livro B-26 na Conservatória do Registo predial de Macau, com a área de 1.110,32 m2;
* Terreno urbano descrito sob o n.ºXXXXX, a fls. 54 do Livro B-29 na Conservatória do Registo predial de Macau, sito na Avenida do XXXXX, n.º1, com a área de 83,24m2;
* Terreno urbano descrito sob o n.ºXXXXX, a fls. 54v do Livro B-29 na Conservatória do Registo predial de Macau, sito na Avenida do XXXXX, n.º3, com a área de 66,44 m2;
* Terreno rústico descrito sob o n.ºXXXXX, a fls. 103 do Livro B-30 na Conservatória do Registo predial de Macau, sito na Avenida do XXXXX, com a área alterada de 502,27 m2 para 495,34 m2. (vd. Anexo 3, Portaria n.ºXXXX)
5. Os supracitados terrenos descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX foram concedidos por arrendamento antes de 1943, e uma vez que, através da Portaria n.ºXXXX de 1943, novamente os terrenos foram concedidos por arrendamento, e entre os quais não foi cancelada a natureza de terrenos da concessão por arrendamento, então se tal concessão feita em 1943 padece de vício e é nula?
6. Uma vez que não é possível existir ao mesmo tempo a natureza do terreno de concessão por arrendamento e de ocupação temporária, deve o Governador, em primeiro lugar, recuperar o terreno concedido por arrendamento e conceder de novo a ocupação temporária.
7. Não tendo o Governador, contudo, declarado nula a concessão por arrendamento nem cancelado a concessão de terrenos por arrendamento, mas sim em 1943, novamente concedeu a ocupação temporária, o que fez com que existisse nos respectivos terrenos a natureza de concessão por arrendamento e de ocupação temporária.
8. Posteriormente, em 28 de Setembro de 1948, no escritório do advogado I, foi celebrado o contrato de compra e venda, a fim de ser transmitido à Associação de Beneficência E o direito de ocupação temporária dos supracitados terrenos com a área de 1755,34 m2 (descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX). (vd. anexo 4, processo de embargos de terceiro, vol. 2, fls. 439 a 444v)
9. B, descendente de G, chegou a exigir realização de exame pericial à letra e assinatura de G de 1948, e segundo o relatório da perícia, a assinatura de 1948 não foi aposta por próprio G, contudo, tal prova nunca foi mencionada nem apreciada. (vd. anexo 5 - assinatura de 1948)
10. Pelo que o contrato de compra e venda celebrado em 1948 no escritório do advogado XXX deve ser nulo.
11. De acordo com a Portaria n.ºXXXX publicada no Boletim Oficial de Macau n.º34, de 22 de Agosto de 1950, G foi autorizado a transmitir à Associação de Beneficência E o direito de ocupação temporária e em 19 de Outubro de 1950, foi celebrada a escritura pública, segundo a qual o direito de ocupação temporária foi transmitido à Associação de Beneficência E. (vd. anexo 6 – portaria n.ºXXXX, anexo 7, processo de embargos de terceiro, vol. 4, fls. 1061 a 1065v)
12. B, descendente de G, chegou a exigir realização de de exame pericial à letra e assinatura de G de 1950, e segundo o relatório da perícia, a assinatura de 1950 não foi aposta por próprio G, contudo, tal prova nunca foi mencionada nem apreciada. (vd. anexo 8 - assinatura de 1950)
13. O dia 19 de Outubro de 1950 é o festival do Duplo Nono (Chong Ieong), uma festividade tradicional chinesa, segundo o costume tradicional, toda a família de G ficou em Macau para prestar culto aos antepassados, bem como o dia 19 de Outubro de 1950 era um dia de feriado do governo de Macau, não é possível celebrar a escritura pública nesse dia para ser transmitido o direito de ocupação temporária à Associação de Beneficência E.
14. Além disso, em 1950, na celebração do contrato de transmissão do direito de ocupação temporária, a Direcção dos Serviços de Finanças indicou que o endereço do prédio em transmissão foi escrito erradamente como 南灣XXXXXX31號 (Praia Grande Patane XXXXXX n.º31) (sic.), se o próprio Iong I estivesse presente, não era possível que se tivesse mal lembrado do endereço onde exercia actividades de madeira e do seu número 36, uma vez que em 1924 já tinha requerido o certificado sobre o registo comercial do respecivo prédio sito no terreno rústico n.º36. (vd. anexo 9 – certificado)
15. Pelo que deve ser nulo o contrato de transmissão do direito de ocupação temporária celebrado na Direcção dos Serviços de Finanças em 1950.
16. Segundo o registo de receitas e despesas da Associação de Beneficência E de 1956, no qual consta que I (I) tomou de arrendamento os dois prédios sitos nos n.ºs 1 e 3 e pagou as rendas de Janeiro a Dezembro, bem como segundo o registo de receitas e despesas da Associação de Beneficência E de 1961 (após a ocorrência de grande incêndio), no qual consta que I tomou de arrendamento o terreno sito nos n.ºs 1 e 3 e pagou as rendas de Janeiro a Dezembro. (vd. anexo 10, registo de receitas e despesas da Associação E, dos anos 1956 e 1961)
17. Se fosse G quem em 1948 e 1950 tivesse celebrado com a Associação de Beneficência E o contrato de transmissão do direito de ocupação temporária, devia ser G quem tomou de arrendamento os supracitados prédios, uma vez que segundo o art.º 4.º do contrato celebrado em 1950, deve o terreno manter a finalidade de servir de estância de madeira, estaleiro e loja relativa ao mesmo estaleiro.
18. Dado que até à presente data, G e seus descendentes ainda vivem no supracitado local e exploram as actividades de estância de madeira e de estaleiro.
19. G não estabeleceu relação de arrendamento com a Associação de Beneficência E.
20. De acordo com os registos de receitas e despesas da Associação de Beneficência E de 1956 e de 1961 (após a ocorrência de grande incêndio), foi I quem estabeleceu a relação de arrendamento como a mesma Associação, mas I não é parente ou descendente de G.
21. G não sabia que existe entre I e a Associação de Beneficência E uma relação de arrendamento.
22. Na celebração do contrato de promessa de compra e venda em 1948, G não recebeu dinheiro nem esteve presente; no dia de festival do Duplo Nono em 19 de Outubro de 1950, G não se deslocou aos Serviços de Finanças para celebrar o contrato de compra e venda; quanto à relação de arrendamento estabelecida entre I e a Associação de Beneficência E em 1956 e 1961, G também não tinha ideia sobre isso.
