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Processo nº 79/2021 Data: 17.12.2021
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Acção de reivindicação.
Direito de propriedade.
Domínio útil.
Registo Predial.
Presunção.



SUMÁRIO

1. Nos termos do art. 7° do Código do Registo Predial: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

2. Não tendo o A. afastado ou ilidido tal “presunção”, e resultando (ainda) da factualidade provada uma “relação de arrendamento do imóvel” pelo mesmo reclamado, necessária é a improcedência da acção de reivindicação que propôs.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 79/2021
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), A., propôs e fez seguir acção declarativa da condenação contra B (乙), R., pedindo, a final, que fosse declarado o titular do direito de propriedade do prédio sito no n.° 61 da [Rua(1)], (devidamente identificado nos autos), condenando-se o referido R. a reconhecer aquele direito sobre o prédio, restituindo-o ao A.; (cfr., fls. 2 a 7 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, após “redução do pedido” no sentido de o mesmo tão só se referir ao “domínio útil” do prédio em questão, (cfr., fls. 344 a 346), e do seu deferimento em sede de despacho-saneador, (cfr., fls. 353 e segs.), por sentença da Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base decidiu-se julgar procedente o pedido pelo A. deduzido; (cfr., fls. 491 a 497-v).

*

Inconformado, o R. recorreu; (cfr., fls. 513 a 530-v).

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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 14.01.2021, (Proc. n.° 676/2020), negou-se provimento ao recurso; (cfr., fls. 553 a 566).

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Ainda inconformado, traz o R. o presente recurso; (cfr., fls. 580 a 587-v).

*

Após resposta do A., (cfr., fls. 594 a 602), foram os autos remetidos a esta Instância.

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Adequadamente processados, e nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram considerados como “provados” os factos seguintes (que não foram objecto de qualquer alteração pelo Tribunal de Segunda Instância):

“- Existe o prédio urbano sito na rua nº61 da [Rua(1)], na freguesia de Santo António, Macau, inscrito na respectiva matriz predial sob o nºXXXXXX e descrito na CRP sob o nºXXX. (alínea A) dos factos assentes)
- O domínio útil do referido prédio está inscrito em nome do A., tudo conforme doc. de fls. 9 e ss e cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea B) dos factos assentes)
- C declarou doar o domínio útil do citado imóvel ao A. e este aceitou-o, tudo conforme doc. de fls. 13 e ss cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea C) dos factos assentes)
- O A., por si e antecessores, desde há mais de 40 ou mais anos, que andam na usufruição do aludido prédio, praticando nele todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- Tais actos foram praticados à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição de quem quer que fosse. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O A. praticou os actos aludidos na convicção de exercer os poderes correspondentes aos do direito de propriedade. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- O R. instalou no citado prédio um estabelecimento comercial. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- O R. e irmãos, e antes deste, o pai e família – mãe do R., R. e irmãos, desde 1971, exploraram e exploram um negócio comercial de venda de marisco no imóvel supra assente. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- … aí também morando no 2º e 3º andar. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- O pai do R. abriu uma conta de electricidade para todo o edifício, a fim de fornecer à loja do R/C e à habitação do 2º e 3º andares luz. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Pai do R. realizou obras de restauração, manutenção, acabamentos e reforma do exterior da loja, das decorações interiores, as prateleiras e estantes dentro da loja, etc…, tendo gasto MOP$13.229,00. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Para exploração da actividade comercial e habitação, o pai do R. comprou sofás, camas, mesinhas de cabeceira, roupeiros e outros armários para colocação de objectos. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- O pai do R. pediu a ligação de telefone para o estabelecimento comercial instalado no R/C do imóvel, pagando ele e depois dele o R. e família o respectivo serviço. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- O pai do R., através da sua filha D instalou um outro telefone para o 3º andar do imóvel. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- O pai do R. era quem pagava mensalmente as despesas de água da loja e da habitação instaladas no imóvel. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- O pai do R. pediu a instalação de antena pública de TV e o serviço de manutenção e reparação, pagando a respectiva despesa. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- O pai do R. adquiriu todos os anos seguro contra incêndios para todo imóvel. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- O pai do R. construiu uma cobertura no topo do edifício e instalou tijolos no chão do alpendre. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- A loja, inicialmente explorada pelo pai do R., foi posteriormente também explorada pelo R. e irmãos. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- Depois do falecimento do segundo filho de E, e do falecimento deste, pai do R., o demandado e seus irmãos herdaram a sua carreira. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- … sendo o R. quem tem exercido a mesma actividade comercial no citado R/C. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- Após 9 de Março de 2005, com o falecimento do pai, o R. e irmãos continuaram a explorar o referido negócio instalado no prédio supra assente e também ali morando. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Em 15 de Março de 2005 o R. alterou o nome original da loja para F. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- Em 21 de Março de 2006 o R. pediu ao IACM licença para tabuletas e reclamos, tendo tal pedido sido deferido. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
- O R. continuou a segurar o imóvel contra incêndios. (resposta ao quesito 26º da base instrutória)
- O R. instalou internet de banda larga no R/C e andares no imóvel supra assente. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- Foi o pai do R. e este quem pagou a contribuição predial do imóvel. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- O pai do R., o R. e sua família, sempre declararam às diversas autoridades e entidades privadas o endereço do citado imóvel como sua residência. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- Todos os actos supra enunciados eram conhecidos do público. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- O R/C e andares que compõem o imóvel citado foi arrendado pelo pai do A. ao pai do R. desde Setembro de 1990. (resposta ao quesito 33º da base instrutória)
- A partir de Setembro de 1995, após interpelação pelo A. ao pai do R., a renda passou a ser paga àquele. (resposta ao quesito 34º da base instrutória)”; (cfr., fls. 492-v a 494 e 556 a 559).

