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Processo nº 137/2021 Data: 28.01.2022
(Autos de recurso jurisdicional)

Assuntos : Procedimento disciplinar.
Faltas injustificadas.
Parecer da Junta de Saúde; (natureza jurídica).
Homologação.
Acto administrativo.



SUMÁRIO

1. O parecer da Junta de Saúde está sujeito a “homologação do Director dos Serviços de Saúde”, (nos termos expressamente previstos no art. 8°, n.° 2, alínea f) do D.L. n.° 81/99/M), mostrando-se assim de concluir que é o “acto de homologação” (do parecer) que reveste a “natureza” e produz os “efeitos” jurídicos típicos de um “acto administrativo”, e em especial, o “efeito vinculativo”, com a sua necessária “obrigatoriedade” para o seu destinatário.

2. Assim, o (mero) parecer da Junta de Saúde, (de 05.07.2019), ainda que devida e efectivamente comunicado ao seu destinatário, (o ora recorrente), não o constitui(u) no “dever” de regressar ao trabalho (no dia seguinte), não o impedindo de continuar a justificar as suas faltas por doença através de atestados médicos nos termos previstos na alínea a) do art. 100° do E.T.A.P.M.; (pois que, como se referiu, tal “dever” só se constitui com a notificação do “acto – administrativo – de homologação” do dito parecer pelo Director dos Serviços de Saúde que, no caso, só veio a ter lugar em “25.10.2019”).

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 137/2021
(Autos de recurso jurisdicional)
   





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os restantes sinais dos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA datado de 20.04.2020 que que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão; (cfr., fls. 2 a 29-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 27.05.2021, (Proc. n.° 504/2020), julgou-se improcedente o recurso; (cfr., fls. 190 a 209).

*

Ainda inconformado, o referido recorrente recorreu para esta Instância, pedindo a revogação do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado; (cfr., fls. 225 a 269).

*

Após resposta da entidade recorrida pugnando pela improcedência do dito recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal de Última Instância; (cfr., fls. 273 a 282).

*

Em sede de vista, juntou o Exmo. Magistrado do Ministério Público douto e detalhado Parecer, considerando que o recurso merecia provimento; (cfr., fls. 294 a 298-v).

*

Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre apreciar.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal de Segunda Instância considerou e elencou como “provados” os factos seguintes:

«O recorrente é ex-Guarda de primeira da PSP.
Pelo menos desde 9 de Maio de 2019, o recorrente apresentou atestados médicos referentes aos seguintes períodos:
- De 9.5.2019 a 16.5.2019 (fls. 9 do P.A.);
- De 16.5.2019 a 23.5.2019 (fls. 10 do P.A.);
- De 23.5.2019 a 30.5.2019 (fls. 11 do P.A.);
- De 30.5.2019 a 6.6.2019 (fls. 12 do P.A.);
- De 20.6.2019 a 27.6.2019 (fls. 13 do P.A.);
- De 27.6.2019 a 4.7.2019 (fls. 14 do P.A.);
- De 4.7.2019 a 11.7.2019 (fls. 15 do P.A.);
- De 12.7.2019 a 19.7.2019 (fls. 16 do P.A.);
- De 19.7.2019 a 25.7.2019 (fls. 17 do P.A.);
- De 25.7.2019 a 1.8.2019 (fls. 18 do P.A.); e
- De 1.8.2019 a 8.8.2019 (fls. 19 do P.A.).

