Processo nº 9/2022 Data: 23.02.2022
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)
Assuntos : Recurso relativo a uniformização de jurisprudência.
Requisitos de admissibilidade.
“Oposição de acórdãos”.
“Mesma questão de direito”.
“Desistência da queixa”.
(Tempestividade).
SUMÁRIO
1. São requisitos de admissibilidade do recurso para a uniformização de jurisprudência:
- a existência de uma oposição de acórdãos;
- sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito; e
- a permanência do mesmo quadro legislativo.
2. A “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito e que as decisões em oposição sejam “expressas”.
Com efeito, nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
3. Se o “Acórdão fundamento” tratou – tão só – da questão da “tempestividade da desistência da queixa”, (em face da publicação da sentença em 1ª Instância, cfr., art. 108°, n.° 2 do C.P.M.), e o “Acórdão recorrido” decidiu que, uma vez anulada a sentença proferida em sede do seu recurso e decretado o reenvio dos autos para novo julgamento, tudo se passaria como se aquela nunca tivesse existido, tempestiva sendo assim a desistência da queixa apresentada antes do “novo julgamento”, verificada não está a alegada “oposição” (entre o Acórdão recorrido e Acórdão fundamento) para efeitos de recurso de uniformização de jurisprudência.
4. De facto, ainda que em ambos os veredictos em causa estivesse uma “questão” de tempestividade, validade e eficácia da “desistência de uma queixa”, inegável se mostra que, o “enquadramento” da mesma “questão”, (em face das “circunstâncias” e “particularidades” em cada processo relevantes), não se apresenta idêntico (ou semelhante), o que afasta a (necessária) consideração de que constituem “decisões opostas sobre a mesma questão de direito”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 9/2022
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Base traz o presente “recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência”, alegando que a solução jurídica adoptada no Acórdão (recorrido) do Tribunal de Segunda Instância de 30.09.2021, proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 242/2021, está em oposição à por este mesmo Tribunal assumida no Acórdão de 13.06.2019, Proc. n.° 60/2019, (doravante designado Acórdão fundamento); (cfr., fls. 2 a 27, onde juntou também as invocadas “decisões em oposição”, e cujo teor se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais).
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Nos termos do art. 422° do C.P.P.M., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando no sentido da inverificação da alegada “oposição de acórdãos”, pugnando assim pela rejeição do presente recurso; (cfr., fls. 45 a 45-v).
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Adequadamente processados os autos, e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, teve lugar a conferência a que alude o art. 423° do C.P.P.M..
Cumpre decidir.
Fundamentação
2. Em face do que até aqui se deixou (sumariamente) relatado, e em causa estando um “recurso – extraordinário – para a fixação de jurisprudência”, mostra-se-nos desde já adequado recordar a seguinte consideração de Gama Lobo no sentido de que:
“A legitimidade do Direito assegura-se também pela sua capacidade de julgar casos iguais ou semelhantes de forma igual ou semelhante. Por tal razão o ordenamento jurídico prevê este mecanismo de fixação de jurisprudência, que mais não visa do que uniformizar as interpretações jurídicas e a sua aplicação, garantindo a coerência e a estabilidade da jurisprudência. E se alguma critica há a fazer a este sistema é a de que devia haver mais decisões uniformizantes, para gerar mais tranquilidade dos operadores judiciários e credibilidade da Justiça. (…)”; (in “C.P.P. Anotado”, Almedina, pág. 878).
Isto dito, importa ter presente que – no Título II, dedicado aos “Recursos extraordinários”, Capítulo I, quanto à “Fixação de jurisprudência”, e sob a epígrafe “Fundamento do recurso” – prescreve o art. 419° do C.P.P.M. que:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.
Resulta do teor do dispositivo em questão que, no mesmo, e no que toca ao presente “recurso para fixação de jurisprudência”, acolhe o legislador quatro “matérias” distintas, ou seja, quanto às:
- decisões de que cabe recurso;
- legitimidade para recorrer;
- tribunal competente; e seus,
- requisitos de admissibilidade.
