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Processo nº 851/2021
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data do Acórdão: 3 de Março de 2022

ASSUNTO:
- Alojamento ilegal
- Responsabilidade do Arrendatário

SUMÁRIO:
- É o arrendatário da fracção que detém o controle e o poder de uso e de gozo imediato sobre a mesma, ainda que durante grande parte do tempo e dos dias não esteja nessa fracção, tendo acesso e disponibilidade sobre o imóvel e o poder de não permitir a qualquer pessoa que aí entre e se instale, tendo o dever de boa conservação da coisa, de zelar por ela, afectá-la a um bom uso, sensato, prudente e de acordo com as regras e a as leis vigentes;
- Daí que se alguém desenvolve uma actividade de alojamento ilegal num prédio que se mostra arrendado, o arrendatário, enquanto responsável pelo gozo e utilização imediata da coisa, não deixa de ser responsabilizado pelo desenvolvimento dessa actividade proibida, pois tem o dever de olhar pela coisa e saber do que ali se passa.



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Rui Pereira Ribeiro





















Processo nº 851/2021
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data: 3 de Março de 2022
Recorrente: A
Recorrido: Directora dos Serviços de Turismo
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  veio interpor recurso contencioso do despacho do Directora dos Serviços de Turismo exarado no relatório nº 373/DI/2019 de 20.08.2019, que determinou a aplicação à Recorrente de uma sanção pecuniária melhor identificadas na p.i..
  Foi proferida sentença a julgar improcedente o recurso contencioso com a consequente manutenção do acto recorrido.
  Não se conformando com a decisão proferida veio a Recorrente recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
1. Tal qual argumentado em sede do seu recurso contencioso e conforme a prova junta aos autos como a produzida em audiência de julgamento, a intenção da recorrente sempre foi a de encontrar um co-arrendatário que co-arrendasse com ela toda a fracção ao mês, gerando uma economia de despesas mensais de renda e demais despesas gerais domésticas como sejam água, electricidade, internet e gás.
2. A recorrente nunca pretendeu obter - nem nunca obteve - qualquer mais-valia, lucro ou excedente relativamente ao correspectivo valor parcial de renda que lhe fosse pago pelo co-arrendatário que com ela partilhasse o locado.
3. A recorrente é conterrânea do casal no Vietnam com quem se propôs co-arrendar o locado e, para aferir se ambos os elementos do casal estava ou não em situação legal em Macau, pediu para ver os seus documentos de identificação e constatou que ambos detinham um visto que lhes dava autorização de permanência legal em Macau.
4. A recorrente acedeu verbalmente em passarem a ser apenas ambos os cônjuges a ocupar a totalidade e em exclusivo o locado, assumindo eles apenas o pagamento da integral idade da renda pelo que, após receber do referido casal o valor exacto e preciso de 1 renda - ou seja, MOP$4.400,00, sem qualquer adicional, excedente ou lucro -, entregou-lhes as chaves e mudou-se seguidamente para uma outra casa.
5. A intenção da recorrente passou assim a ser a de se tornar sublocadora verbal do imóvel ao indicado casal e deste ir recebendo mensalmente a renda, pagando-a seguidamente na agência imobiliária.
6. Durante os primeiros 6 meses a recorrente nunca iria informar nem o senhorio nem a agência imobiliária de que tinha subarrendado já o locado ao mesmo casal por estar ciente de que se não permanecesse no locado directamente como inquilina única - isto é, sem quaisquer sublocatários - por pelo menos 6 meses, perderia contratualmente o direito à devolução da caução de MOP$4.400,00.
7. Após o casal vietnamita ter deixado de pagar a imediata subsequente renda de Outubro de 2017 à recorrente, esta tentou telefonar-lhes, sem sucesso, pelo se deslocou ao imóvel, aí se deparando com o selo aposto à porta pela entidade recorrida.
8. Desde o 25 SET 2017 - quando entregou as suas únicas chaves ao casal vietnamita ­ a recorrente nunca mais se deslocou à fracção e apenas recebeu dos seus sublocatários - ou seja, o casal vietnamita - uma única renda, precisamente quando em 25 SET 2017 lhes entregou as chaves e se mudou para outra habitação.
9. Desde 25 SET 2017 em diante, a recorrente nunca mais voltou ao imóvel nem teve conhecimento se ou em que termos o mesmo estaria a ser utilizado pelo casal vietnamita.
10. O acordado entre a recorrente e o casal era de que a fracção seria por eles utilizada com fins habitacionais exclusivos e circunscritos ao referido casal e a recorrente não sabe se o casal utilizou ou não a fracção para quaisquer outros fins senão os exclusivamente habitacionais deles próprios com que se tinham comprometido perante ela.
11. Ao sublocar a fracção, sair da mesma e entregar as chaves ao casal, a recorrente deixou de poder ter conhecimento do que ali se passaria e, logo, deixou de ter oportunidade para reagir contra qualquer hipotético acto ilegal aí cometido e, por outro lado, a recorrente não tinha qualquer motivo para acreditar que o referido casal pretendesse porventura utilizar a fracção para outros fins que não aqueles acordados com ela.
12. A recorrente nunca representou nem teve qualquer consciência de que se passasse algo de ilícito na fracção e, assim sendo, nunca a recorrente agiu consciente e voluntariamente no quadro de uma situação de alojamento ilegal.
13. As facturas de água, electricidade, gás e internet eram todas remetidas para a morada do locado, inviabilizando assim à recorrente qualquer remota possibilidade de controlar e aperceber-se de quaisquer consumos eventualmente exorbitantes ou anómalos relativamente a apenas duas pessoas a habitar na fracção.
14. Na fracção não foram feitas pelo proprietário - nem também pela aqui recorrente! - quaisquer obras de adaptação no sentido de transformar a o imóvel num local destinado à maximização de “lugares de dormida”, designadamente não existindo salas de estar nem cozinhas convertidas improvisadamente em “quartos” nem existem divisões na fracção ou com fechadura particulares.