Do direito

3. Com o presente recurso insurge-se o R. contra a decisão ínsita no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que confirmou a sentença proferida pela Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base, e que, como atrás se referiu, julgou procedente a acção pelo A. proposta.

Colhe-se das alegações de recurso pelo R. ora recorrente apresentadas que o mesmo se limita a repetir o seu ponto de vista, insistindo no seu inconformismo em relação à “decisão da matéria de facto” proferida pelo Tribunal Judicial de Base, e que, como se deixou explicitado, não mereceu censura por parte do Tribunal de Segunda Instância, voltando, com o presente recurso a colocar a “mesma questão”, trazendo-a, agora, à apreciação desta Instância.

Cremos, porém, que necessária não é uma extensa (e elaborada) fundamentação para se demonstrar que o inconformismo do R., ora recorrente, não tem razão de ser.

Vejamos.

–– Adequado se mostra uma “nota prévia”.

Como se deixou relatado, pelo A. foi oportunamente pedida a “redução do seu pedido” no sentido de o mesmo se referir tão só ao “domínio útil” do prédio dos presentes autos, o que, como igualmente se deixou consignado, foi pelo Tribunal Judicial de Base deferido.

Certo sendo que não foi o assim decidido objecto de qualquer impugnação, claro é que sobre o mesmo se formou “caso julgado”, e, nesta conformidade se terá de entender o sentido e alcance das decisões (finais) pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância proferidas, (ainda que não muito explícitas em relação ao dito “domínio útil”).

Aliás, mostra-se de salientar que, em resposta ao presente recurso, (cfr., fls. 595 a 602), é o próprio A. que reconhece que o que em causa está é tão só o “domínio útil” do prédio urbano dos autos, (o que se regista), claro se apresentando desta forma tal aspecto.

Isto dito, continuemos, passando-se ao recurso propriamente dito.

–– Pois bem, com o presente recurso, insiste o R., ora recorrente, que determinados “documentos” não deviam ser atendidos, considerando também que se incorreu em “nulidade por omissão de pronúncia” e “erro grave nas respostas aos quesitos n.° 33 e 34 da Base Instrutória”.

Ora, sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, e como atrás se deixou adiantado, não tem o ora recorrente qualquer razão, bastando, para tal, atentar-se no que pelo Tribunal de Segunda Instância foi ponderado e decidido no seu Acórdão objecto do presente recurso.

