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Processo nº 8/2022 Data:11.03.2022
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Erro notório na apreciação da prova.
Contradição insanável da fundamentação.
Tentativa.
Declaração de perda de objectos.
Pressupostos.
(Requalificação jurídico-penal).



SUMÁRIO

1. O crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” reconduz-se à categoria dos designados “crimes de perigo abstracto” e “de perigo comum”.

Nos “crimes de perigo abstracto”, a Lei basta-se com a aptidão (genérica) de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores, baseando-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores.

Por sua vez, fala-se em “crime de perigo comum” face à multiplicidade de bens jurídicos que se pretende salvaguardar.

No caso, a “saúde pública”, como bem jurídico complexo que primacialmente visa proteger “bens jurídicos pessoais”, como a integridade física e a vida dos consumidores, tutelando também valores como a tranquilidade, a liberdade individual e a estabilidade familiar.

2. Qualificam-se, outrossim, como tipos de ilícito “exauridos”, “excutidos” ou de “empreendimento”, e em relação aos quais se considera que o “resultado típico” alcança-se logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis, (uma mera tentativa), precisamente porque, já aí, antes de se verificar qualquer lesão efectiva, verificado – consumado – está o perigo dessa lesão.

A tutela penal é, deste modo, antecipada, sendo, assim, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” punido como um “processo”, e não, apenas, como o “resultado de um processo”.

3. Nos termos do art. 101° do C.P.M.:

“1. São declarados perdidos a favor do Território os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos declarados perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.

Assim, e para a preceituada “declaração de perda de bens” essencial é que o Tribunal dê como provados os “factos” que integram os seus “pressupostos”, isto é, que os “objectos” em questão “serviram ou estavam destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este foram produzidos, …”, imprescindível se apresentando desta forma que a dita “matéria de facto” conste de expressa descrição na acusação – ou no despacho de pronúncia – para que, em observância do princípio do contraditório e no cabal exercício do direito de defesa, seja objecto de discussão e investigação em audiência de julgamento, com fundamentada “pronúncia”, (não bastando uma mera “remissão” feita na decisão da matéria de facto para uma breve “consideração” tecida em sede de um “auto de apreensão” efectuado na fase de Inquérito, onde nem se explicitam devidamente as suas razões).

O relator,

José Maria Dias Azedo

Processo nº 8/2022
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Sob acusação do Ministério Público e em audiência colectiva no Tribunal Judicial de Base responderam:
(1ª) A (甲),
(2°) B (乙),
(3a) C,
(4ª) D (丁)
(5°) E (戊),
(6°) F (己),
(7°) G (庚),
(8°) H (辛),
(9°) I (壬),
(10ª) J (癸),
(11°) K (甲甲),
(12a) L (甲乙),
(13°) M (甲丙),
(14°) N (甲丁),
(15°) O (甲戊),
(16°) P (甲己),
(17°) Q (甲庚),
(18a) R (甲辛),
(19°) S (甲壬),
(20°) T (甲癸),
(21°) U (乙甲),
(22°) V (乙乙),
(23°) X (乙丙), e,
(24°) X (乙丁), todos com os restantes sinais dos autos.

A final, realizado o julgamento – e na parte que agora interessa – decidiu-se:

–– condenar os referidos (1ª e 2°) arguidos A e B, como co-autores da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 6 e 6 anos e 3 meses de prisão, respectivamente; e,

–– condenar a (4ª) arguida D, como co-autora da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 6 anos de prisão; (cfr., fls. 2329 a 2377 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Do decidido os ditos (3) arguidos A, B e D recorreram para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 18.11.2021, (Proc. n.° 790/2021), negou provimento aos recursos; (cfr., fls. 2754 a 2798).

*

Ainda inconformados, vêm os (3) arguidos recorrer para esta Instância.

A (1ª) arguida A, imputa ao Acórdão recorrido os vícios de “erro notório na apreciação da prova”, “contradição insanável da fundamentação” e “errada qualificação jurídica”, considerando que a sua conduta integra apenas a prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” na “forma tentada”, pedindo também a atenuação especial e/ou redução da pena e a revogação da declaração de perdimento em relação à quantia de HKD$49.000,00 e MOP$5.000,00 lhe foi apreendida; (cfr., fls. 2885 a 2900).

Os (2° e 4ª) arguidos B e D, dizem (tão só) que “excessiva” é a pena que lhes foi aplicada; (cfr., fls. 2875 a 2883 e 2852 a 2857).

*

Em Resposta, é o Ministério Público de opinião que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 2964 a 2974).

*

Oportunamente, e em sede de vista, considerou também o Ilustre Procurador Adjunto que os recursos deviam ser julgados improcedentes; (cfr., fls. 3001).

*

Proferido que foi despacho preliminar, e colhidos os vistos dos Exmos Juízes-Adjuntos, é momento de decidir.

*

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados nos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, (cfr., fls. 2341-v a 2356 e 2766 a 2780-v), e que aqui se dão como integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, (notando-se que, adiante, aos mesmos será feita adequada referência).

Do direito

3. Vem os (1ª, 2° e 4ª) arguidos, A, B e D, recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que negou provimento aos recursos que interpuseram do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, (que os condenou nos termos já relatados).

