打印全文
 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
O Ministério Público interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 928/2020, alegando que:
A. O acórdão recorrido está em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no Processo que aí correu termos sob o n.º 540/2010.
B. O acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, no domínio da mesma legislação, decidiram de modo expresso e em sentido contraditório a mesma questão fundamental de direito com base em factos essenciais ou nucleares que são idênticos.
C. Entre tais acórdãos do Tribunal de Segunda Instância verifica-se a oposição referida que, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 419.º do CPP, justifica o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
Na óptica do recorrente, os dois acórdãos em confronto perfilham soluções contraditórias relativamente à mesma questão de direito que se prende em saber se, em caso de concurso de infracções, a determinação da pena acessória única de inibição de condução se faz através do respectivo cúmulo jurídico ou do cúmulo material.
Não responderam os sujeitos processuais interessados.
Neste Tribunal de Última Instância, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de ser ordenado o prosseguimento dos termos do recurso interposto.

2. Fundamentos
2.1. Os requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal
O art.º 419.º do Código de Processo Penal de Macau, na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, prevê os fundamentos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com a seguinte disposição:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”

Decorre da norma transcrita que são requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
- Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- As decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e já transitou em julgado;
- Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido.
E nos termos do n.º 1 do art.º 420.º do CPP, o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
No que concerne ao pressuposto sobre a existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, tanto a doutrina como a jurisprudência apontam para a identidade da questão decidida em dois acórdãos e que a oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita, não sendo bastante que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.1
E a questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto, não obstante a identidade da questão decidida em dois acórdãos pressupõe que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões sejam também idênticos.
A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, “não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos”.2

2.2. O caso dos presentes autos
Vistos os requisitos substanciais do recurso, resta decidir se, no nosso caso concreto, se verifica a existência de acórdãos diferentes que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas.
Afigura-se-nos que a resposta não pode deixar de ser positiva.

Ora, constata-se no acórdão-fundamento, de 22 de Julho de 2010, invocado pelo Ministério Público que, chamado a apreciar a questão de saber se as penas de inibição de condução aplicada ao arguido (pelo cometimento de cada uma das 4 contravenções ao art.º 31.º da Lei do Trânsito Rodoviário) são juridicamente cumuláveis nos termos estatuídos no art.º 71.º do Código Penal de Macau, o Tribunal de Segunda Instância tomou decisão no sentido positivo, tendo considerado que, se o regime do art.º 71.º do CPM se aplica também às contravenções e se aquele que é punido com penas principais parcelares pela prática, em concurso real, de vários crimes, e com o desvalor que merce, pode, ainda assim, “beneficiar” do sistema do cúmulo jurídico, motivos não se vê para que assim não suceda em relação às “penas acessórias” e que o comando no n.º 4 do art.º 71.º não constitui obstáculo legal ao cúmulo jurídico das penas acessórias.
Por outras palavras, entende o Tribunal de Segunda Instância que, à semelhança do sucede com as penas principais, são juridicamente cumuláveis nos termos do art.º 71.º do CPM as penas acessórias de inibição de condução.
E no acórdão recorrido, proferido em 23 de Setembro de 2021 e no Processo n.º 928/2020, e pronunciando-se sobre a mesma questão, o Tribunal de Segunda Instância decidiu no sentido contrário, tendo entendido que não há motivos para proceder ao cúmulo jurídico das penas acessórias de inibição de condução, sendo a própria previsão no art.º 71.º do CPM que não permite, expressamente, o cúmulo jurídico das penas acessórias.
Verifica-se, assim, a oposição expressa das soluções vertidas nos dois acórdãos sobre a mesma questão de direito fundamental, respeitante à operabilidade de cúmulo jurídico das penas acessórias de inibição de condução.
Por outro lado, estamos no âmbito da mesma legislação, reparando-se que a norma fundamental para a solução da questão – art.º 71.º do CPM – não sofreu qualquer alteração.
O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e ambos já transitaram em julgado, não sendo o acórdão recorrido passível de recurso ordinário, face ao disposto na al. g) do n.º 1 do art.º 390.º do CPP.
O presente recurso para a fixação de jurisprudência foi interposto no prazo legal, isto é, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, tendo este transitado em 11 de Outubro de 2021, conforme se constata na fls. 24 dos autos.
E até à presente data este Tribunal de Última Instância não fixou jurisprudência sobre a questão em causa.
Acresce que, tal como refere muito bem o Digno Magistrado do Ministério Público, não se crê que assuma qualquer relevância o facto de as infracções apreciadas pelo acórdão-fundamento terem natureza contravencional e as julgadas pelo acórdão recorrido terem natureza criminal, pois a questão posta em causa se prende apenas com o critério de determinação da pena única resultante do concurso de infracções a que foram aplicadas penas parcelares acessórias de inibição de condução cuja natureza é idêntica num e noutro caso.
Estão assim preenchidos todos os pressupostos para que o Tribunal de Última Instância profira acórdão de uniformização de jurisprudência.

3. Decisão
Face ao expendido, determina-se o prosseguimento do recurso.
Notifique os sujeitos processuais interessados para apresentarem alegações (art.º 424.º n.º 1 do CPP).

12 de Janeiro de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai


1 Cfr. Acórdãos do TUI, de 14 de Maio de 2008 e de 11 de Março de 2009, nos Processos n.ºs 10/2008 e 6/2009.
2 Paulo Pinto de Albuquerque, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, pág. 1171.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




7
Processo n.º 160/2021 - I