Tem pois, na parte que agora interessa, o teor seguinte (que vale a pena aqui ter presente):

“(…)
O recorrente começa por referir que o Tribunal recorrido ao valorar a prova, mal contemplou os documentos apresentados pelo autor constantes de fls. 242 e 243, por entender que os mesmos não podiam ser atendidos pelo Tribunal face ao estatuído no n.º 2 do artigo 473.º do CPC.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, não acompanhamos essa opinião do recorrente. Vejamos.
Ora bem, tendo o autor ora recorrido alegado na réplica que o pai do réu nunca adquiriu o imóvel a qualquer título que seja, antes pelo contrário, celebrou um contrato de arrendamento com o pai do autor e, para o efeito, juntou cópias de uma série de documentos, incluindo o respectivo contrato de arrendamento.
Na tréplica, o recorrente limitou-se a impugnar a genuinidade daqueles documentos, alegando que eram meras fotocópias, faltando os originais.
Como diz o Professor Alberto dos Reis1, “…a impugnação consiste em a parte declarar que não aceita como verdadeiras a letra e a assinatura, a lei considera esta atitude completamente diferente da de arguição de falsidade. Se a parte argui expressamente a falsidade, incumbe-lhe fazer a prova desta; se se limita a declarar que não aceita como verdadeira a letra e a assinatura, é ao apresentante do documento que cabe demonstrar a veracidade dele.”
No caso dos autos, o recorrente veio apenas pôr em causa o teor das referidas cópias, pedindo, assim, ao Tribunal recorrido que ordenasse ao autor ora recorrido para juntar os originais dos respectivos documentos.
Prevê o n.º 2 do artigo 368.º do Código Civil: “Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.”
Uma vez que o recorrente apenas logrou impugnar a genuinidade dos documentos, compete ao seu apresentante, ora autor ou recorrido, provar a sua veracidade, podendo socorrer-se, como diz o Professor Alberto dos Reis, de diligências probatórias tais como exame pericial para reconhecimento de letra ou prova testemunhal2.
Defende o recorrente que, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 473.º do CPC, considerando que o autor ora recorrido não respondeu à “falsidade” dos documentos, estes não podiam ser atendidos na causa para efeito algum.
Conforme dito acima, o recorrente nunca arguiu a falsidade daqueles documentos, pois, havendo essa arguição, cabe-lhe a prova da sua falsidade. E só neste caso é que se aplica o disposto no n.º 2 do artigo 473.º do CPC.
Em boa verdade, tendo o recorrente apenas impugnado o teor dos documentos apresentados pelo recorrido, cabe a este último provar a sua veracidade, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 368.º do Código Civil. Isso significa que, não havendo lugar a arguição de falsidade, o disposto no n.º 2 do artigo 473.º não se aplica ao presente caso.
Improcede, pois, o recurso quanto a esta parte.
*
Vem dizer ainda o recorrente que as fotocópias dos documentos, na falta de apresentação dos seus originais, não possuem força probatória plena e, em consequência, a matéria vertida nos quesitos 33º e 34º não pode ser dada como provada.
Preceitua o artigo 361.º do Código Civil: “As reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.”
Tal como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9/2/1993, Processo n.º 082658, citado a título de direito comparado: “Fotocópias de documentos, cuja correspondência com os originais não está certificada, fazem prova plena de que reproduzem os originais se a parte contra quem as fotocópias são apresentadas as não impugnou.”
No caso vertente, não há quaisquer dúvidas de que as fotocópias apresentadas pelo autor não fazem prova plena, mas não significa que não possuem nenhuma força probatória, antes podendo ser valoradas pelo Tribunal segundo a sua livre e prudente convicção.
Improcede, assim, esta parte do recurso.
*
O réu vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 1º a 3º, 7º, 11º, 22º, 28º, 31º, 32º da base instrutória, com fundamento na suposta existência de erro na apreciação da prova.
O Tribunal recorrido respondeu aos quesitos da seguinte forma:
Quesito 1º - “O A., por si e antecessores, desde há mais de 40 ou mais anos, que andam na usufruição do aludido prédio, praticando nele todos os actos necessários à sua conveniente exploração, melhoramento, conservação e fruição?”, e a resposta foi: “Provado”.