15. A partir de 25 SET 2017 a recorrente deixou de ter qualquer acesso ou ligação relativamente à fracção autónoma nem nunca desde 25 SET 2017 a recorrente voltou a deter, a possuir ou a ter quaisquer poderes de ingerência, de controlo ou de domínio relativamente à fracção autónoma.
16. A Sr.ª B, em situação de excesso de permanência em Macau e detectada na fracção, afirmou que quem lhe indicou que poderia dormir num dos quartos pelo valor diário de MOP$100,00 foi a Sr.ª大姐, que conheceu num casino sendo que, confrontada numa diligência investigatória de reconhecimento com uma fotografia da recorrente, a Sr.ª Bfoi firme e peremptória ao dizer que essa Sr.ª大姐não era a recorrente.
17. Em direito sancionatório público não pode haver responsabilização com base em presunções nem na imputação objectiva de condutas.
18. Não se mostra configurável em que eventuais termos possa ser cometida por negligência a seguinte conduta: “controlar por qualquer forma prédio ou fracção autónoma utilizado para a prestação ilegal de alojamento”.
19. Estará em causa uma previsão normativa orientada e visando condutas directamente voluntárias, ou seja, com previsão, intenção e vontade expressas do seu agente - ou seja, em que este tenha um “sobredomínio efectivo e global do facto” -, não meros descuidos ou desatenções e, assim sendo, a infracção prevista no art. 10.º n.º1, da L.P.P.I.A. não se mostra comissível por negligência mas apenas a título de dolo e, dentro deste, apenas o dolo directo.
20. Esse dolo directo deve incidir e incluir a expressa representação e adesão da vontade subjectiva do agente a todos os elementos do tipo e, portanto, o agente tem de representar e, representando, querer “controlar” e aquilo - o quid - que o agente tem de representar e de querer “controlar” é uma fracção autónoma que ele tenha também representado e, representando, tenha querido estar a ser utilizada para a prestação ilegal de alojamento.
21. Para efeitos de dolo directo no art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A., não basta, pois, ao agente representar e, representando, querer “controlar” uma qualquer fracção mas deverá tratar-se de uma fracção que ele saiba e, sabendo, queira que seja usada para a prestação ilegal de alojamento.
22. Nunca a aqui recorrente agiu imbuída ou revesti da desses elementos subjectivos de dolo directo, nada nos autos o indiciando!
23. Para efeitos de subsunção no art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A., o conceito de controlo não poderá corresponder a um poder meramente virtual ou potencial nem tal conceito se poderá extender ao ponto de nele se incluirem comportamentos possíveis mas omitidos ou preteridos.
24. Está em causa no “controlo” o exercício de um poder efectivo, activo, operativo, pela positiva e fora do art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A. estão, pois, a mera, virtual e hipotética possibilidade ou faculdade de controlo, devendo, bem diferentemente, existir um real e operativo exercício activo de controlo, sobretudo e ao menos para efeitos de direito sancionatório público, tal qual está aqui em causa.
25. A não ser assim entendido, não deveria também a agente imobiliária, com a sua conduta “omissiva”ou “não activa” em relação ao locado, ser integrada e subsumida no âmbito subjectivo do art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A. tal qual a entidade recorrida o interpretou ou também mesmo a proprietária e directa senhoria?
26. Só pode ser responsabilizado quem positivamente e pessoalmente aja ou actue em relação ao imóvel por sobre ele ter - ou ter ainda - a respectiva e efectiva disponibilidade e detenção e nem a agente imobiliária nem a proprietária e senhoria - mas não também a aqui recorrente! - estão em tal situação ou circunstâncias em relação à fracção onde se detectou a actividade de prestação ilegal de alojamento.
27. Quaisquer “deveres legais e contratuais de arrendatário” nos termos constantes da decisão recorrida apenas devem encontram consequências desfavoráveis ao nível do direito civil, nunca ao nível do direito sancionatório público pois um arrendatário que, contra o estipulado contratualmente, subarrende o locado sem conhecimento e consentimento do seu senhorio, arrisca-se, entre o mais, a ver rescindido o contrato ou a que o senhorio assuma potestativamente a posição de directo locador perante o até aí sublocatário, mas apenas isso.
28. Tal arrendatário que subarrendou sem conhecimento e consentimento do senhorio, pratica um ilícito civil ou contratual mas já não um ilícito infraccional.
29. Não podem ser razões de eficácia prática - assentes, designadamente, na eventual dificuldade de prova da Administração no sentido de descortinar quem foi o prestador do alojamento ilegal - a autorizar que, à sombra de uma presunção ficta, se puna objectivamente quem, em momento anterior, tenha assumido o título jurídico-formal de arrendatário mas que, não obstante não o tendo feito cessar nos termos gerais (v.g., revogação unilateral, rescisão ou denúncia), já não tenha entretanto acesso nem possua, detenha ou goze de facto a fracção.
30. Com a sublocação, ambos os cônjuges do casal vietnamita ficaram investidos na posição de subarrendatários e, nessa dimensão, passou a ser cada um dos cônjuges a deter o controle e ter o poder de uso e de gozo imediato sobre a fracção e, logo, tendo acesso e disponibilidade sobre a fracção - enquanto responsáveis directos e únicos pelo gozo e utilização imediata da coisa -, cada um dos cônjuges passou a ter o poder-dever de - segundo o combinado com a recorrente - não permitir a qualquer pessoa que aí entrasse e se instalasse, atentos os deveres gerais de boa conservação da coisa, de zelo e da sua afectação a um bom e legal uso.