23. Em 1959, G faleceu com a idade de 78 anos, e desde então os seus descendentes J e F continuam a viver e explorar actividade de madeira no supracitado local. (vd. anexo 11)
24. As duas casas construídas por G no período entre 1926 e 1939 nos terrenos descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX (sitos na Avenida do XXXXX n.ºs 1 e 3) foram arruinadas num grande incêndio ocorrido em 10 de Outubro de 1960. (vd. processo de embargos de terceiro CV2-07-0069-CAO, vol. 1, fls. 40 a 41)
25. J, descendente e neto de G, e sua mulher F reconstruíram no local duas casas com seus próprios fundos, incluindo quatro paredes, portão, tectos, quartos e casa de banho, etc. e para as duas casas, adquiriram o seguro contra o risco de incêndio e requereram o abastecimento de água e de energia eléctrica, bem como a instalação de telefone. (vd. processo de embargos de terceiro CV2-07-0069-CAO, vol. 1, fls. 64, 68 e 69)
26. As casas construídas nos terrenos descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX, encontram-se inscritas na matriz predial sob os n.ºs XXXXX e XXXXX.
27. Uma vez que J, descendente e neto de G, e sua mulher F, em 1960, nos terrenos descritos sob os n.ºsXXXXX e XXXXX, a expensas próprias reconstruíram duas casas, pelo que as quais são pertencentes aos bens da família do apelido Iong.
28. De acordo com o art.º 1.º da Portaria n.ºXXXX de 1943, o prazo de ocupação é contado a partir de 1 de Janeiro de 1944, pelo período de 50 anos, isto é, o prazo de ocupação temporária já expirou em 1994.
29. Actualmente, como já expirou o prazo de ocupação temporária de 50 anos, não é possível que possa a Associação de Beneficência E continuar a deter o terreno por meio de ocupação temporária.
30. Nos termos do art.º 137.º da Lei de Terras, da Lei n.º10/2013, a ocupação é titulada por licença, e nos termos do art.º 77.º, n.º1 da mesma lei, a licença de ocupação é emitida pelo prazo de um ano e caducará automaticamente se não for renovada antes do seu termo.
31. Os terrenos descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, depois de expirados em 1994, não reverteram a favor do Estado, nem foram renovados a título de ocupação temporária, mas sim foram renovados a cada dez anos através de concessão por arrendamento.
32. Com a autorização dada pela Administração, até à presente data, os terrenos foram renovados por três vezes, respectivamente em 1/1/1994, 1/1/2004 e 1/1/2014, sob a forma de concessão por arrendamento, com prazo de validade até 31 de Dezembro de 2023. (vd. anexo 13 - registo predial)
33. Os supracitados terrenos são renovados a cada dez anos sob a forma de concessão por arrendamento, não tendo a Associação requerido cada ano a sua renovação sob a forma de ocupação temporária.
34. Pelo que não é possível que possa a Associação E, em nome de ocupação temporária, continuar a deter os terrenos descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, bem como as casas neles construídas, inscritas na matriz predial sob os n.ºs XXXXX e XXXXX.
35. O processo principal do presente caso CV2-07-0069-CAO já foi julgado pelo Tribunal de Última Instância em 19 de Fevereiro de 2014, e tal acórdão já transitou em julgado.
36. F, mulher do neto de G, em 2013, intentou a acção, processo de embargos de terceiro n.ºCV2-07-0069-CAO-C, a fim de retomar, por meio de usucapião, os quatro terrenos descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, e com o falecimento em 2017 de F, mulher do neto de G, cabe agora aos herdeiros dela continuar o processo de embargos de terceiro CV2-07-0069-CAO-C.
37. Diz a decisão do TJB relativa ao processo CV2-07-0069-CAO-C que “Analisados o conteúdo constante da Portaria n.º4:815 (em particular a condição 8.ª) e o constante da escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950 (em particular a condição 7.ª, ou seja a condição 8.ª da Portaria n.º4:815), este Tribunal considera que o direito concedido é apenas um direito de ocupação temporária”.
38. Segundo a supracitada decisão, tendo o juiz entendido que não é possível adquirir, por meio de usucapião, o terreno da natureza de ocupação temporária.
39. Contudo, o processo de rectificação judicial CV2-20-0038-CRJ-A que se encontra actualmente na fase de recurso, pelo que ainda é cedo tomar decisão sobre a natureza do terreno.
40. Além do mais, na supracitada decisão, tendo o juiz entendido que, tanto a concessão por arrendamento, como a ocupação temporária, a sua transmissão só pode ser feita, quando seja autorizada previamente pela Administração.
41. Pelo que, em 15 de Março de 2021, os descendentes de G enviaram carta ao Chefe do Executivo pedindo que fosse autorizada a transmissão de concessão por arrendamento. (vd. anexo 14)
42. Segundo a resposta dada pelo Gabinete do Chefe do Executivo em 26 de Março de 2021, a carta já foi transferida para o Gabinete do Secretário para a Administração e Justiça e o Gabinete do Secretário para os Transportes e Obras Públicas. (vd. anexo 15)
43. Segundo o ponto 10 da resposta dada em 12 de Abril de 2021 pelo Director dos Serviços de Assuntos de Justiça: “Pelo acima exposto, a natureza e a pertença dos supracitados terrenos devem ser resolvidas por via judicial, como o caso está a ser apreciado no tribunal, há que aguardar a decisão final a tomar pelo tribunal”. E no ponto 11 da resposta: “Mas quanto à excepção prevista no art.º 154.º, n.º3 da Lei de Terras, “Salvo no caso de transmissão por morte ou por via judicial”, a disposição do referido artigo não envolve a transmissão concreta da concessão de terreno, qualquer entidade não pode autorizar a transmissão do direito de concessão do respectivo terreno, ao abrigo da respectiva disposição legal”. (vd. anexo 16)
44. Quer dizer, não precisa de divulgar ao público a transmissão por morte ou por via judicial e qualquer entidade não pode autorizar a transmissão do direito de concessão do respectivo terreno, segundo a disposição prevista no supracitado artigo.
45. Francamente, de acordo com a cláusula 6.ª do contrato de transmissão do direito de ocupação temporária celebrado na Direcção dos Serviços de Finanças em 1950, pode o direito de ocupação temporária ser transmitida de forma global ou parcial, desde que seja obtida a autorização prévia, contudo, com base em todas as razões acima indicadas, os descendentes de G (herdeiros de F, nove membros da família Iong) consideram que podem herdar o direito da concessão derivada do bisavô deles sem necessitar de obter a autorização prévia, não podendo o juiz, no caso, privar os mesmos do direito de retomar os terrenos com fundamento na falta de autorização prévia.
46. Pelo que os descendentes de G consideram aguardar a decisão do processo de rectificação judicial –recurso extraordinário, até momento em que podem eles discutir com a Administração todos os pormenores sobre a concessão de terreno, assim sendo, neste momento é injusto para os descendentes de G, a exigência de desocupação dos terrenos contra eles.
47. Além do mais, caso a natureza da ocupação temporária já tenha sido confirmada, como já expirou o prazo de ocupação temporária da Associação E e não foi requerida a renovação da ocupação temporária, a Associação E deixa de ter a qualidade de concessionária, não podendo continuar a deter os supracitados terrenos, nem executar o processo CV2-07-0069-CAO-B.