Quesito 2º - “Tais actos foram praticados à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição de quem quer que fosse?”, e a resposta foi: “Provado”.

Quesito 3º - “O A. praticou os actos aludidos na convicção de exercer os poderes correspondentes aos do direito de propriedade?”, e a resposta foi: “Provado”.

Quesito 7º - “Em 1971 o pai do R. comprou o citado imóvel, então composto por três andares?”, e a resposta foi: “Não provado”.

Quesito 11º - “Depois da compra aludida o pai do R. realizou obras de restauração, manutenção, acabamentos e reforma do exterior da loja, das decorações interiores, as prateleiras e estantes dentro da loja, etc., tendo gasto 13.229,00MOP?”, e a resposta foi: “Provado que pai do R. realizou obras de restauração, manutenção, acabamentos e reforma do exterior da loja, das decorações interiores, as prateleiras e estantes dentro da loja, etc…, tendo gasto MOP$13.229,00.”

Quesito 22º - “Desde a citada compra o pai do R. sempre se assumiu como proprietário do que havia comprado?”, e a resposta foi: “Não provado”.

Quesito 28º - “Foi o pai do R. e este quem sempre pagou a contribuição predial do imóvel?”, e a resposta foi: “Provado que foi o pai do R. e este quem pagou a contribuição predial do imóvel.”

Quesito 31º - “Desde 1971 nunca houve qualquer pessoa ou entidade que se tivesse oposto a que o pai do R. e sua família, e depois da morte daquele, ao R. e irmãos, explorassem o referido negócio e morassem no citado imóvel?”, e a resposta foi: “Não provado”.

Quesito 32º - “Após a morte do pai, o R. e seus irmãos sempre actuaram convencidos que eram os proprietários do citado imóvel?”, e a resposta foi: “Não provado”.

Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo Tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão ao réu recorrente.
De facto, embora os documentos apresentados pelo autor sejam meros documentos particulares, não fazendo, em princípio, prova plena, mas tal como acontece com o depoimento das testemunhas, ambos os meios de prova estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal.
É evidente que o Tribunal recorrido deu como provados e não provados, respectivamente, aqueles quesitos descritos com base não só na prova documental mas também no depoimento das testemunhas, o réu recorrente ao fim e ao cabo pretende apenas sindicar a íntima convicção do Tribunal recorrido formada a partir da livre apreciação e valoração global das provas produzidas nos autos.
Sinceramente, se atentarmos na fundamentação da matéria de facto bem elaborada pelo Tribunal recorrido que a seguir se transcreve, não restam dúvidas de que nenhuma censura merece a decisão quanto à matéria de facto questionada pelo recorrente:
“A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 9 a 17, 38 a 229, 239 a 294, 374 a 385, 407 a 421 e 441 a 477 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
Em especial, relativamente à questão de quem tem posse sobre o prédio. Por parte do Autor, de acordo com o teor da certidão do registo predial, o prédio está inscrito a favor do Autor, gozando este a presunção de que o direito de propriedade lhe pertence. A única testemunha do Autor, sua mulher deu conta de que o imóvel tinha sido arrendado e que as rendas têm sido depositadas na sua conta bancária pelo arrendatário, como sendo Autor residente de Hong Kong, só levantava o valor das rendas quando viesse a Macau, até que em 2016, por motivo desconhecido, o arrendatário deixar de pagar as rendas. Conforme o contrato de arrendamento depositado na repartição de finança, contante de fls. 239 a 241, o prédio nº 61 da [Rua(1)], junto com a r/c do prédio nº 2 da [Rua(2)], tinha sido, efectivamente, arrendados pelo procurado do C1, pai do Autor, ao representante legal da firma G em 1960. Sendo certo que até aí, o pai do Autor tinha posse sobre o imóvel.
Por parte do Réu, conforme os documentos juntos aos autos pelos Réus de fls. 53 a 216, nomeadamente, os recibos de pagamento de contribuições industriais (fls. 112 a 120), as facturas de electricidade e de telefone, (fls. 105 a 108), a factura para remodelação do prédio (fls. 101 e 102), os contratos de seguro para incêndio (fls. 134 a 205), as taxas para fixação de reclamos e tabuletas (fls. 121 a 133), os recibos de pagamento de contribuições prediais (fls. 124 a 134) demonstram que o pai do Réu e os seus sucessores, incluindo o Autor, tinha e tem suportado as despesas relativamente ao prédio em discussão, alguns deles remontam às décadas 70, conjugado com o depoimento das testemunhas do Réu que deram conta de que o pai do Réu e a sua família, tinha explorado um estabelecimento comercial para a venda dos mariscos no prédio em causa desde os anos 70 e após o falecimento daquele, passa o Réu a explorar o mesmo estabelecimento, tendo por isso, suportando todas as despesas inerentes ao prédio, nomeadamente, as despesas de electricidade, de telefone, de contribuições prediais. Não temos dúvidas de que a família do Réu tem vindo a praticar os actos materiais sobre o imóvel, desde os anos 70 até à actualidade. Mas, os poderes de factos serão exercidos, normalmente, pelos donos mas também poderão pelos meros detentores em nome do dono, portanto, o mero exercício do poder de facto não implica, necessariamente, que haverá o intuito subjectivo de exercício do direito real de propriedade.
O problema é saber se o direito ou a posse sobre o imóvel tinha sido transmitido ao pai do Réu, em determinado momento?
As testemunhas do Réu deram conta de que o prédio foi adquirido pelo pai do Réu nos anos 70s, após a aquisição, o pai do Réu e a sua família tinha nele instalado o estabelecimento comercial, exercendo sobre ele os poderes de facto na convicção de ser dono do mesmo. Relativamente aos factos de aquisição por compra e venda pelo pai do Réu, não foi alegado pelo Réu quaisquer factos concretizados sobre a compra de venda do prédio, como por exemplo, a quem é que o pai do Réu comprou o prédio, qual é o preço da compra. Excepto as declarações verbais das testemunhas do Réu, não há documento, ainda particular, que se titula à aquisição. Ademais, o depoimento das testemunhas é muito vago, sem quaisquer pormenores do negócio, tais como o preço da compra, limitando-se a afirmar que o pai do Réu comprou o prédio, para além disso, esse depoimento é indirecto, só ouviu dizer ao pai do Réu, nenhum deles tem participado ou assistido o referido. É, manifestamente, suficiente as meras declarações para concluir que o pai do Réu adquiriu o prédio por compra e venda.