O recorrente gozou férias anuais durante o período compreendido entre 6.6.2019 e 23.6.2019. (fls. 35 e 36 do P.A.)
O recorrente apresentou os atestados médicos acima descritos com vista a justificar a sua ausência por doença durante o período compreendido entre 10/5/2019 e 8/8/2019.
No dia 5 de Julho de 2019, o recorrente compareceu à Junta de Saúde, tendo o mesmo sido informado verbalmente pela presidente da Junta de que deveria dirigir-se ao seu serviço para saber quando teria que retomar o seu posto de trabalho.
O recorrente não se apresentou ao serviço.
No dia 16 de Agosto de 2019, o recorrente voltou a comparecer à Junta de Saúde, tendo o mesmo sido informado verbalmente pela presidente da Junta de que não foi confirmado o período de ausência compreendido entre 10.5.2019 e 8.8.2019.
O parecer da Junta de Saúde foi homologado pelo Director dos SSM em 20.8.2019. (fls. 71 do P.A.)
Em 25.10.2019, o recorrente foi pessoalmente notificado, por escrito, daquele acto de homologação praticado pelo Director dos SSM. (fls. 70)
Em 4.10.2019, foi determinado o arquivamento do procedimento disciplinar em curso e ordenado a instauração de um outro procedimento disciplinar. (fls. 3 do P.A.)
Oportunamente, foi deduzida a seguinte acusação:
“ACUSAÇÃO
1.º
Nos termos do art.º 274.º, n.º2 do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo D.L n.º66/94/M, de 30 de Dezembro, contra o arguido do presente processo disciplinar, A, guarda-ajudante n.ºXXXXXX, foi deduzida a seguinte acusação e lhe concedido o prazo de 20 dias para a apresentação de defesa escrita:
2.º
Durante o período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019, o arguido encontrava-se na situação de falta por doença.
3.º
Em 5 de Julho de 2019, por causa de saúde, o arguido compareceu à Junta de Saúde dos Serviços de Saúde. Conforme consta do registo de exame da Junta, “os resultados da avaliação da capacidade de trabalho feita pelo respectivo médico especialista mostram que actualmente o arguido perde em 5% a capacidade de trabalho, e a Junta de Saúde lhe deu conselho que podia regressar ao posto de trabalho”.
Porém, de acordo com as informações, o arguido não só não se apresentou ao serviço, mas também ininterruptamente apresentou atestados médicos, ou seja, no período compreendido entre 5 de Julho e 8 de Agosto de 2019, o mesmo ainda se encontrava na situação de falta por doença.
Igualmente, de acordo com o parecer indicado em 16 de Agosto de 2019 pela Junta de Saúde dos Serviços de Saúde no registo de exame, as faltas do arguido no período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019 não foram confirmadas por não terem sido provadas como faltas justificadas. Sobre o caso, foi instaurado o processo disciplinar de ausência ilegítima.
4.º
Das averiguações feitas sobre o presente caso, resultou provado o seguinte:
(1) Durante o período compreendido 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019, o arguido encontrava-se de falta por doença.
(2) Em 5 de Julho de 2019, por causa de saúde, o arguido compareceu à Junta de Saúde dos Serviços de Saúde. Conforme consta do registo de exame da Junta, “os resultados da avaliação da capacidade de trabalho feita pelo respectivo médico especialista mostram que actualmente o arguido perde em 5% a capacidade de trabalho, e a Junta de Saúde lhe deu conselho que podia regressar ao posto de trabalho”.
Porém, de acordo com as informações, o arguido não só não se apresentou ao serviço, mas também ininterruptamente apresentou atestados médicos, ou seja, no período compreendido entre 5 de Julho e 8 de Agosto de 2019, o mesmo ainda se encontrava na situação de falta por doença.
Igualmente, de acordo com o parecer indicado em 16 de Agosto de 2019 pela Junta de Saúde no registo de exame, as faltas do arguido no período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019 não foram confirmadas por não terem sido provadas como faltas justificadas. Sobre o caso, foi instaurado o processo disciplinar de ausência ilegítima.
(3) Depois de verificadas as cópias do atestado médico apresentadas pelo arguido, verificou-se que existe sobreposição sobre o número de dias da falta constantes do atestado médico, e que em certo período de tempo, não foram apresentados os atestados médicos. São as seguintes tais situações:
-1) Em 16 de Maio de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-2) Em 23 de Maio de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-3) Em 30 de Maio de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-4) O recorrente gozou as férias anuais de 7 a 23 de Junho de 2019;
-5) Em 27 de Junho de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-6) Em 4 de Julho de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-7) Em 19 de Julho de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-8) Em 25 de Julho de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
-9) Em 1 de Agosto de 2019, existe sobreposição do mesmo dia;
Feitos o cálculo e dedução dos supracitados dias de sobreposição e de gozo de férias anuais, bem como foi excluído o período em que não foi apresentado atestado médico pelo arguido, verificou-se o seguinte:
- Desde 5 de Julho de 2019 em que a Junta de Saúde deu conselho ao arguido que podia regressar o seu posto de trabalho, bem como em 16 de Agosto de 2019, o arguido novamente compareceu à Junta de Saúde, tendo sido informado pela Junta de Saúda de que não foram confirmadas as suas faltas por doença no total de 73 dias, no período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019.
(4) O arguido encontrava-se de gozo das férias anuais de 7 a 23 de Junho de 2019;
(5) Em resumo, o arguido, depois de ter sabido o parecer emitido pela Junta de Saúde de que podia regressar ao posto de trabalho, ainda continuou a apresentar os atestados médicos, o que fez com que a Junta de Saúde, nos termos da lei, não confirmasse como faltas justificadas as faltas do arguido por doença no período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019. Pelo que, deve o arguido assumir a respectiva responsabilidade disciplinar.
5.º
Facto não provado: Não há.
6.º
O arguido possui como habilitação a 6.ª classe do ensino primário.
7.º
Conforme consta do registo do exame a que o arguido foi submetido, que foi apreciado pela Junta de Saúde, “os resultados da avaliação da capacidade de trabalho feita pelo respectivo médico especialista mostram que actualmente o arguido perde em 5% a capacidade de trabalho, e a Junta de Saúde lhe deu conselho que podia regressar ao posto de trabalho”. Contudo, o arguido ainda apresentou ininterruptamente os atestados médicos, fazendo com que a Junta de Saúde, nos termos da lei, não confirmasse como faltas justificadas as faltas do arguido por doença no período compreendido entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019 (o mesmo encontrava-se de gozo das férias anuais de 7 a 23 de Junho de 2019), num total de 73 dias, e pela prática do respectivo acto irregular, o arguido cometeu o disposto no art.º 105.º, n.º1, al. a) do ETAPM, conjugado com os n.ºs 2 e 5 do mesmo estatuto, violando o dever previsto no art.º 13.º, n.º2, al. a) (dever de assiduidade) do EMFSM;
Na presente infracção disciplinar, o arguido possui as seguintes circunstâncias atenuantes previstas no art.º 200.º, n.º2 do EMFSM:
- h) Os louvores, condecorações ou outras recompensas, concedidos em razão da função e publicados em ordem de serviço (ordem de serviço n.º42, de 4 de Março de 2016);
- i) A boa informação dos superiores de quem depende (em 2017, obteve a classificação de serviço com menção de “bom”;
Na presente infracção disciplinar, o arguido não possui as circunstâncias agravantes previstas no art.º 201.º, n.º2 do EMFSM.
8.º
Nos termos do art.º 238.º, n.º2, al. i) do EMFSM, conjugado com o art.º 240.º, al. c) do mesmo Estatuto, deve-se aplicar ao arguido A, guarda-ajudante n.ºXXXXXX a pena disciplinar de demissão.”