  Contra-alegando veio a embargada/exequente Associação de Beneficiência E apresentar as seguintes conclusões:
I. Por a original Embargante F e um dos Embargados J haverem falecido na pendência dos autos de Embargos de Terceiro de que o presente recurso emerge, foram habilitados para suceder na posição de ambos, os seus herdeiros legais, seus únicos filhos, os Embargados A1 ou A, K, B, L, C, M, N, D, O ou O1.
II. Os sucessores habilitados não podem, por si, exercer os direitos e obrigações processuais que competiam à original Embargante F, pois os mesmos sujeitos não podem actuar como Embargantes e Embargados simultâneamente, por estarem numa situação de conflito de interesses.
III. É certo que não se encontrou na lei processual (nem na jurisprudência da República Portuguesa ou da Região Administrativa Especial de Macau), solução expressa para a situação, mas a situação é análoga à do incapaz que haja que figurar como parte em acção em que a contraparte é o seu representante legal, em que se impõe a nomeação de um curador especial para o representar, conforme preceituado no n.º 3 do artigo 45.º do CPC que é a concretização em termos procssuais do que se acha disposto no art. 1736.º, n.º 2, do C.C., que exara “sempre que houver conflito de interesses cuja resolução dependa de autoridade pública, entre qualquer dos pais e o filho sujeito ao poder paternal, ou entre os filhos, ainda que, neste caso, algum deles seja maior, são os menores representados por um ou mais curadores especiais nomeados pelo tribunal”.
IV. Deve neste caso ser aplicada por analogia a referida norma e serem os eventuais “direitos” da falecida Embargante, que a existirem foram encabeçados nos seus sucessores legais - os Embargados -, ser exercidos por um curador especial nomeado pelo tribunal para o efeito.
V. Dúvidas não há, que conforme o que foi alegado e pedido na petição de embargos pela falecida Embargante F, a mesma pretendia ser reconhecida como titular do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, do prédio actualmente descrito sob o n.º XXXX, por o haver adquirido por usucapião e, assim, a proceder tal pedido o referido direito integrará a herança da referida F.
VI. Enquanto não for feita a partilha da herança são representantes do “de cujus” a totalidade dos sucessores legais e, por isso, a lei exige a intervenção conjunta de todos os herdeiros de F para o exercício de direitos que integrem a herança - entendimento diverso, fará indevida interpretação e aplicação do art. 1929.º do Código Civil.
VII. Isso implica que estamos perante um caso de litisconsório necessário, em que a falta de intervenção de qualquer dos herdeiros de F, é motivo de ilegitimidade - entendimento diverso, fará indevida interpretação e aplicação do art. 61.º n.º 1, do Código de Processo Civil.
VIII. A legitimidade é a posição necessária que o sujeito tem que ter com o objecto da relação jurídica para dele poder dispôr válida e eficazmente e faltando ao sujeito essa posição ou estando o mesmo em confito de interesses ocorre ilegitimidade, ou seja, falta ao sujeito a posição necessária para dispôr do objecto da relação jurídica. Em termos processuais essa relação jurídica é aquela que for configurada pelo autor, que não, necessariamente, a que existe em termos reais.
IX. A ilegitimidade é uma excepção dilatória, que quando não for devidamente sanada obsta ao conhecimento do pedido (neste caso do recurso) e dá lugar à absolvição absolvição da instância - entendimento diverso fará indevida interpretação e aplicação dos art.s 413.º al. e), do art. 230.º, n.º1 al. d), e n.º 2, e do art. 412.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil.
X. Como se pode verificar dos elementos que constam dos autos o direito de ocupação temporária do terreno descrito sob o n.º XXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau foi concedido pelo Estado Português a G pelo prazo de 50 anos a contar de 1 de Janeiro de 1944 e posteriormente transmitido para a Associação de Beneficência E com autorização do Estado Português (v. condição 1.º da Portaria n.º XXXX, de 22 de Agosto de 1950, publicada no Boletim Oficial n.º 34 da mesma data, e condição l.ª da escritura de 19 de Outubro de 1950, lavrada a fls. 67 do livro de notas n.º 88 da Repartição Central dos Serviços de Fazenda e Contabilidade).
XI. A sentença recorrida declara a impossibilidade de procedência do pedido formulado pela Embargante com fundamento em que sendo o direito sobre o terreno um direito de ocupação temporária, designadamente, por à altura da concessão o terreno fazer parte do domínio público hídrico - já que era confinante com rio aberto à navegação internacional e se situar numa zona contínua de 80 metros além do nível normal das águas, estando assim nas condições previstas no § 2. o do artigo 9.º do Acto Colonial e no § 2.º do artigo 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português, então em vigor -, de tal decorre que tal direito não entrou no regime de propriedade privada, pelo que, não pode ser aquirido através do instituto da usucapião previsto no direito civil.
XII. Que o legislador sempre proíbiu a transmissão do referido direito sem autorização prévia do Estado, quer no art. 76.º, § 1.º do Diploma Legislativo n.º 651 (“Regulamento para concessão de terrenos na Colónia de Macau”, que estava em vigor à altura), ou nas designadas leis de terras que lhe sucederam, nomeadamente, no art. 102.º do Diploma Legislativo n.º 1679 e no art. 144.º, n.º 2, da Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho, não havendo a Embargante alegado e demonstrado que foi autorizada pela autoridade administrativa competente a adquirir o referido direito.
XIII. A conclusão extraída pelos Recorrentes de que os terrenos originalmente descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, actualmente anexados e descritos sob o n.º XXXX, não podiam ser concedidos por ocupação temporária a G em 1943, pela Portaria n.º XXXX, por a Administração nunca haver cancelado a sua concessão por arrendamento, está completamente errada, pois na data em que foi feita concessão “ab novo” a G do direito de ocupação temporária por essa Portaria já o direito de concessão por arrendamento sobre o terreno havia caducado em 22.08.1941, por decurso do prazo da concessão, inexistindo qualquer co-existência dum direito de concessão por arrendamento com um direito de ocupação temporária sobre o terreno na titularidade de G, como afirmado, pois os mesmos sucedem-se no tempo, aliás, com um interregno de quase dois anos, por o primeiramente referenciado haver caducado em 22.08.1941 e o segundo só lhe haver sido concedido em 05.06.1943.
XIV. As demais conclusões dos Recorrentes, nem sequer são conclusões, pois são mera repetição “ipsis verbis” dos fundamentos do recurso, e são:
- a “repescagem” de factos que os mesmos haviam alegado e não lograram provar na acção principal em que foram réus e que está definitivamente decidida por sentença devidamente transitada em julgado, que os condenou a reconhecer o direito da Autora / Recorrida “E” e a proceder à devolução do terreno e edifícios nele implantados;
- “efabulações” de factos, sem qualquer relevância jurídica, que sequer deveriam constar como fundamentos ou conclusões de um recurso subscrito por advogado, cuja intervenção é requerida para se “ater” a alegar o que é relevante em termos do direito aplicável
  Contra-alegando vem a interveniente RAEM apresentar as seguintes conclusões:
A. No recurso, arguem todos os recorrentes que é nula a escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950, pela qual G transmitiu à Associação de Beneficência E o direito de ocupação temporária, alegando que G e seus descendentes sempre vivem no terreno em causa e exploram actividades de estaleiro e estância de madeira sem estabelecer relação de arrendamento com a Associação E, bem como G e seus descendentes construíram casas no terreno em causa, etc.., na realidade, todos só novamente vêm questionar os conteúdos dos acórdãos proferidos pelo TUI e pelo TSI no processo principal, já transitados em julgado.