31. Ao sublocar a fracção ao casal vietnamita, a recorrente perdeu o direito ao seu uso e disponibilidade e, inc1usivamente, deixou mesmo de poder entrar no imóvel sem consentimento de ambos os cônjuges e, pois, qualquer actividade ilícita apenas pode responsabilizar quem à data detinha o controlo efectivo e operativo da fracção - o casal vietnamita, isoladamente ou em eventual conluio com a Sr.ª大姐 -, sendo tal actividade inteiramente alheia e desconhecida da recorrente, que à mesma não deu qualquer consentimento, sequer conhecia ou tinha possibilidade de conhecer, quanto mais de controlar!
32. A responsabilidade pela infracção com sede no n.º 1 do art. 10.º recai apenas e tão-somente sobre a pessoa que controlasse o prédio ou a fracção utilizada para a prestação ilegal de alojamento e essa pessoa deixou, logo desde 25 SET 2017, de ser a recorrente!
33. Sempre sem conceder quanto à estrita inocência da recorrente, existe uma manifesta e gritante desproporção entre o valor da multa aplicada (MOP$200.000,00), o desvalor da acção e do resultado (MOP$100,00 por dormida) e os rendimentos da recorrente, que são presentemente de MOP$6.200, por mês.
34. A previsão normativa legalmente estabelecida no art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A. é uma estatuição normativa em que o legislador não cuidou de fazer uma moldura sancionatória que atenda e acomode a mais justa e ponderada equação entre o valor da multa, os desvalores da acção e do resultado e os rendimentos do eventual infractor.
35. A L.P.P.I.A. não contém uma disposição respeitante à “atenuação especial” da sanção e, assim, esta apenas pode graduar-se até ao seu mínimo legalmente previsto.
36. Está em causa a necessidade de ser acionado o controlo judicial da legalidade da norma constante do art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A. em face do valor paramétrico e primacial dos princípios acolhidos pela Lei Básica.
37. A Lei Básica - seja directamente seja por via do princípio da continuidade - acolhe os princípios da subsidariedade do direito sancionatório público, da intervenção mínima, da defesa de bens jurídicos, da proporcionalidade e da culpa.
38. Tais princípios, se aplicados à norma constante do art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A., teriam impedido o legislador de estatuir uma previsão geral e abstracta de um patamar mínimo de pena iniciado em MOP$200.000,00 e sem, em simultâneo, ressalvar um regime de “atenuação especial”.
39. Nos termos em que está redigido o art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A. não está em causa a defesa de bens jurídicos pois “pune-se” cega e excessivamente - sempre, sem margem para atenuação especial - a pessoa singular agente da infracção, indo muito além da necessidade de só -sancionar e defender bens jurídicos numa justa e proporcional medida, desconsiderando-se a mais justa e ponderada equação entre o valor da multa, os desvalores da acção e do resultado e os rendimentos do eventual infractor.
40. Ao não ter adoptado este entendimento e, pois, ao acolher a actuação procedimental da Administração, o Tribunal a quo frustrou a mais adequada e acertada interpretação e aplicação das normas e princípios com sede, entre outros normativos, no art. 10.º, n.º 1, da L.P.P.I.A., no art. 19.º e no art. 82.º e no parágrafo terceiro do art. 143.º, todos da Lei Básica, pelo que se pede seja julgado procedente o recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.
  Pela Entidade Recorrida foram apresentadas contra-alegações de onde constam as seguintes conclusões:
I. A DST não vislumbra na sentença do tribunal a quo quaisquer vícios;
II. Um recurso para o douto TSI não deve constituir uma mera repetição da acção proposta no tribunal administrativo, contudo o que se verifica no presente caso é exactamente uma repetição do já alegado em sede de recurso para o TAM e que foi devida e exaustivamente rebatido na sentença de 21 de Junho de 2021;
III. De qualquer forma, não tem razão a Recorrente quando alega que a DST não a deveria ter punido apenas por ser a arrendatária da fracção, no entanto e como é sabido, a posse de uma fracção dá ao arrendatário o controlo da mesma e, nesse sentido, quem controlar uma fracção onde se preste alojamento ilegal será punido ao abrigo do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010;
IV. A Recorrente foi acusada e punida por ter o controlo da fracção, pois ao celebrar o contrato de arrendamento da mesma, adquiriu a sua posse e por essa via o seu controlo;
V. Este entendimento decorre da letra da lei e tem sido reiterado, por várias vezes, tanto em decisões do Tribunal Administrativo de Macau como do Tribunal de Segunda Instância onde se analisaram questões semelhantes às levantadas no presente recurso;
VI. O acto da DST também não padece de qualquer violação da Lei Básica, isto porque, para se aferir da violação da lei superior tem de se ter em conta qual a norma da lei superior que a norma do direito interno viola e no caso em apreço a Recorrente não especificou qual fosse, tendo referido preceitos da lei superior que não têm o alcance que a Recorrente lhes quis- atribuir;
VII. Por último, o acto praticado pela DST também não viola o princípio da proporcionalidade pois por causa do flagelo que é a actividade de prestação de alojamento ilegal e dentro desse contexto, o legislador decidiu-se por multas de valor elevado, como forma de, não apenas tornar eficaz o combate a essa actividade ilegal como também de ter um forte efeito dissuasor e como diz e bem o TAM na sentença de 21 de Junho de 2021, “(...) é obviamente inegável que o valor aqui fixado era o desejado pelo Legislador da Lei n.º 3/2010.”;
VIII. Assim se conclui que esteve bem a Directora da DST o punir a Recorrente pela violação do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010 mandando aplicar uma multa de MOP200.000,00 e esteve muito bem a sentença do tribunal a quo de 21 de Junho de 2021, ao não dar provimento ao recurso apresentado pela Recorrente.
