打印全文
Processo n.º 1150/2020 Data do acórdão: 2022-3-10
Assuntos:
– crime de acolhimento
– obrigação de verificar o estatuto de permanência em Macau
S U M Á R I O
Ficando provado na sentença recorrida que foi a arguida recorrente – aí condenada pela prática, em autoria material, com dolo eventual, de um crime de acolhimento – quem providenciou pelo alojamento do seu namorado num quarto de dormir da fracção autónoma dos autos, era à própria recorrente que devia incumbir a obrigação de verificar o estatuto legal de permanência desse indivíduo em Macau.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1150/2020
(Autos de recurso penal)
  Recorrente (arguida): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 127 a 133 do Processo Comum Singular n.o CR3-20-0241-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenada a arguida A, pela prática, em autoria material, com dolo eventual, de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, em quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, na motivação apresentada em orignal a fls. 155 a 168 dos presentes autos correspondentes, o seguinte, para pedir a sua absolvição do dito crime:
– não é pelo facto de a própria recorrente ter sido a namorada do indivíduo chamado B e com este coabitar na fracção autónoma dos autos, embora em quartos separados, que ela necessariamente tinha que saber que ele se encontrava ilegalmente em Macau quando detectado na rua pela Polícia de Segurança Pública em 5 de Junho de 2020;
– a arrendatária directa e originária da dita fracção é a mãe da própria recorrente, pelo que B não é nem nunca foi inquilino nem sub-inquilino da recorrente;
– a recorrente chegou a ver uma vez, por mero acaso, o passaporte e o blue card de B, nada tendo visto nesses documentos que lhe parecesse estranho, errado ou ilegal;
– B sempre disse à recorrente que trabalhava, primeiro no Galaxy, e, mais tarde, como lava-pratos num restaurante, e, por outro lado ainda, sempre que saía de casa também sempre dizia aos outros moradores da casa que ia trabalhar, mantendo entradas e saídas de casa compatíveis e normais com um horário de trabalho, mais tendo chegado a dizer à recorrente que se o irmão dela própria precisasse de um trabalho em Macau, ele iria pedir no restaurante onde trabalhava uma vaga de trabalho para o irmão; e B pagou sempre a contribuição mensal pela ocupação do seu quarto;
– face ao que a recorrente sempre acreditou de boa fé que o estatuto de B em Macau era legal, que ele trabalhava e que tudo decorria normalmente e de acordo com as leis de Macau, sendo que, por terem sido namorados, a recorrente sempre teve também uma natural confiança pessoal nele, e sempre acreditou, de boa fé, que se este tivesse algum problema de emprego ou de dinheiro ele lhe diria logo de imediato;
– resulta com expressiva clareza que foi a recorrente vítima de uma actuação desonesta e desleal do seu então namorado B, que sempre lhe omitiu e escondeu a realidade do seu estatuto ilegal em Macau;
– o Tribunal recorrido, na especificação dos factos provados, não deixou aí exarada qualquer sua decisão de convicção quanto a considerar provado que a recorrente, em sede dos factos objecto do presente processo-crime, sabia e queria que os actos dela tinham por função e objecto a prática, por ela própria, do crime de acolhimento;
– ficou, pois, por demonstrar que a recorrente tivesse consciência ou representasse e quisesse que os actos por si praticados se destinavam à comissão de um crime de acolhimento, o que teria de ter ficado positivamente provado (e não ficou);
– sem essa demonstração, nunca o Tribunal recorrido poderia ter condenado a recorrente, por inexistência da comprovação dos factos com pertinência à afirmação do dolo dela na prática do crime de acolhimento;
– a decisão recorrida incorreu no vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), devendo a recorrente passar a ser absolvida do dito crime;
– e fosse como fosse, no caso de porventura existir o dever do senhorio de indagar quanto aos dados pessoais do seu inquilino, designadamente, sobre a legalidade da sua estadia em Macau, então tal dever impendia não sobre a recorrente, mas sim unicamente sobre a sua mãe, pelo que jamais poderia a filha ser punida por um acto ou omissão da sua mãe.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 170 a 172 dos presentes autos, no sentido de não provimento do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fl. 182 a 183, opinando pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
A sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 127 a 133, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
Na contestação à acusação pública, então apresentada em nome da arguida a fl. 94, não se invocou quaisquer factos em defesa da própria arguida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação, a recorrente assacou à decisão condenatória penal da Primeira Instância o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Entretanto, não tendo sido invocados, em sua defesa, outros factos na contestação escrita então apresentada à acusação pública, o objecto probando dos presentes autos penais já ficou assim delimitado pela matéria fáctica descrita nesse libelo acusatório. E do teor da fundamentação fáctica da sentença recorrida, resulta claro que o Tribunal seu autor já investigou esse objecto probando do processo, sem omissão alguma, tendo materialmente dado por provada a versão fáctica imputada pelo Ministério Público na mesma acusação contra a arguida. Assim sendo, não pode ter ocorrido o problema de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido naquela alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e sobre o alcance e sentido deste vício, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
No fundo, ao invocar este vício, estava a recorrente a fazer sindicar da justeza do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido.
Pois bem, a propósito da temática do julgamento de factos, é sempre útil relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador.
E dado o teor da fundamentação probatória tecida na mesma sentença, vê-se que o Tribunal recorrido não pode ter cometido a falta de fundamentação ao arrepio do exigido no art.o 355.o, n.o 2, do CPP.
Frisa-se que a arguida ficou aí condenada por prática, em autoria material, com dolo eventual, de um crime de acolhimento, pelo que os factos já dados por provados na sentença (com prova efectivamente suficiente) dão para suportar essa condenação penal.
Ante a mesma matéria fáctica provada, fica precludida a tese fáctica defendida na motivação do recurso, sendo certo que ficando provado na sentença (cfr. o 3.o facto provado, descrito nas linhas 4 a 7 da página 3 desse texto decisório, a fl. 128 dos autos) que foi a própria recorrente quem providenciou pelo alojamento do seu namorado B num quarto de dormir da fracção autónoma dos autos, era à própria recorrente, e não à mãe dela, que devia incumbir a obrigação de verificar o estatuto legal de permanência desse indivíduo em Macau.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas do recurso pela arguida, com três UC de taxa de justiça.
Comunique esta decisão (com cópia da sentença recorrida) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, como resposta ao solicitado a fl. 186.
Macau, 10 de Março de 2022.
________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
________________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



Processo n.º 1150/2020 Pág. 10/10