B. Segundo o ponto 7 dos factos dados como provados pela decisão recorrida e o certificado do registo predial, a fls. 1624 a 1634 dos autos, o registo dos terrenos em causa já foi corrigido de “concessão por arrendamento de terreno” para “ocupação temporária”, o qual corresponde ao conteúdo da escritura pública que serve de título do registo; além disso, segundo o supracitado registo predial, o averbamento de renovação tem como base o requerimento/declaração e o ofício emitido pela DSSOPT, mas não o contrato de concessão por arrendamento existente entre a RAEM e a Associação, quer dizer, a renovação ainda foi feita a título de ocupação temporária, e na falta de um novo título de ocupação concedido pela Administração à Associação, fundamentalmente a última não pode alterá-lo para a concessão por arrendamento, de tal modo a deter os terrenos em causa.
C. Pelo que todos os recorrentes só truncam o texto para torcer o sentido, aproveitando as palavras constantes do supracitado averbamento de registo tais como “renovação da concessão” e “renovado novamente por 10 anos o prazo de concessão por arrendamento do terreno”, de tal modo a torcer o sentido alegando que, depois de expirado o prazo de ocupação temporária em 1994, a Associação de Beneficência E detinha os terrenos sob a forma de concessão por arrendamento.
D. O que a Associação adquiriu da transmissão só é um direito de ocupação temporária, e nessa circunstância, fundamentalmente a lei não permite a aquisição por usucapião de tal direito como direito real no regime privado, isto quer dizer, como terceira, a embargante, de maneira nenhuma, não pode obter o respectivo direito por meio de usucapião.
E. O processo CV2-20-0038-CRJ-A não passa de um processo de recurso instaurado contra a decisão de indeferimento liminar que rejeitou o recurso para novo julgamento interposto contra a referida decisão já transitada em julgado. Quer dizer, mesmo que o recurso se encontre pendente, isso, de nenhuma maneira, não afecta ou obsta a que o Tribunal tome decisão sobre o presente caso de embargos de terceiro, uma vez que, por um lado, o caso de rectificação judicial já transitou em julgado, por outro lado, o caso de recurso pendente só se dirige contra a questão de admissibilidade de novo julgamento do recurso. Perante a circunstância em que ainda não são refutados a decisão já transitada e o registo predial já rectificado, certamente o Tribunal a quo pode directamente tomar a decisão sobre a questão de embargos de terceiro, nomeadamente a natureza do direito dos terrenos transmitido à Associação de Beneficência E.
F. Além disso, nos termos do art.º 223.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, mesmo que exista o caso de recurso pendente, não é necessário suspender o procedimento da presente acção, bem como o Tribunal a quo entendeu que o prejuízo causado seria maior de que os interesses obtidos, caso fosse suspenso o procedimento da presente acção, razão pela qual determinou não suspender o procedimento.
G. Quanto a isso, não verificamos qual a lei que foi violada pelo Tribunal a quo que não autorizou a suspensão, evidentemente não têm razão o que alegam os recorrentes que é “muito cedo” a decisão tomada pelo Tribunal a quo sobre a natureza dos terrenos.
H. Por fim, todos os recorrentes mais alegam que os descendentes de G podem herdar o direito de concessão por arrendamento de terreno derivado de G sem necessitar de autorização prévia, mas outra vez isso mostra que os recorrentes tentam impugnar o acórdão do processo principal, já transitado em julgado, e ao mesmo tempo, segundo os fundamentos por si invocados, totalmente não têm nada a ver com os fundamentos e lógica da decisão recorrida.

  Foram colhidos os vistos.
  
  QUESTÃO PRÉVIA
  
  Vem a Recorrida e embargada suscitar que ao terem sido habilitados a prosseguir na causa na posição de embargante os executados originais passou a haver conflito de interesses entre as duas posições, para além de que, sendo herdeiros da embargante têm de intervir na acção todos os herdeiros sob pena de ilegitimidade.
  
  No caso em apreço a embargante veio deduzir embargos de terceiro porquanto na acção declarativa em que os aqui executados foram condenados a entregar o prédio não foi parte e invocava ter adquirido por usucapião o imóvel.
  Caso o direito da embargante viesse a ser reconhecido pelo tribunal o mesmo consolidar-se-ia na esfera jurídica desta passando a integrar a herança da mesma.
  O facto dos agora executados enquanto réus na acção declarativa terem sido vencidos no que concerne ao direito sobre o imóvel da Autora e exequente, nada obsta que a pretensão da mãe destes possa proceder sendo direitos distintos.
  Procedendo a pretensão da embargante os herdeiros desta através da herança já podem reclamar a titularidade do imóvel.
  Destarte, entre a posição dos executados originais e destes enquanto habilitados para prosseguir na causa da posição da embargante não há conflito ou oposição de interesses uma vez que o direito em que aqueles foram vencidos e o direito que está agora ser reclamado não é o mesmo, pelo que, nada obsta que prossigam na causa na posição em que o fazem.
  De qualquer modo e se conflito de interesses houvesse haveria de ter sido em sede de contestação do incidente de habilitação de herdeiros que a questão havia de ter sido dirimida.
  Decidida a habilitação de herdeiros e transitada em julgado a respectiva sentença já a mesma não pode ser apreciada nesta sede.
  
  De igual modo improcede a hipotética ilegitimidade dos herdeiros que se invoca sob a égide do artº 1929º do C.Civ..
  Se outros herdeiros havia para além destes cabia à embargada ter suscitado a questão aquando da habilitação de herdeiros, sendo certo que agora apenas se alude à questão sem nada se dizer de concreto - nada se diz quanto a faltar algum herdeiro e menos ainda quem -, pelo que, ficam sem qualquer conteúdo as conclusões de recurso V a IX, sendo certo que, nada obsta que qualquer um dos habilitados prossiga com a causa, não cabendo nesta parte o disposto no artº 1929º do C.Civ., sem prejuízo da decisão não produzir efeitos quanto a herdeiros que não hajam sido habilitados.
  
  Destarte, improcedem as invocadas excepções quanto aos Recorrentes.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos

Na decisão recorrida foi apurada a seguinte factualidade:
1. Por acórdão constante do processo principal a fls. 1861 a 1874, além de outra decisão, o Tribunal decidiu, nomeadamente:
- Condenar os 1.º a 10.º Réus, J, A1, K, B, L, C, M, N, D e O, a reconhecer a Autora, Associação de beneficência Tong Si Tong, como titular do direito de arrendamento sobre os terrenos descritos sob os n.ºs XXXXX. XXXXX, XXXXX e XXXX.