Posteriormente, pelo Exm.º Secretário para a Segurança foi proferido o seguinte despacho:
“Nos autos de processo disciplinar acima identificados, em que é arguido, Guarda de primeira n.º XXXXXX, A, do Corpo de Polícia de Segurança Pública, constam, como melhor se circunstancia na Acusação que aqui se dá por reproduzida, suficientemente provados os seguintes factos:
O arguido, que desempenhava funções no Posto de Migração do Terminal Marítimo da Taipa/Departamento de Controlo Fronteiriço faltou ao serviço entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019, para tanto invocando impedimento por doença. Porém, em 5 de Julho do mesmo ano a Junta de Saúde, proferiu parecer de inexistência de motivo de saúde que justificasse ao ausência o serviço, constituindo o arguido no dever de apresentação imediata no seu posto de trabalho, o que, como melhor vem descrito no libelo acusatório, não fez.
Constitui-se, assim, o arguido em sucessivas faltas injustificadas ao serviço, senão desde a apresentação do primeiro atestado médico – vd n.º 5 do artigo 105º do ETAMP – pelo menos desde 6 de Julho de 2019 (dia posterior ao parecer da Junta de Saúde) até ao dia 8 de Agosto do mesmo ano, caindo na situação de ausência ilegítima por tempo superior a 5 dias úteis, dentro do mesmo ano civil, por violação do dever de assiduidade – vd artigo 13º, n.º 2, al a), com referência ao disposto na i) do n.º 2 do artigo 238º, ambos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, o que determina a aplicação de uma pena de natureza expulsiva.
Favorecem a conduta do arguido as atenuantes das alíneas b); h) e i) do n.º 2 artigo 200º do EMFSM.
Foi ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina.
Nestes termos, ponderadas a gravidade da falta, a culpa e a responsabilidade do arguido, e não obstante as atenuantes que o favorecem o Secretário para a Segurança, no uso da competência que lhe advém do disposto no Anexo G ao artigo 211º do EMFSM e, bem assim, da Ordem Executiva n.º 182/2019, pune o arguido, o Guarda de primeira n.º XXXXXX, A, do CPSP, com a pena de DEMISSÃO, nos termos das alíneas i) do n.º 2 do artigo 238º do EMFSM, por força do disposto na alínea c) do seu artigo 240º.
Notifique-se o presente despacho nos termos do artigo 285º do EMFSM e, bem assim, de que do mesmo cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância.”»; (cfr., fls. 196-v a 199-v e 27 a 32 do Apenso).