Nos documentos juntos aos autos pelo Autor a fls. 242 e 243, consta aí que o arrendatário dos referidos dois prédios passam ser o pai do Réu, E e que o pai do Autor, em 1994, notificou ao Banco Wing Hang para que este informasse aos seus arrendatários para proceder ao depósito das rendas para a conta bancária do seu filho, ora Autor, na sequência da doação por ele a este. Na verdade, os dois documentos chegaram a ser impugnados pelo Réu por ser meras cópias, e não os originais. No documento de fls. 242 não consta a sua autoria, supondo ter sido elaborado por funcionário do Banco Weng Hang quem era incumbido para cobrar as rendas, visto que as rendas foram depositadas na conta bancária aberta nesse banco; o documento foi subscrito com o nome do pai do Autor, de acordo com o teor do documento de fls. 243, esse documento deveria ser sido entregue ao Banco. Fizemos diligências para apurar quem tratou o assunto referido nos dois documentos, junto do Banco OCBC Wing Hang, sucessor do Banco Weng Hang, o Banco respondeu que não se encontraram os documentos em causa (fls. 441), torna-se impossível encontrar o original dos documentos. Porém, a impossibilidade de confronto com o original não permite o Tribunal afirmar que as duas cópias juntas aos autos não estão em conformidade nem desconformidade com o seu original. Tendo em conta que os factos referidos nos documentos foram ocorridos e praticados, há mais de trinta anos, pelo primitivo Banco Weng Hang, não é fora da normalidade ou razoabilidade não os encontrar pelo Banco. Não podemos afastar, só por isso, a validade da sua força probatória. Portanto, os dois documentos serão atendidos pelo Tribunal segundo o princípio de livre apreciação. Nesse caso concreto, não obstante serem meramente cópias, relevamo-nos porque os factos mencionados nos dois documentos são coerentes com outras provas existentes nos autos. De facto, o pai do Autor doou os referidos imóveis ao Autor por escritura pública outorgada em Janeiro de 1993 e informação referida no doc. de fls. 243 tinha a data de 1994, pouco após a transmissão da propriedade. Nos extractos bancários de fls. 244 a 292, demonstra que foram regularmente depositadas as quantias certas, correspondentes, mais ou menos ao valor das rendas, ainda que não fosse possível apurar quem fez o depósito, na conta bancária do Autor desde Setembro de 1995 até 2016. Não nos podemos esquecer ainda que o nome do pai do Réu fosse mencionado no doc. de fls. 242 como arrendatário do pai do Autor. Não poderá ser mera coincidência que o pai do Autor arrendou o imóvel a quem explorou a firma G, a partir de determinado momento, o arrendatário passou, na mentalidade do pai do Autor, a ser o pai do Réu, quem passou a explorar outro estabelecimento comercial no seu imóvel. Segundo o próprio Réu, o estabelecimento comercial instalado no imóvel que antecedeu ao seu pai era exactamente a firma G (artº 81º da contestação). Se o nome do pai do Réu foi referenciado nos documentos na posse do Autor, (pois em nenhum lugar o Réu chegou a referir que teve qualquer contacto com o pai do Autor) é lógico deduzir que houve contacto entre o pai do Réu com o proprietário do prédio. Ademais, deparamos que o titular da contribuição predial foi alterado, no meado de 90s, de nome H para o Autor, se o pai do Réu considerasse a si próprio como dono do prédio por o ter adquirido nos 70s, perante a modificação do titularidade do prédio, nunca reitera o que foi acontecido, continuando a pagar as respectivas contribuições prediais, tomando conhecimento de que o proprietário passa a ser outro? A falta de reacção por parte do pai do Réu já se justifica se ele não se considerasse a si coo dono do prédio, portanto, a transmissão da titularidade do prédio não afectaria o seu direito.
Apreciando as provas apresentadas pelas partes e de acordo com a análise acima exposta, não permiti concluir que o pai do Réu comprou o imóvel em 1971, e, por consequente, convenções que o imóvel foi, apenas, arrendado pelo pai do Autor ao pai do Réu.
Como entendemos que o imóvel não foi comprado pelo pai do Réu em 70s mas apenas lhe foi arrendado pelo pai do Autor, então, o pai do Réu somente detinha o imóvel na qualidade de arrendatário e não como proprietário, pelo que todos os actos materiais são praticados, quer pelo Réu quer por pai deste, em nome do senhorio, não se correspondendo ao exercício do direito de propriedade, não podendo haver nesses actos animus.
Nestes termos, deram-se por provados os factos dos quesitos 1º a 4º, 8º a 21º, 23º a 30º, 33º e 34º nos termos respondidos e, consequentemente, não se deram por provados os factos dos quesitos 7º, 22º, 31º e 32º.
Não se consideram como provados os factos dos quesitos 5º e 6º por não terem produzido provas relevantes nesse sentido.”