Evidente sendo que em causa agora está a matéria dos “requisitos de admissibilidade”, sem mais demoras, vejamos o que nesta sede se mostra de decidir; (sobre a matéria, pode-se ver os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2009 e de 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009; de 25.04.2012, Proc. n.° 17/2012; de 23.09.2015, Proc. n.° 59/2015; de 13.01.2016, Proc. n.° 78/2015; de 22.01.2016, Proc. n.° 81/2015; de 17.01.2017, Proc. n.° 65/2016; de 22.03.2017, Proc. n.° 15/2017; de 26.04.2017, Proc. n.° 13/2017; de 24.01.2018 e de 25.04.2018, Proc. n.° 84/2017; de 31.07.2018, Proc. n.° 53/2018; de 03.04.2020, Proc. n.° 130/2019; e, mais recentemente de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021).
Pois bem, estes ditos “requisitos” podem apresentar-se como sendo os seguintes:
- a existência de uma oposição de acórdãos;
- sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito; e
- a permanência do mesmo quadro legislativo.
Pronunciando-se sobre o “primeiro” considera Manuel Leal-Henriques que o mesmo “repousa na exigência de que dois acórdãos proferidos por Tribunais Superiores tenham dado soluções diversas e opostas a uma concreta questão, (…)”.
Por sua vez, considera que se está perante uma “questão de direito” quando se trata de “interpretar e aplicar normas jurídicas a uma qualquer situação concreta. (…)”. E, finalmente, em relação ao último requisito, é de opinião que o mesmo exige que “entre a prolação do 1.° acórdão (o acórdão-fundamento) e o 2.° (o acórdão-recorrido) não tenha havido alteração essencial na legislação aplicável à concreta questão decidida”, acrescentando que “aqui, o legislador teve necessidade de adiantar um elemento de ajuda ao aplicador da lei, indicando no n.° 3 que se consideram acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação "quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida". (…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. III, 2014, C.F.J.J., pág. 373 e 378).
Cabendo-nos reflectir e ponderar sobre a referida “oposição de acórdãos” – que pelo ora recorrente vem invocada e pelo Ministério Público vem afirmado “inexistir” – vejamos.
Cremos que adequado se mostra de ter que a “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito e que as decisões em oposição sejam “expressas”.
Com efeito, nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
Aliás, neste mesmo sentido tem este Tribunal decidido (de forma firme e repetida), valendo aqui a pena recordar – porque especialmente útil ao caso dos autos – o considerado nos Acórdãos de 11.03.2009 e de 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009, onde, nos respectivos sumários, se deixou consignado que:
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que:
- A oposição entre as decisões seja expressa e não meramente implícita;
- A questão decidida pelos dois acórdãos seja idêntica e não apenas análoga. Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.03.2009); e,
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que haja duas decisões diversas. Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do Tribunal de Última Instância.
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam”; (cfr., v.g., o Ac. de 31.03.2009).
No mesmo sentido, (e fazendo referência a variada jurisprudência do S.T.J. português), nota também P. P. de Albuquerque que:
“A oposição de acórdãos tem de ser expressa e não tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos (acórdão do STJ, de 18.9.1991, in BMJ, 409, 664). A oposição deve respeitar à decisão e não apenas aos seus fundamentos (acórdão do STJ, de 3.4.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 2, 194, e acórdão do STJ, de 3.12.1998, in SASTJ, n.° 26, 74), a soluções de direito expressas e não implícitas, soluções tomadas a título principal e não acessório ou secundário (acórdão do STJ, de 12.11.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 3, 221). A concreta questão a decidir deve ser delimitada com precisão, devendo justificar-se a correspondente oposição de acórdãos (acórdão do STJ, de 20.1.2005, in CJ, Acs. do STJ, XIII, 1, 175)”; (in “Comentário do C.P.P.”, 4ª ed., pág. 1192).
Aqui chegados, e clarificado que cremos estar o sentido e alcance (do requisito) da “oposição de acórdãos”, debrucemo-nos sobre a “situação dos presentes autos”.
