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Processo nº 14/2022 Data: 11.03.2022
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Medida da pena.
(Requalificação jurídico-penal).



SUMÁRIO

1. Com o recurso não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, devendo esta ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis.

2. Revelando-se pela decisão recorrida, a selecção (adequada) dos elementos factuais elegíveis, a identificação (correcta) das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida e justa dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da pena que ao ora recorrente foi aplicada.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 14/2022
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), (1°) arguido com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 16.12.2021 – Proc. n.° 848/2021 – que confirmou o Acórdão do Tribunal Judicial de Base que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n°s 2 e 3, e 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 9 anos de prisão, batendo-se pela redução da dita pena para uma outra não superior a 7 anos de prisão; (cfr., fls. 1046 a 1054 e 1063 a 1071-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Após resposta do Ministério Público pugnando pela integral confirmação do decidido, (cfr., fls. 1083 a 1085-v), e remetidos os autos a esta Instância, em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer, considerando, também, que nenhuma censura merecia a decisão recorrida; (cfr., fls. 1101).

*

Adequadamente tramitados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Como resulta da abreviada síntese atrás efectuada, entende – tão só – o ora recorrente que “excessiva” é a pena que lhe foi aplicada, pugnando pela sua redução para uma outra não superior a 7 anos de prisão; (cfr., fls. 1063 a 1071-v).

Porém, cremos que não se lhe pode reconhecer razão.

Vejamos.

Está provada a “matéria de facto” como tal elencada e constante dos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, (que não vem impugnada e que, por motivos não haver para se alterar, aqui se tem por integralmente reproduzida, cfr., fls. 993 a 994-v e 1050-v a 1052, oportunamente se fazendo adequada referência).

Nesta conformidade, e centrando-nos, (agora), na (única) “questão” – da “adequação da pena” – pelo recorrente trazida à apreciação desta Instância, mostra-se de se começar por referir que ao dito crime pelo qual foi o recorrente condenado cabe a pena (abstracta) de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).

Ora, como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, importa atentar que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Por sua vez, e como repetidamente temos considerado, na completa ausência de qualquer “circunstância” que permita considerar a situação em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, motivos não existem para qualquer “atenuação especial da pena” ao abrigo do art. 66° do C.P.M., (sendo de consignar igualmente que inverificados também estão os necessários pressupostos legais do art. 18° da Lei n.° 17/2009 para qualquer atenuação especial, pois que, como se tem decidido: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015, de 30.05.2018, Proc. n.° 34/2018, de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 30.10.2020, Proc. n.° 165/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020, de 23.06.2021, Proc. n.° 84/2021 e de 24.09.2021, Proc. n.° 66/2021).

Por outro lado, e como igualmente temos afirmado, com o recurso não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021 e de 23.06.2021, Proc. n.° 72/2021-I).

E, nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, na referida moldura penal – 5 a 15 anos de prisão – atentos os critérios para a determinação da medida da pena previstos nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., e no que vem sendo normalmente entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de pena em processos análogos, mostra-se-nos de confirmar a decretada pena de 9 anos de prisão, (a 4 anos do seu limite mínimo, e a 6 anos do seu máximo).

Na verdade, o crime em questão, pelos malefícios que causa, constitui em flagelo para a “saúde pública”, e a “factualidade provada” revela que o recorrente, enquanto “visitante”, dedicava-se ao “tráfico ilícito de estupefacientes” em Macau há já alguns meses, (não constituindo uma “situação isolada” ou “pontual”), muito intenso e directo sendo o seu dolo, e elevado o grau de ilicitude da sua conduta, (muito) fortes sendo, também, em face das suas consequências, as necessidades de prevenção criminal.

Alega o recorrente que o Tribunal não ponderou – adequadamente – em todas as “circunstâncias” que lhe eram favoráveis, invocando a sua “confissão dos factos” e afirmando também que inflacionada está a pena se comparada com outras decisões condenatórias relativamente ao mesmo tipo crime.

Sem prejuízo do devido respeito, tais considerações não prosperam.

Com efeito, o ora recorrente foi detido em “flagrante delito”, e (mesmo assim), a alegada “confissão” não foi “integral” e “sem reservas”, respeitando, apenas, a parte da matéria da acusação; (cfr., fls. 994-v).