  
  Foram os autos ao Ilustre Magistrado do Ministério Público o qual emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
  
  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
  É do seguinte o teor da Douta decisão recorrida na parte em que conclui pela existência de fundamento que conduz à manutenação dos actos recorridos:
  «1. Matéria de facto
  Com base nos elementos resultantes dos autos, e dos depoimentos das testemunhas ouvidas, considera-se provada a seguinte factualidade pertinente:
➢ Em 1 de Novembro de 2017, o pessoal do grupo da fiscalização da Direcção dos Serviços de Turismo (DST) entrou numa fracção, sita em Macau, na Rua…, n.º …, Edf. …, 1.ª fase, bloco II, 1.º andar D (sala…), para investigar a suspeita da utilização desta fracção para a prestação ilegal de alojamento. Uma vez que há fortes indícios que demonstram que esta fracção autónoma estava a ser utilizada para a prestação ilegal de alojamento ao público, o inspector da DST elaborou um auto de notícia n.º 248/DI-AI/2017 sobre a matéria acima referida (vide fls. 13v. a 14 e v. do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
➢ A fracção acima referida é composta por uma sala de estar, três quartos, uma casa de banho e uma cozinha (idem).
➢ Uma inquilina da fracção, B (B), alugava um dos quartos com a taxa de alojamento diária de 100 patacas, mas, a mesma nunca pagou qualquer taxa de alojamento, bem como não podia apresentar qualquer contrato de arrendamento (idem.)
➢ A inquilina acima referida é não residente da RAEM e entrou em Macau pelo salvo-conduto da República Popular da China para deslocação a Hong Kong e Macau vigente (vide fls. 5 do processo administrativo).
➢ C (C) é o proprietário de tal fracção autónoma e efectuou o registo de aquisição da fracção em 3 de Setembro de 2012 com fim habitacional, sem que esteja dotado da licença para exploração de estabelecimento hoteleiro emitida pela DST (vide fls. 1 e verso, e fls.24 a 72 do processo administrativo).
➢ O proprietário, C (C), celebrou em 12 de Setembro de 2017 um contrato de arrendamento de tal fracção com a recorrente, pelo período de um ano, contado a partir de 12 de Setembro de 2017 até 11 de Setembro de 2018, com a renda mensal de MOP$4.400,00 (vide fls. 94 do processo administrativo).
➢ Na investigação, o inspector da DST elaborou, sucessivamente, as declarações do proprietário da fracção, C (C), da agente imobiliária da XX Property (XX地產), D (D), e da recorrente (vide fls. 91 e v., 101 e v. e, 115 e v. do processo administrativo).
➢ Em 10 de Setembro de 2018, a entidade recorrida exarou um despacho no relatório n.º 571/DI/2018, que concordou em deduzir acusação contra a recorrente. Através do mandato de notificação n.º 621/AI/2018, a entidade recorrida notificou, em 12 do mesmo mês, a recorrente de tal decisão, indicando que podia apresentar contestação por escrito (vide fls. 146 a 153 do processo administrativo).
➢ Em 18 de Outubro de 2018, a recorrente apresentou uma contestação escrita à entidade recorrida (vide fls.159 a 160 do processo administrativo).
➢ Em 20 de Agosto de 2019, a entidade recorrida concordou com a proposta apresentada no relatório n.º 373/DI/2019, e nos termos do disposto no art.º 10.º, n.º 1 da Lei n.º 3/2010, decidiu aplicar à recorrente uma multa de MOP$200.000,00, pelo fundamento de que a mesma controlava a fracção autónoma para a prestação ilegal de alojamento (vide fls. 163 a 170 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
➢ Em 22 de Agosto de 2019, a entidade recorrida emitiu o mandado de notificação n.º 494/AI/2019 para notificar a recorrente da decisão acima referida (vide fls. 171 a 172 dos autos).
➢ Em 4 de Outubro de 2019, a recorrente, através do mandatário judicial, interpôs o presente recurso contencioso da decisão acima referida para este Tribunal.
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2. Matéria de direito
  No caso em apreço, foi a Recorrente chamada à responsabilização pela conduta tipificada na norma específica do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010, pelo facto de ser esta a arrendatária da fracção autónoma utilizada para a prestação ilegal de alojamento, por isso, aquela que controlava a mesma para as actividades ora imputadas.
  Começou a Recorrente por alegar que não devia ter sido responsabilizada pela falta do dolo directo da parte dela na prática da infracção administrativa que lhe foi imputada, nem sendo enquadrável uma conduta ilícita negligente na mesma norma punitiva. Além disso, o conceito de “controlo" referido na norma não poderá corresponder a um poder meramente virtual ou potencial, mas sim ao “efectivo, activo, operativo, pela positiva” (conforme se alega nos artigos 45.º a 76.º da p.i.).
  Vejamos.
  A norma do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010 que serviu de base ao acto ora recorrido tem a seguinte redacção: “1. Quem prestar ilegalmente alojamento ou controlar por qualquer forma prédio ou fracção autónoma utilizado para a prestação ilegal de alojamento é punido com multa de 200 000 a 800 000 patacas.”
  Considera-se como “a prestação ilegal de alojamento”, ao abrigo do disposto no artigo 2.º da referida Lei, a actividade de 1) prestação de alojamento ao público, 2) sem possuir a licença para exploração de estabelecimentos hoteleiros, em prédio ou fracção autónoma não destinado a fins de actividade hoteleira e similar, 3) cujo ocupante é não residente da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), ao qual não foi concedida autorização especial de permanência ou autorização de permanência de trabalhador não residente.
  Estamos, fora da dúvida, perante as actividades ilícitas de prestação ilegal de alojamento, com a demonstração da seguinte factualidade que preenche os aludidos requisitos normativos:
  - A fracção em causa, sita em Macau, na Rua…, n.º…, Edf…., 1.ª fase, bloco II, 1.º andar D (sala…), com fim habitacional, foi destinada ao alojamento, sem que esteja dotada de licença para exploração de estabelecimento hoteleiro.
  - A dita fracção foi utilizada para alojar a não residente da RAEM, B (B), que não tinha qualquer autorização especial de permanência.