Pois bem, em sede da sua motivação de recurso produziu o Exmo. Magistrado Recorrente as conclusões seguintes (que se passam a transcrever na sua íntegra):
“1- Havendo oposição entre a decisão dos acórdãos do mesmo Tribunal da Segunda Instância no domínio da mesma legislação, art. 108º no. 2 do CPM, tendo o Ministério Público legitimidade e sendo tempestivo, verificaram-se os pressupostos do Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência nos termos do art. 419º e ss;
2- Entendemos que deve ser acolhido a tese do Ac. de 2019/6/13, proc. no. 60/2019 no sentido de rejeitar a desistência da queixa após proferimento da sentença da 1ª. Instância;
3- A tese do Ac. de 2021/9/30, proc. no. 242/2021 considerou que a publicação ficou revogada uma vez que a sentença não produziu efeito (não ter transitado em julgado);
4- Salvo o devido efeito, não podemos deixar de discordar porque a publicação é um acto objectivo que se esgota no momento não podendo ser revogado;
5- Se a intenção do legislador for esta, podia ter empregue a expressão "até o trânsito em julgado";
6- Por sua vez, se for este o entendimento, o trânsito em julgado também não tem um acto de publicação como se refere na redacção do art. 108º no. 2;
7- Pelo que a interpretação do referido acórdão não tem o mínimo de correspondência verbal a que refere o art. 4º do Código Civil sobre a interpretação da lei;
8- A nível material, a tal interpretação pode prejudicar a estabilidade e a dignidade das decisões judiciais, permitir abusos das decisões judiciais para negociações e desperdícios de recursos judiciais, que, certamente o legislador não podia ter deixado de considerar.
Nesses termos e nos demais de direito, deve Vossas Excelências Venerandos Juízes do Tribunal da Última Instância acolher a posição do acórdão de 2019/6/13, proc. no. 60/2019, fixando-o como jurisprudência obrigatória.
(…)”; (cfr., fls. 8 a 9).
Que dizer?
Ora, (atentamente) analisadas as decisões cuja “oposição” no presente recurso vem invocada, cremos, porém, que a mesma não ocorre.
Com efeito, (e como bem se observa no já referido Parecer pelo Ministério Público junto aos autos), o que se decidiu no “Acórdão recorrido” – de 30.09.2021, Proc. n.° 242/2021 – foi a questão de se saber se, em consequência de uma decisão de anulação do julgamento efectuado – proferida em sede de um recurso – com o reenvio dos autos ao Tribunal recorrido para novo julgamento, “era ou não de se considerar tempestiva a desistência da queixa que, entretanto, antes desse novo julgamento, foi apresentada”.
Por sua vez, no “Acórdão fundamento” – de 13.06.2019, Proc. n.° 60/2019 – a questão que aí se tratou e decidiu foi (apenas e tão só) a de saber “até que momento processual era possível a desistência da queixa” (face ao disposto no n.° 2 do art. 108° do C.P.M.), sendo que o Tribunal de Segunda Instância respondeu a essa questão afirmando que a homologação da desistência só poderia ter lugar (desde que não houvesse oposição do arguido e) caso a sua apresentação tenha ocorrido “antes da publicação da sentença em 1ª Instância”, (aliás, como se prescreve no dito art. 108°, n.° 2 do C.P.M.).
Nesta conformidade, e como claro nos parece, enquanto neste último aresto se apreciou – tão só – da questão da “tempestividade da desistência da queixa”, (em face da publicação da sentença em 1ª Instância), o Acórdão recorrido não se pronunciou se a desistência da queixa apresentada depois da publicação da sentença proferida em 1ª Instância podia ser homologada, tendo antes decidido que, uma vez anulada a sentença proferida em sede do seu recurso e decretado o reenvio dos autos para novo julgamento, tudo se passaria como se aquela nunca tivesse existido, pelo que, (não existindo), tempestiva seria a desistência da queixa – no caso – apresentada antes do “novo julgamento”, nada impedindo, por isso, a sua homologação.
Assim, e ainda que em ambos os veredictos em causa estivesse uma “questão” de tempestividade, validade e eficácia da “desistência de uma queixa”, inegável se nos mostra que, o “enquadramento” da mesma “questão”, (em face das “circunstâncias” e “particularidades” em cada processo relevantes), não se apresentam idênticos (ou semelhantes), o que afasta a (necessária) consideração de que constituem “decisões opostas sobre a mesma questão de direito”.
Dest’arte, e verificada não estando a existência da alegada oposição entre o Acórdão recorrido e Acórdão fundamento, impõe-se decidir em conformidade com o estatuído no art. 423° do C.P.P.M..
Decisão
3. Em face do exposto, em conferência, acordam rejeitar o presente recurso.
Sem tributação, (dada a isenção do Recorrente).
Registe e notifique.
Macau, aos 23 de Fevereiro de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 9/2022 Pág. 2
Proc. 9/2022 Pág. 3