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Processo n.º 889/2021 Data do acórdão: 2022-2-17
Assuntos:
– delimitação do objecto do processo
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Não tendo a arguida ora recorrente articulado outros factos em sua defesa na contestação então apresentada ao libelo acusatório, todo o objecto do presente processo a si respeitante e desfavorável já se encontrou delimitado pela factualidade descrita na acusação. E como da leitura da fundamentação fáctica da decisão condenatória ora recorrida resulta nítido que o tribunal seu autor já investigou todo esse objecto do processo em relação a ela, sem qualquer omissão ou lacuna, tendo especificado, nesse mesmo acórdão, quais os factos acusados tidos por finalmente provados, e quais os factos tidos por não provados, essa decisão condenatória não pode padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
2. Outrossim, vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória da mesma decisão condenatória, não se mostra patente que o resultado de julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal a quo tenha sido obtido com violação de quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, pelo que nem se pode ter por verificado o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 889/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.a arguida): A (A)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 476 a 485 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-20-0358-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a 1.a arguida A (A), aí já melhor identificada, ficou condenada pela autoria, na forma consumada, de um crime de furto em valor elevado, p. e p. pelo art.o 198.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal (CP), em 210 (duzentos e dez) dias de multa, à quantia diária de duzentas patacas, no total, pois, de MOP42.000,00 (quarenta e duas mil patacas) de multa (convertível em cento e quarenta dias de prisão, no caso de não pagamento nem de substituição pelo trabalho), e na obrigação de pagar ao ofendido B (B) a quantia indemnizatória, arbitrada oficiosamente, de MOP37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentas patacas), com juros legais a contar da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, veio a 1.a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando o seguinte, na sua motivação apresentada a fls. 510 a 520 dos presentes autos correspondentes: a decisão condenatória penal dela padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, respectivamente aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), com simultânea violação do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do CPP e do princípio de in dubio pro reo, não só no respietante aos factos com pertinência para verificação dos tipos-de-ilícito objectivo e subjectivo do furto, como também no tocante ao apuramento dos valores da mala do referido ofendido e dos objectos contidos nessa mala, devendo ela passar a ser absolvida com todos os efeitos legais, ou, pelo menos, passar a ser condenada pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo art.o 197.o, n.o 1, do CP (com consequente nova medida da pena, e nova determinação da quantia indemnizatória, segundo o juízo de equidade).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido a fls. 528 a 532 dos autos, no sentido de improcedência da argumentação recursória.
Subidos os autos, emitiu, em sede de vista, a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 554 a 557, pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 476 a 485, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui inteiramente reproduzido.
A acusação pública então deduzida inclusivamente contra a 1.a arguida consta de fls. 379 a 382 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
À matéria fáctica descrita nesse libelo contra a 1.a arguida, esta não chegou a oferecer outra versão fáctica, na contestação então apresentada a fl. 419 dos autos.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
A 1.a arguida ora recorrente veio assacar à decisão condenatória dela em primeira instância os vícios aludidos nas alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Desde já, quanto ao primeiro desses vícios: não assiste razão à recorrente, porquanto, a montante, não tendo ela articulado outros factos em sua defesa na contestação então apresentada, todo o objecto do presente processo a si respeitante e a ela desfavorável já se encontrou delimitado pela factualidade descrita na acusação do Ministério Público, e, a jusante, da leitura da fundamentação fáctica da decisão condenatória ora recorrida resulta nítido que o Tribunal recorrido já investigou todo esse objecto do processo em relação a ela, sem qualquer omissão ou lacuna, tendo especificado, nesse mesmo acórdão, quais os factos acusados tidos por finalmente provados, e quais os factos tidos por não provados; assim sendo, na esteira do entendimento jurídico deste TSI acerca do sentido e alcance do vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, já veiculado, por exemplo, de entre muitos outros, nos acórdãos de 22 de Julho de 2010 do Processo n.o 441/2008 e de 17 de Maio de 2018 do Processo n.o 817/2014, a decisão condenatória ora recorrida não pode ter enfermado do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Outrossim, apontou a 1.a arguida que a decisão condenatória recorrida não deixa de estar viciada do erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso dos autos, vistos todos os elementos probatórios já referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória ora recorrida, não se mostra patente que o resultado de julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo tenha sido obtido com violação de quaisquer regras da experiência da vida humana, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer leges artis vigentes no campo de julgamento de factos, tendo-se a ora recorrente limitado efectivamente a tentar fazer impor o seu ponto de vista sobre a factualidade provada, ao arrepio, assim, do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do mesmo Código.
Com efeito, o resultado do julgamento de factos feito pelo mesmo Tribunal não é manifestamente ilógico, sendo ilustradoras disso as razoáveis considerações tecidas por esse Tribunal em sede de fundamentação probatória, especialmente na segunda metade da página 10 e nos três primeiros parágrafos da página seguinte do mesmo texto do seu acórdão, a fls. 480v a 481 dos autos.
Improcede, pois, o recurso também na parte referente ao arguido vício de erro notório na apreciação da prova e à conexamente alegada violação dos princípios de livre apreciação da prova e de in dubio pro reo, dado que já foi feita prova suficiente de todos os factos com pertinência para a verificação efectiva dos tipos-de-ilícito objectivo e subjectivo do furto em valor elevado por que vinha já condenada a ora recorrente em primeira instância.
Com base na factualidade já descrita como provada (sem qualquer erro notório na apreciação da prova) pelo Tribunal recorrido, não se pode convolar o crime de furto em valor elevado para o crime de furto simples, nem se pode alterar a decisão de arbitramento oficioso já tomada por esse Tribunal sentenciador.
Termos em que não deixa o recurso de naufragar no seu todo (sem mais indagação, por prejudicada ou desnecessária).
IV – DECISÃO
Face ao expendido, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pela 1.a arguida reocrrente, com seis UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão de recurso (com cópia também do acórdão recorrido) ao ofendido do crime praticado pela 1.a arguida.
Macau, 17 de Fevereiro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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