3.1 Ponderando nas “questões” com os referidos recursos suscitadas, passa-se a apreciar do “recurso da (1ª) arguida A”.

Pois bem, como se viu, entende a ora recorrente que o Acórdão recorrido padece dos vícios de “erro notório na apreciação da prova”, “contradição insanável da fundamentação” e “errada qualificação jurídica”, considerando que a sua conduta integra apenas a prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” na “forma tentada”, pedindo também a atenuação especial e/ou redução da pena e a revogação da declaração de perdimento em relação à quantia de HKD$49.000,00 e MOP$5.000,00 lhe foi apreendida; (cfr., fls. 2885 a 2900).

–– Colocadas estando “questões” relativas à “decisão da matéria de facto” e ao seu “enquadramento jurídico-penal”, lógico se apresenta que se deve começar pelas primeiras.

Assim, e quanto ao assacado “erro notório na apreciação da prova”, vejamos.

Como repetidamente temos considerado:

«“Erro”, é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade.
Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
O “erro notório na apreciação da prova” apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as “regras sobre o valor da prova vinculada”, as “regras de experiência” ou as “legis artis”, tendo de ser um “erro ostensivo”, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores»; (cfr., v.g., e entre outros, o Ac. de 02.07.2021, Proc. n.° 97/2021).

Por sua vez, o vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., v.g., o Ac. de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

No caso, em face do sentido e alcance dos referidos “vícios”, e como bem nota o Ministério Público na sua resposta e Parecer, cabe dizer que evidente se nos apresenta que nenhum “erro” ou “contradição” existe, havendo também que se consignar que estes mesmos vícios não passam a existir (tão só) porque a recorrente invoca, por sua própria iniciativa, “factos” e “juízos conclusivos” que nem sequer constam na decisão recorrida, limitando-se a manifestar a sua “discordância” em relação ao que decidido foi e fundamentando-a em construções e conclusões (puramente) pessoais.

Assim, e sendo o que in casu sucede com as “afirmações” que, nesta parte, produz em sede do seu recurso, visto está que necessária é a sua improcedência.

–– Passemos para o “enquadramento jurídico-penal” da sua conduta.

Considera a recorrente que a sua conduta devia apenas integrar o crime pelo qual foi condenada na “forma tentada”, devendo, consequentemente, beneficiar de uma “atenuação especial da pena”.

Ora, também aqui, nenhuma razão lhe assiste.

Com efeito, cabe desde já notar que o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” reconduz-se à categoria dos designados “crimes de perigo abstracto” e “de perigo comum”.

E, como sabido é, nos “crimes de perigo abstracto”, a Lei basta-se com a aptidão (genérica) de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores, baseando-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores.

Aqui, a perigosidade da conduta típica é presumida pela Lei, constituindo exemplo típico o de “contrafacção de moeda (com intenção de a colocar em circulação)”, independentemente de esta colocação vir a ocorrer; (cfr., art. 252° do C.P.M.).

Por sua vez, fala-se em “crime de perigo comum” face à multiplicidade de bens jurídicos que se pretende salvaguardar; (cfr., v.g., os art°s 262° e segs. do C.P.M., integrados no Capítulo III, precisamente sobre os “crimes de perigo comum”).

No caso, a “saúde pública”, como bem jurídico complexo que primacialmente visa proteger “bens jurídicos pessoais”, como a integridade física e a vida dos consumidores, tutelando também valores como a tranquilidade, a liberdade individual e a estabilidade familiar.

Qualificam-se, outrossim, como tipos de ilícito “exauridos”, “excutidos” ou de “empreendimento”, e em relação aos quais se considera que o “resultado típico” alcança-se logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis, (uma mera tentativa), precisamente porque, já aí, antes de se verificar qualquer lesão efectiva, verificado – consumado – está o perigo dessa lesão.

A tutela penal é, deste modo, antecipada, sendo, assim, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” punido como um “processo”, e não, apenas, como o “resultado de um processo”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.10.2020, Proc. n.° 127/2020).

Porém, e seja como for, in casu, provado está que por ocasião de uma festa de aniversário levada a cabo numa “sala privada” de um estabelecimento de diversão nocturna, um grupo de mais de 10 pessoas, (de entre os quais, vários arguidos dos autos), decidiu consumir estupefaciente, (“Cocaína”), juntando para o efeito, dinheiro para a sua compra, encarregando-se a ora recorrente, (e o 2° arguido, seu marido), de organizar, (contactar), e efectuar, (concretizar), a aquisição do estupefaciente junto do (3°) arguido C, o que acabou por suceder, por “4 vezes”, evidente se apesentando, assim, que tal “conduta” não constitui nenhuma (mera) “forma tentada” do crime pelo qual foi condenada, pois que o estupefaciente pela ora recorrente “adquirido” destinava-se ao “consumo conjunto de um grupo de pessoas”, como efectivamente sucedeu, ociosas se apresentando assim qualquer outra consideração sobre a questão.

