--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). ----------------
--- Data: 28/02/2022 --------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kuong Seng --------------------------------------------------------------------------
Processo n.º 973/2021
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguida e demandada civil): A
Recorrido (assistente e demandante civil): B
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Por sentença proferida a fls. 270 a 279v do Processo Comum Singular n.° CR4-20-0392-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou a arguida A, aí já melhor identificada, condenada como autora material de um crime consumado de difamação, p. e p. pelos art.os 174.o, n.o 1, e 177.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de dois meses de prisão (suspensa na execução por um ano e seis meses, sob condição de prestação, em dez dias, de dezoito mil patacas de contribuição pecunária a favor da Região Administrativa Especial de Macau), bem como no pagamento de vinte mil patacas de indemnização cível a favor do assistente demandante B, para efeitos de reparação de danos não patrimoniais deste, com juros legais.
Inconformada com essa decisão, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, o seguinte, na sua motivação de fls. 291 a 318 dos presentes autos correspondentes, para pretender a invalidação da decisão recorrida:
– não assiste razão ao Tribunal recorrido, por não haver nos autos prova suficiente sobretudo da intenção dela de difamar o ora assistente;
– a própria recorrente limitou-se a revelar um facto (de consumo de droga pelo ora assistente) numa acção judicial (de carácter sigiloso e confidencial) de regulação do poder paternal da filha de ambos, com base no conhecimento pessoal e directo que tinha em resultado da vida conjugal com o assistente, fazendo-o, por ser mãe com preocupação pelo bem-estar da filha, com o objectivo de protecção dos melhores interesses desta, tanto assim é que ela própria, nessa acção, requereu que o requerido pai fosse submetido a exame médico para se aferir se ele estaria em condições de tomar conta da filha menor, se a guarda da mesma fosse entregue a ele por períodos mais longos;
– a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), para além de violar o disposto nos art.os 40.o, 44.o, 49.o, 64.o, 65.o, 66.o, n.o 2, alínea b), 67.o, 174.o e 177.o do CP;
– outrossim, não se mostram reunidos os requisitos legais para a atribuição da indemnização cível ao assistente demandante.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 321 a 328 dos autos no sentido da manutenção da decisão condenatória penal, enquanto respondeu o assistente e demandante civil a fls. 338 a 344 pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 358 a 361 sobre a parte penal do recurso, no sentido de manutenção da decisão condenatória do crime de difamação.
Cumpre decidir sumariamente do recurso, dada a simplicidade das questões a decidir, nos termos permitidos pelo art.o 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do art.o 4.o do CPP.
2. Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
A sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 270 a 279v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
Segundo a factualidade aí descrita como provada:
– A arguida intentou em 29 de Novembro de 2019 uma acção de regulação do exercício do poder paternal relativamente à filha de ambos (acção essa como sendo Processo n.o FM1-19-0236-MPS do Juízo de Família e de Menores do TJB), imputando directamente ao requerido pai B (ora assistente e demandante civil), na petição inicial respectiva, factos e fazendo um juízo de valor depreciativo, mas falsos e atentatórios do bom nome, honra e dignidade dele, os quais consistiram, em síntese, no seguinte:
– (no art.o 19.o da mesma petição:) “[…] a Requerente tem conhecimento de que o Requerido é consumidor de drogas, o que deixa a Requerente seriamente receosa do que poderá acontecer à sua filha menor nas semanas em que a mesma passa em casa do pai”;
– (no art.o 20.o da petição:) “[…] entende a Requerente que, sem que o Requerido seja submetido a exames médicos que confirmem a inexistência do perigo para a menor, resultante da convivência com o pai, deve ser fixado um regime de visitas de apenas um fim de semana em cada 15 dias e ainda que a menor seja acompanhada dos avós maternos durante a sua permanência em casa do pai”;
– (no art.o 21.o da petição:) “[…] entende a Requerente que, para além do relatório médico a apresentar, seria prudente ouvir também o médico que irá efectuar o exame ao Requerido”;
– (e no art.o 22.o da petição:) “O comportamento do Requerido deixa na Requerente fundado receio do perigo que poderá advir para a saúde e bem estar da menor, se esta permanecer com o pai, sem a presença de alguém da confiança da Requerente […]”.