Efectivamente, analisada toda a prova produzida, não vislumbramos qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do Tribunal recorrido na análise da prova nem na apreciação da matéria de facto controvertida, sendo que os dados trazidos aos autos permitam chegar à mesma conclusão a que o Tribunal a quo chegou, pelo que improcede o pedido de impugnação da matéria de facto.
Por tudo quanto deixou exposto, há-de negar provimento ao recurso interposto pelo réu recorrente.
(…)”; (cfr., fls. 559 a 566).

Aqui chegados, quid iuris?

Ora, como se deixou adiantado, evidente se nos apresenta a improcedência do presente recurso.

E, dada a clareza, lógica e acerto da decisão do Tribunal Judicial de Base, assim como da pelo Tribunal de Segunda Instância proferida e agora recorrida, (onde se transcreveu e acolheu parte daquela), pouco se mostra de acrescentar, pois que evidente é que a argumentação pelo recorrente (re-)apresentada não prospera.

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

Vejamos.

Pois bem, para começar, não é verdade que o Tribunal de Segunda Instância se tenha apenas referido aos documentos de “fls. 242 a 243”, quando, na opinião do recorrente, em causa estavam os de “fls. 242 a 292”.

Como se deixou consignado, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância acolheu (e transcreveu) a “fundamentação da decisão da matéria de facto do Tribunal Judicial de Base”, e, aí, fez-se clara e expressa referência aos referidos documentos de “fls. 242 a 292”.

Porém, e seja como for, o que se mostra de concluir é que o R., ora recorrente, (ainda) não alcançou a verdadeira razão do sentido das decisões proferidas, insistindo com (meras) “falsas questões”.

Com efeito, não tendo reagido à apresentação dos referidos documentos em (meras) fotocópias, pedindo, (v.g.), a sua não admissão e desentranhamento dos autos porque “falsos”, mas, requerendo, tão só, a “apresentação dos respectivos originais”, bem se vê que correcta foi a decisão que considerou adequado proceder-se à sua apreciação em conformidade com o princípio da “livre apreciação da prova”, pois que se tratavam de cópias de “documentos (antigos)”, referentes a “actos e factos ocorridos há várias dezenas de anos”, e, desta forma, (naturalmente) compreensível a dificuldade ou impossibilidade na localização dos seus “originais”.

Nesta conformidade, cabe pois dizer que o assim decidido, e, refira-se, dado que efectivamente questionada não foi nem estava a sua “genuinidade”, nenhuma censura merece, de nada valendo ao ora recorrente insistir neste “ponto”, pretendendo (com isso) – tentar – inverter as decisões proferidas, (pois que não se pode olvidar que provada não resultou a sua alegada versão da “aquisição do prédio em questão”, já que da prova testemunhal apresentada, consistente em meros “depoimentos indirectos”, nem sequer se demonstrou “a quem, e por que preço, foi o prédio adquirido”).

Na verdade, evidente sendo (também) que em face (do original) da “Certidão do Registo Predial” de fls. 9 a 12 dos autos – datada de 2016, precisamente, do mesmo ano em que a presente acção foi proposta na sequência da falta de pagamento de rendas pelo imóvel em questão – se comprova, (claramente), a inscrição do seu “domínio útil” a favor do A., conferindo-lhe, desta forma, justa e legal presunção que o (respectivo) “direito” com os presentes autos reclamado lhe pertence, (cfr., art. 7° do Código do Registo Predial, onde se prescreve que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”), e afastada ou ilidida não estando tal presunção, visto está que só por ficção se podia acolher a pretensão que o recorrente insiste em apresentar.

De nada valeriam pois os “registos” nas Conservatórias e as “presunções legais” que daí se devem retirar…

Por sua vez, (a par disso, e como já se viu), “válidos” se apresentando igualmente para efeitos da formação da convicção do Tribunal o teor dos “documentos de fls. 239 a 241”, dos quais resulta a cabal demonstração da celebração, em 1960, de um “contrato de arredamento” entre o pai do A. (C, também conhecido por C1), como senhorio, figurando, como arrendatário, I, pai do R., na altura, gerente da firma “G”, que era o estabelecimento comercial que existia no “local” em questão, (e no âmbito do qual, era por este paga aquele renda pelo uso do imóvel), que, agora, (sendo explorado pelo R.), se denomina “F”, mais não se mostra de dizer para se concluir que acertado foi o decidido pelas Instâncias recorridas.

Dest’arte, e apresentando-se-nos que com as suscitadas questões, (inclusivé, a de “omissão de pronúncia” e “erro”, que manifestamente não existem), mais não faz o recorrente que tentar controverter o que claro e provado é e está, imperativa é a improcedência do seu recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Pagará o recorrente as custas do presente recurso com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Após trânsito, remetam-se os autos ao Tribunal Judicial de Base com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 17 de Dezembro de 2021


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª edição, 2005, pág. 411
2 Obra citada, pág. 411
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