- Condenar os Réus a desocupar os terrenos descritos sob os n.ºsXXXXX e XXXXX e restitui-los devolutos e livre de pessoas e bens à Autora.
- Absolver os Réus dos restantes pedidos formulados pela Autora.
2. Inconformados com a decisão da primeira instância, recorreram a Autora e certos Réus para o Tribunal de Segunda Instância, tendo o Venerando Tribunal, através do acórdão, a fls. 1996 a 2006 do processo principal, decidido:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelos 3.º, 4.ª, 5.º, 6.º, 8.º e 9.º Réus.
- Julgar parcialmente procedente o recurso da Autora, condenando os Réus a restituir à Autora os dois terrenos rústicos descritos na sob os n.ºs XXXXX e XXXX, mantendo as restantes decisões tomadas pelo Tribunal a quo.
3. Deste Acórdão recorreram os ditos Réus para o venerando Tribunal de Última Instância, tendo o recurso finalmente sido julgado improcedente.
4. No processo principal, na pendência da decisão do recurso a tomar pelo Tribunal de Última Instância, tendo a Autora Associação de Beneficência E proposto o processo de execução contra os Réus (anexo B).
5. No supracitado processo de execução, depois de o Tribunal ter ordenado a entrega judicial dos prédios descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX, a embargante F, no prazo legal intentou a presente acção de embargos de terceiro, ora em apreço.
6. De acordo com os dados existentes na Conservatória do Registo Predial, a Associação de Beneficência E é titular do direito de ocupação temporária do prédio descrito sob o n.º XXXX (vd. fls. 1624 a 1634 do presente anexo).
7. O supracitado direito tem por base a escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950 (vd. 1627 do presente anexo).
8. Os prédios descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX encontram-se incorporados ao prédio descrito sob o n.ºXXXX (vd. fls. 1625 do presente anexo).
9. Os direitos de registo sobre os prédios descritos sob os n.ºs XXXX, XXXXX e XXXXX foram adquiridos pela Associação E através das escrituras públicas celebradas em 19 de Outubro de 1950 (vd. fls. 15 a 20 do processo principal, fls. 25 a 34 do presente anexo, fls. 41 a 45 do processo principal e fls. 398 a 403v do processo principal).

b) Do Direito

É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Entre a Associação de Beneficência E e J, A1, K, B, L, C, M, N, D, O, antes há acção declarativa ordinária (Processo CV2-07-0069-CAO, ou seja o processo principal de que depende o presente processo) e finalmente o venerando Tribunal de Última Instância julgou improcedentes todos os Réus, tal decisão já transitou em julgado.
É de salientar que actualmente o que este Tribunal está a resolver é apenas uma acção de embargos de terceiro intentada pela parte de embargante, mas não apreciar de novo a acção declarativa ordinária acima indicada.
Quer dizer, o presente processo visa resolver se a embargante tem fundamento de facto e de direito suficiente para suportar a sua aquisição do direito de concessão do terreno descrito sob o n.ºXXXX por meio de usucapião
Sendo isto a questão que estamos a resolver no presente processo.
Além disso, é de salientar que tal como todas as partes sabem, o foco de controvérsia do presente processo de embargos de terceiro é se o direito do prédio sob o n.ºXXXX registado em nome da Associação E é de concessão por arrendamento ou de ocupação temporária.
Sobre esta questão, embora a decisão do processo principal tenha indicado que o direito é um direito de arrendamento, isto não dispensa a embargante de fazer prova no caso (no processo principal ela é apenas uma terceira, não será prejudicada pela parte desfavorável da decisão judicial do processo principal, mas em princípio, também não beneficiará com os efeitos da decisão do processo já julgado). Isto quer dizer, só pode ser procedente o pedido formulado pela embargante, desde que fique provada a existência de concessão por arrendamento sobre o prédio sob o n,ºXXXX (quer seja através do efeito presuntivo do registo predial quer seja através de outras maneira). A razão por detrás é muito simples, uma vez que o governa da RAEM nunca intervém no processo principal, a decisão do processo principal não vincula a RAEM (uma dos embargados nos autos) de modo que deva a RAEM aceitar que o direito no registo é de concessão por arrendamento.
*
Depois de enfatizados os supracitados dois pontos, cabe ao presente Tribunal analisar os fundamentos e pedidos das partes.
Alega a embargante que o direito constituído sobre o prédio sob o n.º XXXX é de concessão por arrendamento, mas alega a Associação E que o direito é de ocupação temporária.
Uma vez reconhecido o direito constituído sobre o prédio sob o n.ºXXXX apenas de ocupação temporária, é equivalente a que tal direito não pode ser adquirido através de meio de usucapião nos termos da lei civil por não pertencer ao direito real já entrou definitivamente no regime de propriedade privada; mas uma vez reconhecido tal direito como concessão por arrendamento, é necessário analisar se existe no terreno em causa qualquer direito real previsto na lei civil, em particular, o direito de superfície, também é necessário analisar se tal direito pode ser adquirido por meio de usucapião nomeadamente previsto no art.º 9.º n.ºs 1, 2, 3 e 5 da Lei n.º10/2013, bem como se pode ser adquirido por meio de usucapião o terreno previsto no art.º 8.º da Lei de Terras aprovada pela Lei n.º6/80/M.
Segundo o registo predial mais actualizado (vd. fls. 1629 do presente anexo) o qual mostra que foi constituída a ocupação temporária sobre o prédio sob o n.ºXXXX e o seu titular é a Associação de Beneficência E, sendo o título de registo a escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950.1
De facto, para além de se mostrar o direito de inscrição sobre o prédio em causa pertencente à ocupação temporária conforme consta do registo predial mais actualizado, depois de analisado o título por detrás do respectivo registo, este Tribunal também considera que a Administração não atribuiu ao particular a concessão por arrendamento, mas sim apenas a ocupação temporária.
Antes de expormos minuciosamente os fundamentos que nos levam a ter a conclusão indicada no parágrafo anterior, é de salientar que ao analisar a natureza do respectivo direito, o mais importante é saber o conteúdo do direito que pretendeu conceder a Administração na prática do acto de concessão (em 19 de Outubro de 1950) se é de ocupação temporária ou concessão por arrendamento? Em princípio, a alteração jurídica superveniente não pode alterar retroactivamente a natureza e conteúdo do direito já concedido.
Em primeiro lugar, cabe ver a supracitada escritura pública e o conteúdo da decisão administrativa tomada pelos respectivos serviços públicos do território de Macau na altura.
De acordo com a Portaria n.º4:815 publicada no Boletim Oficial do território de Macau n.º34, de 26 de Agosto de 1950, tendo o governo do Território de Macau autorizado a aquisição da respectiva ocupação temporária pela Associação de Beneficência E junto a G, através de compra, bem como estabelecido as condições de concessão:
Condição 1.ª
O prazo de ocupação será de 50 anos, a contar de 1 de Janeiro de 1944
Condição 2.ª
A taxa anual da ocupação será de $0,09 (nove avos de pataca) por metro quadrado de terreno nos primeiros dez anos, e, depois, revista de dez em dez anos, pela Comissão de Terras, paga, adiantadamente, de 1 a 15 de Janeiro de cada ano, na Recebedoria do Conselho de Macau.