3. A solução a dar ao recurso sub judice está propriamente na aplicação, a nível do Direito, da causa de exclusão da ilicitude, evidentemente também de conhecimento oficioso, prevista nomeadamente na alínea b) do n.o 2 do art.o 30.o do CP (norma esta que não deixa de ser aplicável ao tipo delitual penal de difamação ora em causa – neste sentido, cfr. MANUEL LEAL-HENRIQUES, in ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO PENAL DE MACAU (PARTE ESPECIAL), Volume III, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2014, página 423, linhas 6 e 7).
Em sintonia com o disposto no art.o 30.o, n.os 1 e 2, alínea b), do CP: o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade; nomeadamente, não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
No caso dos autos, o assistente sentiu-se difamado pela arguida, por na petição inicial apresentada pela arguida em 29 de Novembro de 2019 ao Tribunal Judicial de Base para efeitos de regulação do execício do paternal da filha de ambos terem constado as seguintes afirmações:
– (no art.o 19.o da mesma petição:) “[…] a Requerente tem conhecimento de que o Requerido é consumidor de drogas, o que deixa a Requerente seriamente receosa do que poderá acontecer à sua filha menor nas semanas em que a mesma passa em casa do pai”;
– (no art.o 20.o da petição:) “[…] entende a Requerente que, sem que o Requerido seja submetido a exames médicos que confirmem a inexistência do perigo para a menor, resultante da convivência com o pai, deve ser fixado um regime de visitas de apenas um fim de semana em cada 15 dias e ainda que a menor seja acompanhada dos avós maternos durante a sua permanência em casa do pai”;
– (no art.o 21.o da petição:) “[…] entende a Requerente que, para além do relatório médico a apresentar, seria prudente ouvir também o médico que irá efectuar o exame ao Requerido”;
– (e no art.o 22.o da petição:) “O comportamento do Requerido deixa na Requerente fundado receio do perigo que poderá advir para a saúde e bem estar da menor, se esta permanecer com o pai, sem a presença de alguém da confiança da Requerente […]”.
Entretanto, a arguida ora recorente tem o direito de acesso ao Direito (cfr. mormente o disposto no art.o 1.o, n.o 1, do CPC), para defender os supostos direitos ou interesses dela própria (ou os confiados a ela nos termos legais – como sendo o caso do exercício do poder-dever, na qualidade de progenitor, de velar, no interesse da sua filha menor, pela segurança e saúde desta: cfr. o disposto nos art.os 1732.o, 1733.o, n.o 1, e 1737.o do Código Civil).
De frisar que já alertou o Insigne PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume II, 3.a Edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, páginas 258 a 259:
– “Dizemos <>, porque nunca se pôs, nem se poderia pôr, como condição para o exercício do direito de acção ou de defesa que o autor ou o réu seja realmente titular do direito substancial que se arroga. Seria, na verdade, absurdo que se enunciasse esta regra: só pode demandar ou defender-se em juízo quem tem razão; ou, por outras palavras, só é lícito deduzir no tribunal pedidos ou contestações objectivamente fundados.
Só na altura em que o tribunal emite a sentença, é que vem a saber-se se a pretensão do autor é fundada, se a defesa do réu é conforme ao direito. De modo que exigir, como requisito prévio para a admissibilidade da acção ou da defesa, a demonstração da existência do direito substancial, equivalia, ou a cair numa petição de princípio, ou a fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm razão e aos que a têm.”
E como se sabe, na falta de acordo dos cônjuges separados de facto em relação ao exercício do poder paternal da filha menor de ambos, assiste, inclusivamente, a qualquer um deles legalmente o direito e interesse processuais de requerer ao tribunal competente a regulação do exercício do poder paternal.
No caso, na petição inicial apresentada em nome da arguida ora recorrente ao TJB para regulação do exercício do poder paternal, foi alegada a circunstância de ser o requerido pai um consumidor de droga, como um dos fundamentos fácticos para pedir a regulação do exercício do poder paternal, o que fez com que essa alegada circunstância fáctica devesse integrar jusprocessualmente o objecto de investigação em sede própria da correspondente acção cível de regulação do exercício do poder paternal, pelo competente Juízo de Família e de Menores do TJB, em prol dos interesses da pessoa menor em causa no processo.