  No que respeita à questão da determinação do responsável pela prestação ilegal de alojamento face ao n.º 1 do referido preceito legal, constitui a jurisprudência constante do Tribunal de Segunda Instância que a qualidade do arrendatário é título bastante para lhe atribuir o poder de controlo da fracção, e que o mesmo deverá ser responsabilizado pela actividade proibida aí desenvolvida, por ter gozo de utilização imediata da coisa. Cita-se, por exemplo, o segmento do Acórdão do TSI de 05/11/2015, Processo n.º 424/2015, no seguinte:
  “... Como arrendatário, advêm-lhe deveres, tal como decorre do art.º 983º do CC, que não só se impõem perante o locador, como perante terceiros e perante a sociedade, não se tendo por transmitida a responsabilidade decorrente da violação desses deveres. Daí que se alguém desenvolve uma actividade de alojamento ilegal num prédio que se mostra arrendado, o arrendatário, enquanto responsável pelo gozo e utilização imediata da coisa, não deixa de ser responsabilizado pelo desenvolvimento dessa actividade proibida, pois tem o dever de olhar pela coisa e saber do que ali se passa…” (No mesmo sentido, veja-se melhor, os Acórdãos do TSI de 29/11/2012, Processo n.º 693/2012; de 25/9/2014, Processo n.º 45/2014; de 27/11/2014, Processo n.º 262/2014 e de 05/11/2015, Processo n.º 424/2015).
  Desse conjunto das doutas jurisprudências, pode extrair-se as respostas às questões ora colocadas pela Recorrente:
  - Não é imprescindível a verificação do dolo directo do infractor como único elemento subjectivo para a sua responsabilização, uma vez que além da infracção dolosa, uma conduta meramente descuidada ou leviana, decorrente da violação negligente dos deveres próprios do arrendatário da fracção, é ainda apta a desencadear as consequências previstas na respectiva norma sancionatória.
  - Por consequência, o controlo previsto na norma em apreço deve ser entendido como um poder virtual e abstracto, não empírico ou concreto, por ser inerente à posição jurídica que o infractor ocupa na relação material de arrendamento.
  No caso dos autos, a ora Recorrente é arrendatária da fracção autónoma, tal como configurada no respectivo contrato de arrendamento, factualidade essa que não foi impugnada. E em virtude da douta jurisprudência que não tenha ainda sofrido algumas revisões até ao presente, não se vê como sustentar a tese acima exposta pela Recorrente.
  Porém, a verdade é que, mantendo-se inalteradas as ditas linhas mestres do entendimento jurisprudencial, numa hipótese de ser comprovada a existência de uma “cadeia” de transmissões da posição jurídica relativamente à mesma fracção autónoma ou a ocorrência das outras vicissitudes igualmente idóneas para afastar a intervenção do arrendatário no cometimento da infracção enquanto responsável originário, fundado na respectiva posição jurídica – como sucede na ocorrência da sublocação da fracção, ou da cessão do gozo da fracção através do comodato – passará a ser aquele em favor de quem se operam as consequentes transmissões que assumirá perante o arrendatário originário, os deveres jurídicos decorrentes do seu estatuto jurídico, como decorra do disposto no artigo 983.º do CCM (no caso de subarrendamento), ou no artigo 1063.º do Código (no caso de comodato).
  Em contrapartida, impende sobre tal arrendatário originário que se coloca na mesma posição do arrendador ou locador, o dever de assegurar ao subarrendatário o gozo do bem arrendado, abstendo-se da prática dos actos que possam impedir ou diminuir esse gozo (cfr. os artigos 977.º a 982.º do CCM, aplicáveis ao caso, devidamente adaptados). No caso de se tratar de uma relação de comodato, o comodante é igualmente vinculado ao dever jurídico de não praticar os actos que impedem ou diminuem o uso da coisa, conforme o disposto no artigo 1061.º do mesmo Código.
  Parece-nos que nesse ponto não se deixou de constatar a tentativa da ora Recorrente no sentido de demonstrar a existência da relação de sublocação entre ela mesma e os supostos cônjuges do casal vietnamita que “ficaram investidos na posição de subarrendatários e, nessa dimensão, passou a ser cada um dos cônjuges a deter o controle e ter o poder de uso e de gozo imediato sobre a fracção” (conforme se alega nos artigos 77.º a 81.º da petição inicial).
  Mas salvo a melhor opinião, inexistem nos autos, para além da defesa escrita apresentada pela própria Recorrente, alguns elementos escritos que apontam para a existência da dita relação de subarrendamento: não há nenhum documento ainda que informalmente elaborado, nem os ditos cônjuges que alegadamente tomaram a fracção em subarrendamento se encontram minimamente identificados no processo.
  Assim como sucede com as testemunhas indicadas para o efeito – as amigas da Recorrente com quem esta coabitava após ter deixado a dita fracção – que vieram a depor neste Tribunal, as mesmas não conseguiram identificar tal casal vietnamita, nunca estiveram presentes nas negociações entre estes e a Recorrente, nem assistiram ao telefonema feito pela Recorrente ou viram que a Recorrente assim fizesse.
  Os respectivos depoimentos recolhidos na parte maioritária – a Recorrente tinha inicialmente uma intenção de arranjar co-arrendatário para partilhar o pagamento da renda devida, mas acabou por subarrendar a fracção ao casal vietnamita que não quis partilhar a casa com ela – foram provenientes dos ouvir-dizeres obtidos junto da própria Recorrente, cuja força probatória é, evidentemente, reduzida (seja por ser o depoimento indirecto, seja por ter como fonte nas declarações da parte processual).
  Nesta linha, não tendo sido demonstrada a existência da alegada relação de subarrendamento, a impugnação ora deduzida com os seus fundamentos não é suficiente para abanar os pressupostos da sanção administrativa, tidos por verificados pela Recorrida.