Condição 3.ª
Para a contagem do prazo da revisão da taxa da ocupação será levado em conta o período de tempo já decorrido desde 1 de Janeiro de 1944.
Condição 4.ª
O terreno destinar-se-á a manter o estaleiro com estância de madeira ali instalado bem como os prédios n.ºs 1 e 3 da Avenida .XXXXX que servem de loja ao mesmo estaleiro.
Condição 5.ª
As novas construções a fazer no terreno ficarão sujeitas ao Regulamento Geral da Construção Urbana para a colónia de Macau, em vigor.
Condição 6.ª
A Associação ocupante deverá depositar, à ordem do Governo da Colónia, no prazo de oito dias, a contar da data da publicação da presente portaria, uma caução de garantia igual à taxa anual da ocupação.
Condição 7.ª
Esta autorização de ocupação temporária poderá ser transmitida em relação a todo ou parte do terreno, observando-se o disposto no artigo 68.º do Regulamento para a concessão de terrenos na colónia de Macau, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º651, de 3 de Fevereiro de 1940, com prévia autorização do Conselho de Ministros.
Condição 8.ª
A presente autorização de transmissão de direito de ocupação temporária ficará sujeita ao disposto no artigo 70.º do regulamento acima mencionado e com direito à indemnização, unicamente, na parte referente a construções, exceptuando o valor do terreno, por o mesmo continuar na posse do Estado e estar situado na zona marginal de 80 metros referida no n.º 2 do artigo 9.ºdo Acto Colonial e no n.º2 do artigo 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português.
Condição 9.ª
A presente autorização de transmissão de direito de ocupação temporária deverá ser reduzida a escritura, na Repartição Central dos Serviços de Fazenda e Contabilidade, dentro do prazo de 60 dias, a contar da presente data.
Condição 10.ª
Por falta de observância de qualquer das condições acima mencionadas, quando não se julgue cabalmente justificada, sob proposta da Comissão de Terras e despacho do Governo da Colónia, será considerada nula e de nenhum efeito a presente autorização de ocupação temporária, revertendo, a favor da Fazenda Nacional, quaisquer benfeitorias que hajam sido começadas no terreno e o depósito a que se refere a condição 6.ª, com excepção das construções existentes no terreno, à data da publicação da presente portaria, que serão pagas nos termos das leis sobre expropriações que forem vigentes, sem outra formalidade a cumprir a não ser a publicação no Boletim Oficial da anulação e sua causa e a notificação desta ao representante da Associação ocupante.
Condição 11.ª
Em tudo não previsto nas condições atrás mencionadas, regular-se-á pelas disposições do Regulamento para a concessão de terrenos da colónia de Macau, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º651, de 3 de Fevereiro de 1940, aplicável a arrendamentos.2
Por causa da obrigação prevista na supracitada condição 9.ª, o concessionário, o cedente e o concessionado celebraram a escritura pública constante do registo predial, de 19 de Outubro de 1950.
Na escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950, constam todas as supracitadas condições, com excepção das condições 6.ª e 9.ª.
Analisados o conteúdo constante da Portaria n.º4:815 (em particular a condição 8.ª) e o constante da escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950 (em particular a condição 7.ª, ou seja a condição 8.ª da Portaria n.º4:815), este Tribunal considera que o direito concedido é apenas um direito de ocupação temporária.
De facto, nas supracitados duas cláusulas foi indicado expressamente que o prédio em apreço é o terreno previsto no art.º 9.º, n.º2 do Acto Colonial e no art.º 222.º, n.º2 da Carta Orgânica do Império Colonial Português, ambos eram vigentes na altura.
São totalmente iguais as disposições das supracitadas duas cláusulas regulando que não eram permitidas numa zona contínua de 80 metros além do nível normal das águas, as concessões de terrenos confinantes com lagos navegáveis e com rios abertos à navegação internacional.3
Por outro lado, na parte de introdução da Portaria n.º4:815 também foi indicado expressamente que na altura a aquisição do direito de ocupação temporária pela Associação de Beneficência E junto a G foi feita nos termos do § único, al. a) do art.º 9.º do Acto Colonial e do § único, al. a) do art.º 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português.4
De acordo com o supracitado § único, al. a) do art.º 9.º: Nos termos da lei, pode ser autorizada a ocupação temporária da parte do terreno situado no terreno referido nos n.ºs 1 a 3 deste artigo. E dispõe o § único, al. a) do art.º 222.º que quando for do interesse nacional, nos termos da lei, pode ser autorizada a ocupação da parte do terreno referido nos n.ºs 1 a 3 deste artigo, pelo período não superior a 50 anos, prorrogável por duas vezes pelo período de 20 anos.
Pelo que, já que na introdução da Portaria n.º4:815 o Governador também invocou a situação em que se encontravam as duas disposições do § único, al. a) do art.º 9.º do Acto Colonial e do § único, al. a) do art.º 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português, tendo por isso praticado o acto de concessão por arrendamento sem ultrapassar o âmbito permitido por lei.
Isto também pode provar a concessão em causa que só tem a ver com a ocupação temporária tal como a designação utilizada no respectivo instrumento legal.5
De acordo com o Regulamento para a Concessão de Terrenos na Colónia de Macau, aprovado pelo Diploma Legislativo n.º651, de 3 de Fevereiro de 1940, na altura há três tipos de concessão de terrenos, a saber:
- O aforamento, previsto nos art.ºs 19.º a 50.º;
- O arrendamento, previsto nos art.ºs 51.º a 72.º;
- A ocupação temporária, prevista nos art.ºs 73.º a 77.º.
Da análise das condições da concessão em causa, resultou que a concessão tinha por objecto a manutenção da finalidade de servir de estância de madeira, estaleiro e lojas relativas ao estaleiro, tal finalidade também corresponde à finalidade de ocupação temporária prevista no art.º 73.º do Regulamento para a Concessão de Terrenos na Colónia de Macau.
Embora as condições da concessão contenham certas disposições relacionadas ao regime de concessão por arrendamento, nelas incluindo o prazo de 50 anos fixado na condição 1.ª, sendo isso incompatível com o prazo de 1 ano previsto na ocupação temporária. Além disso, as condições da concessão também indicam expressamente que em tudo não previsto nas condições são aplicáveis subsidiariamente as disposições do regulamento para a concessão por arrendamento. Contudo, salvo o devido respeito, este Tribunal considera que tais factores também não alteram o facto de a respectiva concessão apenas ser definida como ocupação temporária.
Razão por que, em primeiro lugar, tal como acima foi indicado, segundo o § único, al. a) do art.º 9.º do Acto Colonial e o § único, al. a) do art.º 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português, só foi autorizado o aproveitamento do terreno em causa através de ocupação temporária.
