Processo n.º 1024/2021 Data do acórdão: 2022-2-24
Assuntos:
– rejeição do recurso
– manifesta improcedência do recurso
– reclamação para conferência da decisão de rejeição do recurso
– não alteração do objecto do recurso
S U M Á R I O
O arguido pode reclamar para conferência da decisão do relator que lhe rejeitou o recurso com fundamento na sua manifesta improcedência, mas a reclamação não pode implicar a alteração do objecto do recurso inicialmente interposto.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1024/2021
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do relator)
Recorrente ora reclamante: Arguido A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 123 a 128v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-21-0159-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado (furto de coisa móvel alheia de valor consideravelmente elevado), p. e p. sobretudo pelo art.o 198.o, n.o 2, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de três anos e três meses de prisão, e no pagamento da quantia indemnizatória de HKD240.000,00, arbitrada oficiosamente, à sociedade comercial ofendida chamada B Limited, com juros legais desde a data desse próprio acórdão até integral e efectivo pagamento (isto apesar de o arguido ficar absolvido do crime de burla em valor consideravelmente elevado por que vinha também acusado).
Inconformado com a decisão condenatória penal e a decisão de arbitramento oficioso da indemnização, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua motivação apresentada a fls. 139 a 156v dos presentes autos, (1) existir erro notório na apreciação da prova (nomeadamente, quer no tocante ao decurso dos factos de extravio do relógio em causa nos autos, quer quanto ao já conhecimento da identidade de qual o dono do relógio, e também no tangente à identidade da pessoa que alienou o relógio à sociedade comercial ofendida, e ainda também no respeitante à autenticidade e ao valor do mesmo relógio, até porque houve valoração ilegal de depoimento indirecto prestado pelo senhor responsável da sociedade comercial ofendida chamado Tong Wai Seng nos pontos relativos ao decurso dos factos de alienação do relógio e à identidade da pessoa alienante do relógio, dado que não foi essa testemunha quem lidou pessoalmente com a pessoa alienante do relógio, com a agravante de que aquela sociedade ofendida nem cumpriu o disposto no art.o 38.o do Código Comercial), devendo ele o recorrente, por força do princípio de in dubio pro reo, passar a ser absolvido desse crime (por ser de considerar como não provados os factos provados 1, 2, 5, 7 e 9 descritos no aresto impugnado), com consequente invalidação também da decisão de arbitramento oficioso da indemnização (devido à inexistência de prova cabal sobre o dano da sociedade ofendida), e, fosse como fosse, (2) haver excesso na medida da pena, merecendo ele a redução da pena, com sempre almejada suspensão da execução da pena.
Ao recurso, respondeu o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal recorrido a fls. 158 a 163 dos autos, no sentido de manifesta improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 180 a 182v, pugnando pela improcedência do recurso.
Por decisão sumária proferida a fls. 184 a 188, decidiu o ora relator em rejeitar o recurso dada a sua manifesta improcedência, nos termos materialmente permitidos pelos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP).
Veio o recorrente reclamar dessa decisão do relator para conferência, através do petitório de fls. 192 a 199, reiterando a sua posição vertida na motivação do recurso na parte respeitante ao julgamento da matéria de facto, para além de defender que o seu recurso não devesse ser rejeitado.
Sobre a matéria dessa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 201 a 201v pela improcedência da mesma.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão da Primeira Instância então recorrido pelo arguido ficou proferido a fls. 123 a 128v dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. A decisão sumária do relator ora sob reclamação pelo arguido recorrente tem por fundamentação e decisão o seguinte:
<<[…] De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
No caso, o recorrente fez constar diversos argumentos na sua motivação do recurso para sustentar o seu pedido de absolvição do crime de furto em valor consideravelmente elevado e da indemnização por que vinha condenado em primeira instância.
Mas, só é de conhecer do vício de erro notório na apreciação da prova colocado a título principal nessa motivação a propósito do pedido de absolvição desse crime e da indemnização, e, eventualmente, também da questão de alegado excesso na medida da pena (com também pedido de suspensão da execução da pena).
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso dos autos, vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, não se mostra patente que o resultado de julgamento da matéria de facto (com pertinência à decisão penal condenatória e à decisão de arbitramento oficioso de indemnização) feito pelo Tribunal a quo tenha sido obtido com violação de quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, havendo, pois, que naufragar o pedido de absolvição do crime de furto em valor consideravelmente elevado e da indemnização por que vinha o recorrente condenado em primeira instância, tendo-se este, evidentemente, limitado a tentar fazer impor o seu ponto de vista sobre a factualidade provada nos diversos pontos alegados na sua motivação do recurso, ao arrepio, assim, do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do mesmo Código.