  Assim, deve-se julgar improcedente o recurso contencioso quanto a este fundamento invocado nesta parte.
*
  Por sua vez, em relação ao assacado vício da manifesta desproporção do valor de multa relativamente aos rendimentos auferidos pela Recorrente e à eventual ilegalidade da norma do artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 3/2010, pela violação dos princípios de proporcionalidade e da necessidade de defesa de bens jurídicos acolhidos na Lei Básica, entendemos que à Recorrente não assiste a razão.
  Não há, desde logo, a violação do princípio de proporcionalidade no acto ora recorrido que determinou a aplicação da multa à Recorrente no seu limite inferior, da moldura sancionatória prevista no referido preceito legal do artigo 10.º, n.º 1, dentre 200,000.00 a 800,000.00 patacas. Não se exclui que o valor da multa mesmo assim determinado pudesse pecar por excesso da medida face aos rendimentos reais do seu destinatário, mas é obviamente inegável que o valor aqui fixado era desejado pelo Legislador da Lei n.º 3/2010.
  Questão diversa é a de saber se deve ser afastada a aplicação do próprio preceito normativo por ter previsto uma sanção administrativa com a fixação da moldura no limite mínimo abstractamente excessivo. Mas com isto, já entramos no âmbito da legalidade das normas.
  Como se sabe, “No recurso contencioso de acto administrativo e juiz pode conhecer por sua iniciativa, incidentalmente, da ilegalidade de um regulamento, ou da violação da Lei Básica por parte de let interna, com fundamento no princípio da hierarquia das normas” (cfr. Acórdão do TUI n.º 35/2012, de 04/07/2012). Tratando-se de uma norma contida na lei ordinária dimanada da Assembleia Legislativa, a respectiva legalidade deve aferir-se em relação à norma da Lei Básica, da hierarquia normativa superior.
  No caso dos autos, qual é a norma da Lei Básica que se considera violada pela norma da lei interna? A Recorrente não especificou. Na realidade, diferentemente do que ocorreu com o princípio da igualdade, o da proporcionalidade previsto no artigo 5.º do CPA não se encontra expressamente consagrado na Lei Básica. Além disso, parece-nos que as normas da Lei Básica referidas pela Recorrente (nomeadamente os artigos 19.º, 82.º e 143.º) não comportam o alcance que a Recorrente lhes quis atribuir, já que quando o artigo 19.º menciona os "princípios anteriormente vigentes em Macau", está a referir àqueles impostos à jurisdição dos tribunais da RAEM como restrições à sua jurisdição que se devam manter. Daí não pode resultar a existência dum vínculo directo à actividade legislativa. O que por si pode fazer cair por terra a tese da Recorrente por ser destituída de qualquer fundamento.
  Além disso, ainda que se admita a consagração desse princípio da proporcionalidade como derivado implicitamente dos outros princípios fundamentais, não se pode afirmar que a norma em apreço tenha fixado uma medida, abstractamente, desproporcional, porque sendo indiferentemente destinada aos agentes em geral, pode a multa aplicada implicar os encargos mais ou menos gravosos para as pessoas com o nível variável de rendimentos em cada caso concreto. Neste sentido, a excessividade da multa afere-se sempre na situação concreta visada pelo acto administrativo, nunca em abstracto.
  Neste sentido, inexiste imputada a violação normativa do princípio da proporcionalidade. Por isso, deve-se improceder o recurso nesta parte.».
  
  Concluindo pelo acerto da decisão recorrida, é do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério:
  «2.
  2.1.
  Salvo o devido respeito, cremos que a Recorrente não tem razão no que concerne à primeira parte dos seus fundamentos do recurso.
  Na verdade, verifica-se que a mesma esgota grande parte da sua alegação a invocar matéria de facto que, neste momento processual, já é manifestamente impertinente, tendo em conta o julgamento que foi feito pelo Tribunal Administrativo e que não foi impugnado nos termos legalmente exigidos, nomeadamente, os que resultam do disposto no artigo 599.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 1.º do CPAC.
  Além disso, no que concerne ao invocado erro na interpretação e aplicação do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010, também não podemos deixar de estar com a douta sentença recorrida. Com efeito, a jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância tem apontado, nemine discrepante, no sentido de que a qualidade de arrendatário é suficiente para investir alguém no poder de controlo da fracção que constitui pressuposto da responsabilização pela actividade de alojamento ilegal, não sendo necessária, ao contrário do que entende a Recorrente, a afirmação do dolo directo para sustentar uma tal responsabilização.
  Como se afirma no sumário do acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 5 de Novembro de 2015 tirado no processo n.º 424/2015, ao arrendatário, «advêm-lhe deveres, tal como decorre do art. 983º do CC, que não só se impõem perante o locador, como perante terceiros e perante a sociedade, não se tendo por transmitida a responsabilidade decorrente da violação desses deveres. Daí que se alguém desenvolve uma actividade de alojamento ilegal num prédio que se mostra arrendado, o arrendatário, enquanto responsável pelo gozo e utilização imediata da coisa, não deixa de ser responsabilizado pelo desenvolvimento dessa actividade proibida, pois tem o dever de olhar pela coisa e saber do que ali se passa» (no mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal de Segunda Instância de 29.11.2012, processo n.º 693/2012, de 25.9.2014, processo n.º 45/2014, de 27.11.2014, processo n.º 262/2014 e de 28.1.2021, processo n.º 1030/2020).
  No caso, resulta da matéria de facto provada que o proprietário da fracção autónoma na qual foi prestado alojamento ilegal celebrou em 12 de Setembro de 2017 um contrato de arrendamento com a Recorrente por um ano e mediante a renda mensal de 4 400 patacas, pelo que é de considerar verificado o pressuposto de que o n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010 faz depender a responsabilização pela prática da infracção administrativa aqui discutida.
  Não merece, pois, qualquer censura, nesta parte, a douta sentença recorrida.