Em segundo lugar, o § único, al. a) do art.º 222.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português dispõe expressamente que é autorizada a fixação do prazo de ocupação até 50 anos e é prorrogável, pelo que, naturalmente pode a Portaria n.º4:815 fixar o prazo de ocupação superior a um ano.
Em terceiro lugar, face ao prazo de ocupação de 50 anos e não ao prazo de ocupação temporária de 1 ano (vd. art.º 76.º do Regulamento para a Concessão de Terrenos nas Colónia de Macau), tendo em consideração que é relativamente mais longo o prazo de ocupação temporária previsto na Portaria n.º4:815, pelo que é aplicável subsidiariamente a disposição sobre a concessão por arrendamento.
Com base nas razões acima indicadas, no presente caso, o direito constituído sobre o prédio descrito sob o n.ºXXXX (incluindo os prédios descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX que se encontram incorporados ao prédio em causa) é apenas um direito de ocupação temporária, que visa autorizar a concessionada Associação de Beneficência E a manter nos respectivos terrenos a determinada finalidade de servir de estância de madeira, estaleiro e loja relativa ao mesmo estaleiro, como tal direito não pertence ao direito real que já entrou definitivamente no regime de propriedade privada, não podendo ser adquirido por meio de usucapião nos termos do art.º 1212.º do Código Civil.
Importa reitera que, ao analisar a natureza do direito já inscrito sobre o prédio descrito sob o n.ºXXXX, o mais importante é saber o conteúdo do direito que pretendeu conceder a Administração na prática do acto de concessão (em 19 de Outubro de 1950) se é de ocupação temporária ou concessão por arrendamento? Em princípio, a alteração jurídica superveniente não pode alterar retroactivamente a natureza e conteúdo do direito já concedido.
*
Feita a análise acima indicada, importa salientar que tanto no § único do art.º 76.º do Diploma Legislativo n.º651 e no art.º 102.º do Regulamento Legislativo n.º1679, como no art.º 144.º, n.º2 da Lei de Terras, aprovada pela Lei n.º6/80/M, de 5 de Julho, o legislador sempre indica clara e expressamente a proibição de transmissão do direito derivado da licença de ocupação temporária (vd. douto acórdaõ do TSI proferido em 7 de Julho de 2011 no processo n.º717/2009). Por outro lado, face ao concreto contrato de concessão em causa, nas condições deste também se estipula que a autorização de ocupação temporária só pode ser transmitida em relação a todo ou parte do terreno desde que seja obtida previamente a autorização dada pelo Conselho de Ministros. Contudo, os autos não mostram que qualquer autoridade competente da RAEM tenha autorizado a embargante a adquirir o direito do terreno em causa através de forma qualquer, pelo que, quer o respectivo direito seja pertencente à concessão por arrendamento, quer o seja pertencente à ocupação temporária, a aquisição do dito direito pela embargante também não é possível, nos pressupostos de que é proibido isso expressamente nos termos das leis acima invocadas e sem autorização dada pela Administração.
Com base nas supracitadas razões, não é possível proceder o que exige a embargante que seja declarado o direito sobre o prédio descrito sob o n.º XXXX inscrito a favor da Associação de Beneficência E adquirido por meio da usucapião.
Tendo em consideração que a parte da embargante não consegue provar que qualquer acto de apreensão ou entrega de bens ordenada pelo Tribunal viole a posse detida por si sobre o respectivo bem (prédios descritos sob os n.ºs XXXXX e XXXXX incorporados ao prédio sob o n.ºXXXX)6 ou qualquer seu direito incompatível com a execução de tal medida ou com o âmbito da sua execução7, também não existe qualquer título que seja preferencial, oponível à Associação de Beneficência E e que seja capaz de permitir à embargante continuar a deter os terrenos em causa, pelo que, não procede a presente acção de embargos a terceiro, prosseguindo-se as formalidades de entrega judicial ordenada no processo de execução.».
  O acerto da decisão recorrida já resulta implícito dos Acórdãos antes proferidos sobre a decisão inicial apenas não tendo sido confirmada porquanto havia que previamente proceder à correcção do registo predial relativamente ao imóvel quanto ao direito inscrito.
  Inscrito no registo predial que a embargante é titular do direito de ocupação temporária o qual não é um direito real não há reparo a fazer à decisão recorrida.
  Reza o artº 1175º do C.Civ. que “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
  O exercício da posse durante determinado espaço de tempo pode, nas situações previstas na lei permitir a aquisição do bem por usucapião.
  Ora, não estando em causa um direito real nunca a embargante poderia ter tido a posse do mesmo e consequentemente adquirido o que quer que seja por usucapião, e menos ainda o que pede, que se reconheça que adquiriu por usucapião a concessão por arrendamento do prédio em causa o qual não foi concedido por arrendamento, para além de que, como já resulta da decisão recorrida, sendo o imóvel da RAEM não é o mesmo usucapível por força do artº 7º da Lei Básica e artº 8º da Lei 6/80/M vigente quando a acção foi instaurada.
  A questão em causa foi já objecto de várias decisões do Tribunal de Última Instância, sendo a jurisprudência sobre a matéria pacífica.
  Veja-se o sumário do Acórdão do TUI de 05.07.2006 proferido no processo nº 32/2005 onde se diz:
  «O sistema jurídico, incluindo o sistema judicial, anteriormente vigente em Macau, transitou para a RAEM de modo selectivo, em obediência ao princípio de transição condicional, tendo por critério a conformidade com a Lei Básica.
  O que ocorre não é uma sucessão de leis em situação normal, mas antes uma mudança de princípios de todo o ordenamento jurídico. Assim, no novo ordenamento jurídico da Região, não se pode aplicar uma lei previamente vigente contrária aos seus princípios, segundo os critérios da sucessão comum de leis.
  A transição do sistema judicial previamente existente em Macau observou igualmente o princípio de transição condicional (art.º 10.º da Lei de Reunificação). Para se manter o sistema judicial previamente existente, incluindo os diversos procedimentos judiciais e actos processuais, tem de estar em conformidade com a Lei Básica, a Lei de Reunificação e outros diplomas legais aplicáveis, em particular a Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999).
  Por causa da transição condicional dos sistemas jurídico e judicial pré-existentes em Macau, não se pode apreciar os processos judiciais pendentes aquando da criação da Região segundo os princípios que regem a sucessão normal das leis. Antes pelo contrário, tais processos devem ser julgados com o pressuposto de não contrariar a Lei Básica.
  Está consagrado no art.º 7.º da Lei Básica o princípio de que a propriedade e a gestão dos solos e recursos naturais no âmbito da RAEM cabem, respectivamente, ao Estado e ao Governo da Região, e admite, ao mesmo tempo, os direitos de propriedade privada de terrenos reconhecidos legalmente antes do estabelecimento da Região.
  Não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região.