Com efeito, o Tribunal recorrido já explicou, com suficiente congruência lógica, o resultado da sua livre convicção sobre os factos, após examinados os meios de prova aí referidos (cfr. o teor da fundamentação probatória do próprio acórdão recorrido, sobretudo no último parágrafo da página 7 do texto desse aresto, e nos dois primeiros parágrafos da página seguinte do mesmo texto, a fl. 126 a 126v dos autos).
E esse resultado do julgamento de factos feito pelo mesmo Tribunal não é manifestamente desrazoável, sendo de salientar que não houve valoração ilegal de algum depoimento indirecto (de facto, o teor do depoimento do senhor testemunha Tong Wai Seng ouvido na audiência de julgamento, e já referido no terceiro parágrafo da página 6 do texto do acórdão recorrido, a fl. 125v dos autos, resultou daquilo que ele sabia pessoalmente, e também em face do registo documental dessa sociedade; e até foi graças ao depoimento dessa testemunha que o recorrente saiu finalmente absolvido do crime de burla em valor consideravelmente elevado por que vinha acusado). E a questão de alegada inexistência de escrituração mercantil por parte da sociedade comercial ofendida nunca obsta (por não haver qualquer norma jurídica a prescrever isto) à formação da livre convicção do tribunal sobre os factos.
Assim, ante a matéria de facto já dada por provada sem erro notório na apreciação da prova nos diversos pontos esgrimidos na motivação do recurso (mormente nos factos provados 1, 2, 5, 7 e 9), naufraga a pretensão de absolvição do crime de furto em valor consideravelmente elevado e de absolvição da indemnização arbitrada oficiosamente no acórdão recorrido.
E agora do pedido subsidiário do recorrente: Segundo a norma do art.o 198.o, n.o 2, alínea a), do CP, o crime de furto em valor consideravelmente elevado é punível com pena de dois a dez anos de prisão. Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas pelo Tribunal recorrido na fundamentação fáctica do seu acórdão, e tendo em conta as inegáveis exigências de prevenção geral deste delito, é patente que a pena de três anos e três meses de prisão já é benévola, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, ainda que esse Tribunal não deva ter afirmado na fundamentação jurídica do seu aresto que o arguido não chegou a demonstrar a postura de confessar francamente os factos nem de arrependimento da prática dos factos, posto que ele foi julgado à revelia.
E por ser uma pena já acima dos três anos de prisão, é inviável a aplicação do instituto de suspensão da execução da pena, por inverificação a montante do requisito formal postulado no n.o 1 do art.o 48.o do CP.
Há, pois, que rejeitar o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, devido ao espírito do n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
4. Dest’arte, decide-se em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
Custas do recurso pelo arguido, com cinco UC de taxa de justiça e cinco UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso).
Macau, 26 de Janeiro de 2022.
[…]>>
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio o arguido recorrente reclamar para conferência da decisão tomada pelo relator pela qual foi rejeitado o recurso dele do acórdão condenatório da Primeira Instância.
Observa-se que o recurso foi aí rejeitado por, na óptica do relator, ser manifestamente improcedente.
Cabe agora conhecer do objecto do recurso então interposto por esse recorrente, na parte referente ao julgamento da matéria de facto, em função do âmbito da discordância concretamente manifestada no petitório da reclamação para conferência, posto que, aliás, a reclamação da decisão sumária desse seu recurso não pode implicar, seja como for, a alteração do objecto do próprio recurso.
Pois bem, vistos todos os elementos dos autos, é de improceder a reclamação sub judice, visto que há que manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária do relator na parte ora sindicada no petitório da reclamação, por essa decisão que rejeitou o recurso por manifestamente improcedente estar conforme com a matéria de facto já dada por provada em primeira instância e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação jurídica da própria decisão sumária (sendo certo que o alegado problema de “depoimento indirecto” já foi inclusivamente abordado na fundamentação da decisão de rejeição do recurso, concretamente no último parágrafo da página 7 do texto dessa decisão e nas duas primeiras linhas da página seguinte, a fl. 187 a 187v dos autos).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação do arguido da decisão sumária do relator que lhe decidiu rejeitar o recurso do acórdão condenatório da Primeira Instância.
Para além das custas, taxa de justiça e sanção pecuniária de rejeição do recurso referidas no dispositivo da decisão sumária, pagará ainda o recorrente as custas da sua reclamação, com quatro UC de taxa de justiça correspondente.
Macau, 24 de Fevereiro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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