  2.2.
  a segunda parte das suas alegações, a Recorrente invoca a existência do que considera ser «uma manifesta e gritante desproporção» entre o valor da multa aplicada, o desvalor da acção e do resultado e os seus rendimentos mensais para, partindo daí, sustentar a desconformidade da norma do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010 com alguns princípios fundamentais que, segundo entende, emergem da Lei Básica.
  Cremos que a Recorrente não tem razão.
  (i)
  A questão já foi suscitada perante o Tribunal Administrativo. Na sentença recorrida, o Meritíssimo juiz a quo não reconheceu mérito à pretensão do Recorrente com base, essencialmente, na consideração de que a Lei Básica não consagra o princípio da proporcionalidade e, além disso, ainda que assim não fosse, «não se pode afirmar que a norma em apreço tenha fixado uma medida abstractamente desproporcional, porque sendo indiferentemente destinada aos agentes em geral, pode a multa implicar os encargos mais ou menos gravosos para as pessoas com o nível variável de rendimentos em cada caso concreto. Neste sentido, a excessividade da multa afere-se sempre na situação concreta visada pelo acto administrativo, nunca em abstracto».
  Acompanhamos, embora não totalmente, o assim doutamente decidido.
  É certo que a Lei Básica não contém norma que consagre expressamente o princípio da proporcionalidade, ao contrário do que acontece com o princípio da igualdade. Contudo, daí não decorre que, entre nós, aquele princípio não tenha dignidade constitucional (de resto, também em Portugal, a Constituição da República, na sua versão originária não consagrava expressamente tal princípio sem que tal tenha constituído obstáculo a que a jurisprudência e a doutrina tivessem colocado o mesmo como parâmetro de controlo das actuações restritivas de direitos fundamentais).
  Na verdade, independentemente daquela consagração constitucional expressa, pensamos não poder discutir-se que o princípio da proporcionalidade, a par de outros, como o princípio da protecção da confiança e o princípio da determinabilidade, por exemplo, são como que inerentes à ou emanações da própria noção de Estado de Direito ou, no nosso caso, de Região de Direito. São princípios que, por definição, vigoram em qualquer Estado ou Região de Direito e que, portanto, vinculam na sua actuação todos os poderes públicos, incluindo, o legislativo e o judicial, e não apenas a Administração. Tais princípios, na expressiva formulação de JORGE REIS NOVAIS, «constituem a estrutura jurídica de qualquer Estado de Direito, no sentido de que traduzem no domínio jurídico constitucional a existência de valores sem o reconhecimento dos quais não há Estado de Direito e que, no seu conjunto, só podem existir em Estado de Direito» (assim, JORGE REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra, 2019, p. 13).
  Portanto, a nosso ver, não obstante a falta de norma na Lei Básica que consagre expressamente o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso não se lhe pode recusar, dado o seu carácter estruturante, o valor de parâmetro de controlo da constitucionalidade das actuações dos diversos poderes públicos e não apenas da Administração.
  (ii)
  Além disso, como a douta sentença recorrida pertinentemente assinalou, no âmbito do recurso contencioso de um acto administrativo, o juiz pode conhecer, incidentalmente, da ilegalidade de um regulamento administrativo ou da violação da Lei Básica por parte de lei ordinária com fundamento no princípio da hierarquia das normas. É isto o que decorre da jurisprudência firmada pelo Tribunal de Última Instância no seu acórdão de 4 de Julho de 2012, tirado no processo n.º 33/2012.
  A Administração, por força do princípio da legalidade, consagrado expressamente no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo, aplica a lei ordinária e não directamente a lei fundamental e por isso é que, em princípio, o juízo de inconstitucionalidade não pode ser formulado directamente sobre o acto, mas sobre a norma legal ou regulamentar que o mesmo interpreta e aplica no caso concreto. A Administração relaciona-se em regra directamente com a lei e só excepcionalmente o faz com a Constituição.
  É por isso que se entende que no «domínio da prática de actos administrativos no exercício de poderes vinculados, o juízo de inconstitucionalidade não pode ser formulado, directamente, sobre os actos ou sobre as decisões que, contenciosamente os apreciem, mas sim e apenas sobre as normas jurídicas aplicadas, quer no seu teor, quer na interpretação adoptada em eventual violação de normas ou princípios constitucionais» (assim, na jurisprudência portuguesa, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13.3.2003, processo n.º 035590, disponível em www.dgsi.pt. Sobre o desvalor do acto administrativo que aplica uma norma legal inconstitucional, a jurisprudência portuguesa, aqui referida a título comparada, tem vindo a decidir no sentido de que «os actos que aplicam normas inconstitucionais não são, só por esse facto, nulos, estando submetidos ao regime geral das invalidades e, portanto, em regra, do que se trata é de mera anulabilidade face ao disposto na norma do artigo 124.º do Código do Procedimento administrativo: cfr., nesse sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, Volume I, Lisboa, 2006, pp. 883-889 com exaustivas indicações de jurisprudência portuguesa. Também no mesmo sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO COSTA GONÇALVES/JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 643. Criticamente, no entanto, ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A Fiscalização Administrativa da Constitucionalidade, Coimbra, 2004, p. 429).
  (iii)
  A questão essencial é, no entanto, a que se prende com o conteúdo normativo do princípio da proporcionalidade e nesse ponto estamos em crer que a douta sentença recorrida andou bem.
  A mobilização do princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo das actuações restritivas dos poderes públicos tem essencialmente a ver com uma comparação, com uma ponderação ou valoração de alternativas restritivas, sendo orientada ao apuramento da existência de um eventual excesso ou desproporcionalidade entre benefícios pretendidos e sacrifícios impostos pelos poderes públicos aos particulares.