Do direito

3. Como se colhe do que até aqui se deixou relatado, vem A recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, negando provimento ao seu (anterior) recurso contencioso, confirmou a decisão com a qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de demissão.

Percorrendo as – extensas – alegações e conclusões pelo ora recorrente apresentadas, adequado parece de concluir que é o mesmo de opinião que o Acórdão recorrido padece dos seguintes vícios:

“(a) Omissão de pronúncia por falta de referência fundamentada à deliberação da Junta de Saúde, datada de 5/07/2019, homologada pelo Director dos Serviços de Saúde em 5/7/2019, e que esteve na base/ fundamento para a instauração do processo disciplinar ao recorrente, culminando na pena de demissão;
(b) Erro de julgamento por a decisão proferida pelo Tribunal a quo se fundamentar noutros factos, nomeadamente na deliberação da Junta de Saúde datada de 16/08/2019, homologada pelo Director dos Serviços de Saúde em 20/8/2019, sem que a mesma fosse fundamento para a demissão do ora Recorrente;
(c) Erro de julgamento/direito por a decisão proferida pelo Tribunal a quo se fundamentar num alegado caso decidido e consolidado na ordem jurídica, entendendo que o Recorrente foi informado verbalmente do parecer de 16/08/2019 emitido pela Junta de Saúde e notificado em 25/10/2019 do acto homologatório, resultando, pela falta da atempada impugnação, na força de caso decidido ou resolvido e pelo facto das notificações referentes às homologações proferidas pelo Director dos Serviços de Saúde, datadas, respectivamente, de 22/7/2019 e de 25/10/2019, não cumprirem o estipulado no artigo 68.º e 70.º do CPA;
(d) Erro de direito por vício de violação de lei pela não produção de efeitos pela comunicação verbal, efectuada nos termos do n. 7 do artigo 105.º do Estatutos dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), bem como dos artigos 68.º e 70.º do CPA, relativa às deliberações das Juntas de Saúde datadas de 5/7/2019 e de 16/8/2019, excluindo o dolo e justificando plenamente as ausências legítimas ao serviço;
(e) Erro de julgamento quanto à decisão do vício de violação de lei, por violação dos princípios da proporcionalidade, da adequação e da justiça, previstos nos artigos 5.º e 7.º do CPA, e pelo exercício desrazoável do poder discricionário”, concluindo, a final, que “deverá ser dado provimento ao presente recurso nos termos supra explanados, e em consequência:
- seja declarada a nulidade do acórdão a quo por omissão de pronúncia e pelo mesmo se ter consubstanciado em factos que não estiveram na base da demissão do aqui recorrente, violando a lei, nomeadamente os artigos 571.º, n.º 1, al. d) do CPC, ex vi artigo 1.º do CPAC e artigo 74.º, n.º 2 do CPAC;
- seja revogado o Acórdão recorrido e anulado o acto recorrido por violação de lei/errada aplicação da lei substantiva e processual, mormente os artigos 105.º, n.º 7 do ETAPM e 68.º e 70.º do CPA, bem como, artigos 105.º, n.º 5 e 90.º, n.º 2 ambos do ETAPM; artigos 13.º, n.º 2, al. a) e 238.º, n.º 2, al. i) do Decreto Lei n.º 66/94/M, e por erro de julgamento quanto às decisões sobre a violação do princípio da proporcionalidade e sobre o exercício desrazoável do poder discricionário, (…)”; (cfr., fls. 225 a 269).