  Se a acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos fosse proposta por interessados apenas depois do estabelecimento da Região, os seus pedidos estariam manifestamente em desconformidade com o art.º 7.º da Lei Básica, por força do qual todos os terrenos não reconhecidos como de propriedade privada até ao estabelecimento da Região passam, a partir deste, a integrar na propriedade do Estado.
  Mesmo que a acção tenha sido instaurada antes do estabelecimento da Região, os referidos pedidos também não podem proceder se não houver sentença transitada até ao momento do estabelecimento da Região, pois os pedidos de interessados violam a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
  Os tribunais não podem proferir sentença de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre os terrenos, em desobediência ao disposto no art.º 7.º da Lei Básica, após o estabelecimento da Região, ou seja, a partir da entrada em vigor da Lei Básica.
  Do mesmo modo, na concessão por aforamento e na enfiteuse, o domínio útil, embora não seja uma propriedade plena, torna-se, de facto, uma forma de possuir terrenos da Região por particulares, atendendo às suas características e ao conteúdo do direito, como se fosse a repartição do direito de propriedade entre o particular e o Estado, em violação do princípio de que a propriedade de terrenos cabe ao Estado consagrado no art.º 7.º da Lei Básica.
  O domínio útil só constitui a excepção prevista no art.º 7.º da Lei Básica quando for reconhecido legalmente antes do estabelecimento da Região, e assim continua a integrar na esfera de particulares após a sua criação.».
  Nesse mesmo Acórdão podemos ainda ler:
  «Prescreve o art.º 7.º desta Lei8:
  “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.”
  Desta norma resulta que foi estabelecido pela Lei Básica o princípio de que a propriedade e a gestão dos solos e recursos naturais no âmbito da Região cabem respectivamente ao Estado e ao Governo da Região. No entanto, a fim de respeitar e proteger os poucos terrenos da propriedade privada já existentes em Macau, é admitida excepção a este princípio, isto é, continuar a reconhecer os direitos de propriedade privada de terrenos anteriormente existentes.
  Há um requisito para a excepção, que consiste em que os terrenos de propriedade privada devem ser “reconhecidos, de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM.”
  Uma vez que após o estabelecimento da Região, todos os terrenos situados no âmbito territorial da Região são de propriedade do Estado, excepto os que foram reconhecidos como propriedade privada nos termos da lei antes do estabelecimento da Região. Em consequência, não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região, sob pena de violar a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
  Se a acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos fosse proposta por interessados apenas depois do estabelecimento da Região, os seus pedidos estariam manifestamente em desconformidade com o art.º 7.º da Lei Básica por que todos os terrenos não reconhecidos como de propriedade privada até ao estabelecimento da Região passam, a partir deste, a integrar na propriedade do Estado.
  Mesmo que a acção fosse instaurada antes do estabelecimento da Região, tal como acontece com o presente processo, os referidos pedidos também não podem proceder se não houver sentença transitada até ao momento do estabelecimento da Região, o que equivale à falta de reconhecimento nos termos da lei e os pedidos de interessados violam a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
  É a mesma a razão de fundo das duas situações. Desde que não fosse confirmada legalmente a natureza privada da propriedade de terrenos antes do estabelecimento da Região, jamais pode obter a confirmação depois da criação da Região, independentemente da qualificação doutrinal deste tipo de acção como constitutiva ou declarativa, sob pena de violação do princípio consagrado no art.º 7.º da Lei Básica, segundo o qual a propriedade dos terrenos na Região cabe ao Estado. Os tribunais não podem proferir sentença de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre os terrenos, em desobediência ao disposto na referida norma, após o estabelecimento da Região, ou seja, a partir da entrada em vigor da Lei Básica”.
  Em conclusão, desde que até ao estabelecimento da RAEM os recorrentes não viram reconhecida a propriedade sobre o terreno dos autos, o artigo 7.º da Lei Básica impede agora tal reconhecimento visto o mesmo ser considerado propriedade do Estado.».
  Sobre a mesma matéria versam ainda os Acórdãos do TUI de 16.02.2011 processo nº 71/2010, de 30.05.2012 processo nº 12/2012 e de 06.02.2013 processo nº 2/2013, entre outros.
  Destarte, não sendo o prédio em causa de propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM nem tendo havido sobre ele a constituição de direito real algum, bem se andou na decisão recorrida ao julgar improcedentes os embargos, pelo que, aderindo-se integralmente à fundamentação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, nada mais se impõe acrescentar, mantendo-se a mesma e negando-se provimento ao recurso.
  
III. DECISÃO

  Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas pelos Recorrentes.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 17 de Fevereiro de 2022
  Rui Pereira Ribeiro
  Lai Kin Hong
  Fong Man Chong
  
1 O conteúdo da escritura pública consta no presente anexo, a fls. 25 a 34, também no processo principal, a fls. 41 a 45 e na sua versão da máquina de escrever, a fls. 398 a 403v do processo principal.
2 Texto original em português, pois a sua versão chinesa não é de tradução oficial.
3 O texto original é:
Art.º 9.º Não são permitidas:
2. Numa zona contínua de 80 metros além do nível normal das águas, as concessões de terrenos confinantes com lagos navegáveis e com rios abertos à navegação internacional.
Art.º 222 Não são permitidas:
2.º. Numa zona contínua de 80 metros além do nível normal das águas, as concessões de terrenos confinantes com lagos navegáveis e com rios abertos à navegação internacional;
4 Na realidade, segundo mostram a Portaria n.º3:450, a fls. 593 do processo principal e a escritura pública, a fls. 574 a 589 do processo principal, a respectiva concessão do terreno também foi feita segundo as supracitada duas disposições legais, quer dizer, o direito concedido é apenas um direito de ocupação temporário. Quanto ao pedido da dita concessão pode-se consultar o processo principal, fls. 1560.
5 Vide a Portaria n.º4:815 publicada no Boletim Oficial do território de Macau, n.º34, de 26 de Agost6o de 1950, bem como a escritura pública celebrada em 19 de Outubro de 1950, nelas foram expressamente utilizadas as palavras “ocupação” e “ocupação temporária”.
6 Dado que nos terrenos em causa pertencentes ao Estado, o direito que pode invocar um particular, quando muito, é a “posse temporária”. Perante a situação em que não existe qualquer direito real na lei particular, igualmente não pode a embargante possuir qualquer posse sobre qualquer direito real. Por outro lado, através da Portaria n.º4:815 publicada no Boletim Oficial do território de Macau n.º34, de 26 de Agosto de 1950, bem como as condições constantes da escritura pública de 19 de Outubro de 1050, os terrenos em causa ainda continuam a ser detidos pelo Estado, pelo que, quando muito, contra o Estado, o que um particular (ou pessoa quem pode exercer o direito, através de “ocupação temporária” autorizada pelo Estado) só pode ter a “detenção” mas não “posse”.
7 Tal como a análise feita acima, é a Associação de beneficência E titular do direito de “ocupação temporária”, quanto a isso, a parte de embargante não consegue provar o seu direito.
8 Refere-se à Lei Básica
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575/2021 CÍVEL 1