  É com esta configuração que o princípio tem sido, pacificamente acolhido pelos nossos Tribunais superiores, nomeadamente pelo Tribunal de Última Instância, ainda que a propósito da fiscalização de actuações administrativas, mas certamente transponível quando em causa esteja a sindicância da actuação de outros poderes públicos que não a Administração (cfr., por exemplo e por último, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 24.9.2021, processo 110/2021).
  (iv)
  No caso sujeito, através do acto administrativo impugnado foi aplicada à Recorrente uma multa de 200 000 patacas por a mesma ter incorrido na prática da infracção prevista no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010.
  Tal montante corresponde ao limite mínimo da moldura ali prevista e, como tal, a Administração, concluindo pela existência da infracção, estava vinculada a, no mínimo, aplicar tal multa, não beneficiando, nesse sentido, de qualquer margem de discricionariedade, nomeadamente, qualquer margem que lhe possibilitasse aplicar uma multa inferior a esse mínimo, sob pena de flagrante violação do princípio da legalidade.
  Ora, não nos parece que, em abstracto, se possa dizer que a moldura da sanção administrativa fixada naquela norma se possa dizer violadora do princípio da proporcionalidade acima referida. É legítimo ao legislador, procurando reprimir o fenómeno do alojamento ilegal, prever a aplicação de sanções pecuniárias com o recurso a molduras abstractas de montante mínimo elevado. De resto, como tem sido pacificamente reconhecido, nesta matéria não pode deixar de se entender que o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das multas aplicáveis a infracções administrativas, como, aliás, sucede com a fixação de sanções penais e das respectivas molduras abstractas, de modo a garantir que as sanções aplicadas sejam efectivas, proporcionadas e dissuasoras, com vista a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (veja-se, neste sentido, na jurisprudência portuguesa, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 304/94, n.º 574/95, n.º 547/00 e n.º 67/2011). Tal liberdade de definição de limites cessará, apenas, em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo, o que, no caso, não ocorre (o problema, em nosso humilde entender, só se poderia colocar nos termos pretendidos pelo Recorrente com pertinência decisória se, entre nós, se admitisse que o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso também comporta, ao lado do controlo da proporcionalidade, uma dimensão atinente à razoabilidade enquanto parâmetro de aferição da justiça do caso concreto implicante da valoração do estado ou situação em que ficam os particulares após a imposição de medidas restritivas e sem referência a qualquer juízo de comparação. Se assim fosse, seria eventualmente possível concluir que, face à concreta falta de gravidade da infracção em causa, em que o que está em causa é o simples arrendamento de um quarto numa fracção autónoma mediante uma contrapartida pecuniária diária de 100 patacas da qual a Recorrente em nada beneficiou, pois que não foi ela que prestou o alojamento, aplicar à mesma, uma trabalhadora não residente que aufere cerca de 6 000 patacas mensais, uma multa de 200 000 patacas, não é razoável. Na verdade, um olhar medianamente dotado de um sentido do que seja o equilíbrio e a justa medida das coisas não deixaria de notar que a sanção imposta à Recorrente se pode reputar de excessiva e desrazoável. Neste enquadramento, o ponto não estaria, portanto, na proporcionalidade, em abstracto, da norma legal em causa, mas, antes, na desrazoabilidade que resulta da sua concreta aplicação. A norma revelar-se-ia desrazoável, não em si mesma considerada, mas no modo como concretamente se projecta na sua aplicação ao caso que foi feita pela Administração e que esta não poderia deixar de fazer, dada a sua vinculação à lei. No entanto, o controlo da razoabilidade com este específico sentido como dimensão do princípio da proibição do excesso não é acolhido entre nós e, portanto, não é mobilizável como parâmetro de controlo das actuações dos poderes públicos, nomeadamente da actuação do legislador. O juízo de razoabilidade é feito na ponderação do terceiro dos subprincípios em que tradicionalmente se divide o princípio da proibição do excesso, o chamado subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Os outros dois subprincípios são, como se sabe, o da aptidão e o da necessidade. Em todo o caso, no sentido de que o princípio da proibição do excesso comporta, ao lado do controlo da proporcionalidade, um controlo da razoabilidade com o sentido autónomo que antes referimos, veja-se, na doutrina portuguesa, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições de Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, 2.ª edição, Coimbra, 2010, p. 765 e, mais recentemente, Princípios…, pp. 129 e 140).
  (v)
  Concluindo-se, como nos parece que se deve concluir, que a norma do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 3/2010, não se revela, em abstracto, desconforme com o princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade, não existe fundamento, ao contrário do pretendido pela Recorrente, para a sua desaplicação no presente caso.
  Significa isto, agora no plano da legalidade do acto administrativo, que o mesmo não se mostra afectado do vício de violação de lei por erro de direito [com efeito, se fosse caso de desaplicação da norma, a mesma retiraria ao acto a respectiva base legal, implicando, com isso, a dita violação de lei por erro de direito. No mesmo sentido, na jurisprudência portuguesa, acórdão do STA (Pleno da Secção de Contencioso Administrativo) de 25.11.1993, processo n.º 24448 e de 27.6.1995, processo n.º 26483, com sumários disponíveis em www.dgsi.pt e, na doutrina portuguesa, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/PEDRO COSTA GONÇALVES/JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código…, p. 643 e DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Coimbra, 2001, pp. 392-393 e, mais recentemente, na 4.ª edição, Coimbra, 2018, p. 353].
  Em nosso modesto entendimento, a douta decisão recorrida não é, pois, merecedora de qualquer censura.
  3.
  Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional.».
  
  Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta, entendemos que improcedem os fundamentos de recurso quanto aos vícios imputados à sentença recorrida, impondo-se decidir em conformidade, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos de acordo com os fundamentos dela constantes para os quais se remete.
  
  No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  
  Custas pela Recorrente a taxa de justiça em 5 UC’s.
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 3 de Março de 2022
  Rui Pereira Ribeiro
  Lai Kin Hong
  Fong Man Chong
   Mai Man Ieng

851/2021 ADM 13