Sem demoras, vejamos se lhe assiste razão.

–– E, começando pela assacada “omissão de pronúncia”, (e tendo presente o seu sentido e alcance; cfr., v.g., entre outros, os recentes Acs. deste T.U.I. de 18.06.2021, Proc. n.° 200/2020-II, de 14.07.2021, Proc. n.° 139/2020, de 23.07.2021, Proc. n.° 61/2021 e de 10.11.2021, Proc. n.° 131/2021), não se mostra de considerar a mesma como verificada.

Na verdade, basta uma leitura ao Acórdão recorrido para se constatar que o Tribunal de Segunda Instância emitiu expressa pronúncia sobre todas as questões pelo recorrente colocadas em sede do seu anterior recurso contencioso; (cfr., fls. 199-v a 209).

Pode-se, eventualmente, não concordar com o que no dito veredicto se considerou e decidiu.

Porém, como se apresenta evidente, tal não constitui o vício imputado e, nestes termos, há que dar o mesmo como não verificado.

*

Dito isto, ponderando no decidido no Acórdão agora em apreciação, nos restantes “vícios” que pelo recorrente lhe são assacados, e, como – bem – se salienta no douto Parecer do Ministério Público, (com o qual, dada a clara, cabal e acertada solução que apresenta para o presente recurso, se nos mostra de subscrever na íntegra), afigura-se de concluir que a decisão recorrida não se pode manter.

Vejamos.

–– Em sede de análogos recursos, e ponderando sobre “idênticos vícios” aos ora em questão, teve este Tribunal oportunidade de consignar o que segue:

“Como é sabido, o “recurso contencioso”, é o meio (processual) próprio para obter o reconhecimento judicial da existência de (todos os) vícios que possam inquinar um acto administrativo lesivo, e, assim, obter a sua anulação contenciosa; (cfr., art. 21° do C.P.A.C.).
Por sua vez, no âmbito da temática dos “vícios do acto administrativo”, tem-se entendido, que estes se identificam com os (tradicionais vícios) de “usurpação de poder”, “incompetência”, “vício de forma”, “desvio de poder” e “violação de lei”.
O conceito de “violação de lei”, não abarca toda e qualquer violação da lei: com efeito, por definição, qualquer vício do acto administrativo implica uma violação da lei (no sentido amplo de “bloco de legalidade”).
Há um critério positivo e um critério negativo de identificação do vício de violação de lei.
O conteúdo essencial do vício de violação de lei respeita às ilegalidades objectivas materiais dos actos administrativos: o vício de violação de lei é, assim, aquele em que incorrem os actos administrativos que desrespeitem requisitos de legalidade relativos aos pressupostos de facto, ao objecto e ao conteúdo.
O vício de violação de lei é também doutrinalmente empregue para garantir o caracter fechado da teoria dos vícios do acto administrativo.
Nestes termos, padecem de “violação de lei” os actos administrativos (ilegais) cuja ilegalidade não se possa reconduzir a qualquer dos outros vícios, tendo, portanto, este vício, “carácter residual”.
Constituindo o “erro nos seus pressupostos” um dos vícios de violação de lei que conduzem à anulação do acto administrativo, e competindo ao recorrente alegar e provar no recurso os factos integrativos do erro, cabe ao Tribunal, face a todos elementos legalmente admissíveis de que dispõe, formular um juízo sobre a conformidade com a realidade dos pressupostos de facto que a Administração teve em conta aquando da prolação do acto impugnado.
O “erro nos pressupostos de facto” constitui assim uma das causas de invalidade do acto administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do acto administrativo que contraria a lei.
Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do acto partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efectiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão administrativa factos não provados ou desconformes com a realidade.
Assim, se o pressuposto (factual) de que o acto recorrido partiu, não se mostra verificado, o mesmo encontra-se inquinado com o vício de “violação de lei” por “erro nos pressupostos de facto”.
Adequado é desta forma dizer-se que:
- o «erro sobre os pressupostos de facto», traduz-se na divergência entre os factos que a entidade administrativa teve em conta para decidir como decidiu, e a sua real ocorrência; e que,
- o «erro nos pressupostos de direito», traduz-se na inadequação do regime jurídico e normas jurídicas aplicadas pela entidade administrativa à base factual convocada”; (cfr., v.g., os Acs. de 31.07.2020, Proc. n.° 67/2020 e de 24.09.2021, Proc. n.° 109/2021, podendo-se sobre esta matéria ver também o recente Ac. do S.T.J. de Portugal de 21.12.2021, Proc. n.° 11/21).

Aqui chegados, e feitas as considerações que se deixaram transcritas, imperativo se nos apresenta de concluir no sentido da procedência do recurso, passando-se a expor este nosso ponto de vista.

Pois bem, como já se fez referência, e assim resulta igualmente dos presentes autos, a decisão disciplinar de demissão do ora recorrente tem como fundamento a sua violação, enquanto guarda do Corpo de Polícia de Segurança Pública, do “dever de assiduidade” a que se refere a alínea a) do n.° 2 do art. 13° do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, (E.M.F.S.M.), aprovado pelo D.L. n.° 66/96/M de 30.12, (aqui aplicável).

Para tal, considerou-se, pois, que o recorrente “faltou ao serviço entre 10 de Maio e 8 de Agosto de 2019”, invocando-se um seu alegado “impedimento por doença” que não se veio a comprovar, dado que provado resultou que, em 05.07.2019, a Junta de Saúde emitiu um parecer no sentido da “inexistência de motivo de saúde que justificasse a sua ausência do serviço”, considerando-se, assim, que pelo menos a partir dessa data, (05.07.2019), incorreu em “situação de ausência ilegítima” que acabou por dar lugar à sua punição disciplinar com a pena de demissão em causa.

Ora, se bem ajuizamos, (e em síntese), considerou-se pois que após a comunicação que ao recorrente foi feita do referido parecer da Junta de Saúde, (de imediato) ficou o mesmo “obrigado” a apresentar-se ao serviço, não mais podendo justificar a sua ausência ao serviço com recurso a atestados médicos.

Porém, em nossa opinião, cremos que o assim entendido não se apresenta como adequado.

Vejamos.

Nos termos da alínea a) do art. 100° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, (E.T.A.P.M.), aprovado pelo D.L. n.° 87/89/M de 21.12:

“A ausência por doença é justificada mediante apresentação de um dos seguintes documentos:
a) Atestado médico;
(…)”.