Por sua vez, o invocado argumento da “inflação da pena” com base em “critérios comparativos” também não se apresenta de acolher, pois que, ainda que se mostre de reconhecer que imprescindível é uma ponderação das “situações próximas e análogas”, como sabido é, “cada caso é um caso”, com as suas “particularidades” próprias, especialmente relevante sendo de se atentar nas “circunstâncias específicas da situação em questão”, nomeadamente, na “natureza” e “quantidade” de estupefaciente em causa, na intensidade e tipo do “dolo” e grau de “ilicitude”, assim como nos motivos (e eventual duração) da conduta.

In casu, o ora recorrente, sem qualquer ocupação remunerada em Macau, e, como o próprio declarou, auferindo RMB¥10.000,00 como motorista no Continente, aqui permaneceu por períodos vários e relativamente longos como “visitante”, dedicando-se, enquanto tal, ao “tráfico ilícito de estupefacientes”, vindo a ser surpreendido em flagrante quando se preparava para efectuar a transacção de uma porção de “Metanfetamina”, sendo-lhe posteriormente encontrada em casa uma outra porção deste produto que (igualmente) destinava à venda a terceiros, (assim como para o seu consumo, tendo, inclusivé, acusado “positivo” no exame efectuado para a sua confirmação).

E, assim, (verificados estando todos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual foi condenado), e não se podendo perder de vista que, em “matéria de pena”, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena, (alterando-a), apenas e tão só quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que o recurso não visa, nem pretende eliminar, a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento, vista está a solução para a presente lide recursória.

Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021-I e 84/2021).

Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a selecção (adequada) dos elementos factuais elegíveis, a identificação (correcta) das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida e justa dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da pena que ao ora recorrente foi aplicada; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste Tribunal de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015 e, o de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e as decisões sumárias de 17.05.2021, Proc. n.° 58/2021, de 16.11.2021, Proc. n.° 149/2021, e recentemente, de 04.01.2022, Proc. n.° 164/2021).

Aliás, como nota Figueiredo Dias, (in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo 1, pág. 84), “em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa”.

*

Aqui chegados, adequada se mostra uma última nota.

Apresenta-se-nos inquestionável – especialmente, em processos como o presente, ou seja, em sede de “recurso em processo de natureza penal”, (em que atenta a “natureza pública” do Direito Penal e Processual Penal, mais que uma “justiça meramente formal”, importa é uma “efectiva e recta justiça material”) – que os Tribunais se não devem dispensar de apreciar (oficiosamente) do acerto e correcção da “decisão da matéria de facto” e do seu “enquadramento jurídico-penal”, (até mesmo porque, como sabido é, os vícios da decisão da matéria de facto do art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M. são de “conhecimento oficioso”, não se mostrando igualmente de considerar o julgador do recurso um mero “espectador”, vinculado à interpretação da Lei seguida pelo Tribunal recorrido).

Na verdade, a confirmação (consciente) de um erro nos referidos aspectos, seria, certamente, uma indesejável manifestação da dita “justiça formal” que, para além de constituir um vexame para os próprios Órgãos Judiciais, podia, em resultado de uma menos feliz apreciação e decisão assente em (involuntário) engano, acabar por permitir exorbitantes e injustificadas vantagens, (ao arguido).

Assim, desde que oportuna e devidamente observado o contraditório, e, obviamente, sem prejuízo do integral e rigoroso respeito devido ao “princípio da proibição da reformatio in pejus” consagrado no art. 399° do C.P.P.M.), adequado se nos apresenta que, (sendo o caso), pode – e deve – o Tribunal de recurso proceder a uma “requalificação jurídico-penal” da factualidade tida como definitivamente adquirida.

Nesta conformidade, provado estando que o ora recorrente foi surpreendido em plena actividade de “venda a terceiros” – de 0,483g de “Metanfetamina” – e que detinha uma outra “porção” – de 13,22g de “Metanfetamina” – que destinava ao “tráfico” e ao seu “consumo”, (e observado estando o contraditório), mais adequado se nos mostra de considerar que se devia qualificar a sua conduta como a prática, em concurso real, de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” e 1 outro de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 e 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016.

Porém, por observância ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M., mais não se mostra de consignar, imperativa sendo a decisão que segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 10 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 11 de Março de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 14/2022 Pág. 14

Proc. 14/2022 Pág. 1