Dentro de todo o enquadramento jurídico acima referido, à conduta da requerente mãe de articular factos ou considerações contra o requerido pai imputando a este o consumo de droga na petição inicial de regulação do exercício do poder paternal relativamente à filha menor de ambos não se poderia assacar a responsabilidade penal em sede de difamação, sob pena de ficar coarctada a liberdade do exercício do seu direito de acção para requerer ao tribunal competente a regulação do exercício do poder paternal (nomeadamente na vertente de liberdade de invocação de fundamentos fácticos para propositura dessa acção cível).
E se tal circunstância de ser o requerido pai um consumidor de droga, alegada pela requerente mãe na petição da referida acção cível, acabasse por ser tida como inverídica pelo competente Juízo de Família e de Menores do TJB, então já poderia ser (e apenas poderia ser) assacada à requerente mãe – mas somente no caso de ela ter praticado a conduta, ilícita, de propor, com dolo ou, pelo menos, com negligência grave, tal lide contra o requerente pai, e já não no caso de ter praticado a conduta, lícita, de propor, sem dolo nem muito menos negligência grave, tal lide objectivamente infundada contra o requerente pai – a responsabilidade processual como litigante de má fé, com condenação em multa em sede do art.o 385.o do CPC, e até também em indemnização (a pedido da parte contrária no processo) nos termos do art.o 386.o do CPC, isto porque, conforme o mesmo Insigne PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, ibidem, página 261:
– “A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos; que no caso concreto o litigante tenha ou não razão, é indiferente: num e noutro caso goza dos mesmos poderes processuais. Mas ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica põe uma limitação: que o exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.
[…]
Esta construção não colide com o princípio de que é lícito intentar acções ou deduzir defesas objectivamente infundadas, porque o princípio deve entender-se nestes termos: contanto que a parte esteja convencida de que lhe assiste razão.”
Disse-se acima que se tal circunstância alegada de ser o requerido pai um consumidor de droga acabasse por ser tida como inverídica pelo competente Juízo de Família e de Menores, então já, mas apenas, poderia ser assacada à requerente mãe a responsabilidade processual como litigante de má fé (com condenação em multa e até também em indemnização a pedido da parte contrária no processo). É que da interpretação em global das afirmações feitas na petição cível em causa contra o requerido pai, resulta claro que tal alegação feita pela requerente mãe não visou fazer responsabilizar o requerido pai em sede do tipo-de-ilícito penal de consumo de estupefaciente, pelo que nem se vislumbraria viável fazer imputar depois à arguida ora recorrente a responsabilidade penal em sede de denúncia caluniosa (do art.o 329.o do CP), mesmo que o competente Juízo de Família e de Menores, na dita acção cível, acabasse por dar por não provada tal circunstância fáctica de ser o requerido pai um consumidor de droga e acabasse por julgar ter a requerente mãe feito tal imputação contra o requerido pai, com a consciência da falsidade da imputação.
Termos em que, e sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, é de passar a absolver a arguida ora recorrente, por força do art.o 30.o, n.os 1 e 2, alínea b), do CP (por estar em causa o exercício efectivo, por ela, do seu direito de acção com garantia legal plasmada mormente no art.o 1.o do CPC, para pedir a regulação do exercício do poder paternal da sua filha menor), do acusado crime de difamação por que vinha condenada na sentença recorrida, com logicamente simultânea absolvição dela também do pedido cível de indemnização enxertado no presente processo penal pelo assistente e acusador particular com fundamento na prática, por ela, do acusado crime de difamação (cfr. o art.o 60.o do CPP).
4. Dest’arte, decide-se, sumariamente, e com fundamentação jurídica algo diversa da invocada pela recorrente A na motivação do reurso, em julgar provido o seu recurso, e, por conseguinte, em revogar toda a decisão condenatória penal e civil recorrida, e em absolver a mesma recorrente do crime de difamação acusado pelo assistente B e do pedido cível deduzido por este.
Custas do presente processo na parte penal em ambas as duas Instâncias a cargo do assistente (com três UC de taxa de justiça no Tribunal recorrido e duas UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância). Custas do pedido cível em ambas as Instâncias também pelo assistente demandante.
Comunique a presente decisão ao Processo n.o FM1-19-0236-MPS do Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 28 de Fevereiro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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