Atingindo o trabalhador o limite de 60 dias de ausência ao serviço por motivo de doença justificada nos termos do dito art. 100° do E.T.A.P.M., deve o mesmo ser submetido à Junta de Saúde, solicitada pelo dirigente do Serviço; (cfr., alínea a) do n.° 1 do art. 104° deste E.T.A.P.M.).

Nessa situação, (e de acordo com a alínea a) do n.° 1 do art. 105° do dito E.T.A.P.M.), cabe à Junta de Saúde pronunciar-se sobre a aptidão do trabalhador para regressar ao serviço, preceituando, a norma do n.° 7 deste mesmo comando legal que “O parecer da Junta de Saúde deve ser comunicado ao trabalhador no próprio dia e enviado ao respectivo serviço imediatamente após ter sido homologado”.

E, em face do exposto, (totalmente) correcta é a consideração pelo Ministério Público tecida no seu Parecer, no sentido de que “a intervenção da Junta de Saúde não se destina a verificar a exactidão ou a idoneidade certificativa dos atestados médicos que anteriormente tenham sido emitidos para justificar a ausência ao serviço por doença por parte do trabalhador. A Junta pronuncia-se sobre a aptidão ou inaptidão deste para regressar ao serviço, devendo, desejavelmente, fazê-lo de forma inequívoca, para que não haja qualquer dúvida relativamente ao sentido do seu parecer. Dizendo de outro modo, mas com o mesmo alcance, a intervenção pericial da Junta de Saúde não opera ex tunc, mas apenas ex nunc, para o futuro”; (cfr., fls. 295-v).

Aliás, como se viu, este parecer da Junta de Saúde – como a própria expressão “parecer” o sugere – está sujeito a “homologação do Director dos Serviços de Saúde”, (nos termos expressamente previstos no art. 8°, n.° 2, alínea f) do D.L. n.° 81/99/M), mostrando-se, assim, (natural) concluir que é o “acto de homologação” (do parecer), e não o referido parecer, que reveste a “natureza” (e produz os “efeitos” jurídicos típicos) de um “acto administrativo”, ou seja, (e em especial), o típico “efeito vinculativo”, com a sua necessária “obrigatoriedade” para o seu destinatário, impondo-se, desta forma, considerar, igualmente, que – como in casu sucedeu – o (mero) parecer da Junta de Saúde datado de 05.07.2019 (e que foi efectivamente comunicado ao ora recorrente), não o constituiu no “dever” de regressar ao trabalho no dia seguinte, não o impedindo de continuar a justificar as suas faltas por doença através de atestados médicos nos termos previstos na atrás transcrita alínea a) do art. 100° do E.T.A.P.M., (já que, como se referiu, tal “dever” e “impedimento” só se constituiu com a notificação do “acto – administrativo – de homologação” do dito parecer praticado Director dos Serviços de Saúde, o que só veio a suceder em “25.10.2019”; cfr., “matéria de facto”).

Na verdade, importa ter em conta que, (pelo menos, de uma maneira geral), “Pareceres são estudos fundamentados, com as respectivas conclusões, sobre questões cientificas, técnicas ou jurídicas, elaborados por serviços, colégios ou instâncias administrativas, funcionalmente vocacionadas (apenas ou também) para o exercício de tarefas consultivas, emitidos por determinação da lei ou a solicitação dos órgãos com competência para a instrução ou decisão do procedimento, para auxiliarem a tomada dessa decisão (ou a solução de outra questão procedimental)”; (cfr., v.g., Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim in, “Código do Procedimento Administrativo”, 2ª ed., pág. 441 e 442, podendo-se, também, no mesmo sentido, ver, Diogo Freitas do Amaral que define os pareceres como “actos opinativos elaborados por peritos especializados em certos ramos do saber, ou por órgãos colegiais de natureza consultiva”, in “Direito Administrativo”, Vol. III, 1989, pág. 136).

Por sua vez, não se pode olvidar também que nos termos do art. 91° do C.P.A.:

“1. Os pareceres são obrigatórios ou facultativos, consoante sejam ou não exigidos por lei; e são vinculativos ou não vinculativos, conforme as respectivas conclusões tenham ou não de ser seguidas pelo órgão competente para a decisão.
2. Salvo disposição expressa em contrário, os pareceres referidos na lei consideram-se obrigatórios e não vinculativos”.

E, em face do exposto e atento o regime legal ao caso aplicável, (certo é que) não se vislumbra norma legal que imponha a “natureza vinculada” dos pareceres emitidos pela Junta de Saúde.

Aqui chegados, e em conformidade com o que se deixou consignado, cremos que à vista está a solução que deixamos adiantada para o presente recurso.

Com efeito, o Acórdão recorrido negou provimento ao recurso contencioso do ora recorrente por considerar que o recorrente não atacou o acto de homologação do parecer emitido pela Junta de Saúde em “16.08.2019” e assim que “na falta de impugnação do acto de homologação, os dias de ausência são havidos necessária e imperativamente como faltas injustificadas, ao abrigo dos termos previstos nos artigos 105.º, n.º 5 e 90.º, n.º 2, ambos do ETAPM”.

Porém, e como – bem – se observa no citado Parecer do Ministério Público, há equívoco:

“Importa notar que da fundamentação da decisão recorrida não consta qualquer referência ao parecer da Junta de Saúde de 16 de Agosto de 2019, mas apenas ao de 5 de Julho desse ano. O que se compreende bem.
Na verdade, os dias de ausência que foram considerados na decisão punitiva como factos integradores da violação do dever de assiduidade foram os situados entre 6 de Julho e 8 de Agosto de 2019, ou seja, os dias posteriores ao parecer da Junta de Saúde de 5 de Julho de 2019, pois que, como acima já referimos, a intervenção da Junta de Saúde ao abrigo do n.º 1 do artigo 105.º do ETAPM opera ex nunc, para o futuro, só nessa medida podendo conformar vinculativamente o comportamento do trabalhador.
Todavia, o parecer de 5 de Julho de 2019, dando de barato que o mesmo contém o juízo sobre a aptidão do trabalhador para regressar ao serviço, o que está longe de ser inequívoco, o certo é que tal parecer não foi objecto de homologação por parte do Director dos Serviços de Saúde.
Daí que a simples comunicação do parecer da Junta ao Recorrente no próprio dia a que se refere o n.º 7 do artigo 105.º do ETAPM não só não vinculou o Recorrente a regressar ao serviço como também não constituiu impedimento juridicamente relevante a que o mesmo continuasse a justificar, validamente, a ausência por doença mediante apresentação de atestado médico nos termos gerais resultantes do artigo 100.º, alínea a) do ETAPM na exacta medida em que, como vimos, inexistia na ordem jurídica o acto administrativo do qual, de forma autoritária e vinculativa, resultasse um dever jurídico para o trabalhador regressar ao serviço ou, em caso de adoecer nos 7 dias úteis seguintes, se apresentar à Junta para confirmação da doença nos termos previstos no n.º 2 do artigo 105.º do ETAPM.
Portanto, ao contrário do que decidiu a Administração, a ausência do Recorrente ao serviço no período situado entre 6 de Julho e 8 de Agosto de 2019 foi valida e eficazmente justificada através da apresentação de atestados médicos e por isso carece de fundamento legal a conclusão que fundou a prática do acto administrativo recorrido no sentido de que tais faltas, porque injustificadas, representam situação de ausência ilegítima disciplinarmente relevante.
Cremos, por isso, que aquele acto enferma de vício de violação de lei e deve, por isso, ser anulado”; (cfr., fls. 297 a 297-v).

Ora, mostrando-se-nos inteiramente claro e acertado o que se deixou transcrito, (e que se nos mostra de subscrever), mais não se mostra necessário consignar para se concluir pela procedência do presente recurso, com a necessária anulação do acto administrativo recorrido.

Decisão

4. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e anulando-se o acto administrativo recorrido.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Macau, aos 28 de Janeiro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas

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