Nesta conformidade, (e pelos motivos pela recorrente invocados, ou outros), manifesto se mostra que nenhum motivo existe para a pretendida “alteração da qualificação jurídico-penal” operada e consequente “atenuação especial da pena”, imperativo sendo de, nesta parte, negar provimento ao presente recurso.

–– Pela ora recorrente vem também suscitada a questão da “adequação pena”, pedindo a sua “redução”, assim como da legalidade da “declaração de perda do dinheiro que lhe foi apreendido”.

Sem demoras vejamos da dita “declaração de perda”, (apreciando-se, posteriormente da também colocada questão da “adequação de pena” em sede da apreciação dos recursos dos outros 2° e 4ª arguidos).

Pois bem, nos termos do art. 101° do C.P.M.:

“1. São declarados perdidos a favor do Território os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a moral ou ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos declarados perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.

E em face do assim estatuído no transcrito art. 101° do C.P.M. que dizer?

Cremos que, nesta parte, tem a recorrente razão.

Com efeito, importa atentar que da factualidade dada como provada não se vislumbra nenhuma “matéria de facto” que permita considerar que o referido “apreendido” – HKD$49.000,00 e MOP5.000,00 – seja “produto de facto ilícito”, (ou melhor, do “crime” pela recorrente cometido), tão só havendo matéria que dá conta da (mera) “apreensão” efectuada, (cfr., “facto 85°” da acusação e do Acórdão do T.J.B. assim como do T.S.I.), sendo de notar que é a mesma “decisão da matéria de facto (provada)” totalmente omissa em relação à “origem” ou “natureza” das ditas “quantias”.

Não se nega – é verdade – que no “auto de apreensão” de fls. 394 – para o qual o aludido “facto 85°” remete – se diz que as ditas quantias apreendidas são “produto do crime”, pelo qual, (na altura), estava a ora recorrente indicada.

Porém, tal “consideração”, nos termos em que foi efectuada, na fase inicial do Inquérito, e sem que indicado esteja qualquer apoio probatório, apresenta-se-nos – evidentemente – “conclusiva” e – manifestamente – insuficiente para a decisão proferida e agora recorrida, pois que a “matéria” em questão devia ser objecto de adequada (e expressa) descrição na acusação para ser devidamente incluída na actividade probatória sujeita ao princípio do contraditório e posterior análise, ponderação e, específica e fundamentada pronúncia, (só assim se assegurando que em relação à mesma matéria pode o arguido exercer o seu “direito de defesa”).

No caso dos presentes autos, o certo é que assim não sucedeu, nada de relevante existindo em parte alguma da(s) decisão(ões) (do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância) sobre a referida “circunstância” (tão só) alegada aquando da apreensão efectuada…

Ora, como este Tribunal de Última Instância já teve oportunidade de considerar:

“Para que objectos possam ser declarados perdidos a favor da Região Administrativa Especial de Macau com fundamento no disposto no artigo 101.º, n.º 1, do Código Penal, é essencial que o tribunal dê como provados os factos que integram os pressupostos da aplicação desta norma, isto é, que os objectos serviram ou estavam destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este foram produzidos”; (cfr., v.g., o Ac. de 04.02.2016, Proc. n.° 84/2015).

Nesta conformidade, e na parte em questão, há que decidir no sentido da procedência do recurso, ordenando-se a devolução das ditas quantias à recorrente.

3.2 Quanto à “adequação da pena” aplicada à mencionada (1ª) arguida A, e relativamente aos “recursos do (2° e 4ª) arguidos B e D”, onde suscitam a mesma questão, vejamos.

Como se viu, são os (3) recorrentes de opinião que excessivas são as penas que lhes foram aplicadas, de 6 anos, 6 anos e 3 meses, e 6 anos de prisão, respectivamente.

Porém, tal pretensão apresenta-se-nos (igualmente) manifestamente improcedente.

Vejamos.

Assente estando a “decisão da matéria de facto”, (que por motivos também não termos para alterar, se tem como “definitivamente fixada”), e, da mesma se constatando que verificados estão todos os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime de “tráfico” pelo qual foram os referidos recorrentes condenados, cabe desde já notar que ao mesmo crime cabe a pena abstracta de 5 a 15 anos de prisão; (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016).

Ora, como sabido é, a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica a ponderação de vários aspectos.

Desde logo, há que ter presente que nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:

“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.

Por sua vez, nos termos do art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

De facto, tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

E como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020-I, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020 e de 23.06.2021, Proc. n.° 84/2021).

Por sua vez, nos termos do art. 18° da Lei n.° 17/2009:

“No caso de prática dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º e 11.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado ou se esforçar seriamente por consegui-lo, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, de organizações ou de associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou haver lugar à dispensa de pena”.

Em relação ao transcrito comando legal tem esta Instância vindo a entender que: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015, de 30.05.2018, Proc. n.° 34/2018, de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 30.10.2020, Proc. n.° 165/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020 e de 24.09.2021, Proc. n.° 66/2021).

E, assim, que dizer?

Ora, manifestamente improcedente é, desde já, qualquer “atenuação especial”, pois que não se podendo considerar o caso dos autos uma “situação especial”, (“extraordinária”, ou “excepcional”), de forma evidente se mostra de afirmar que preenchidos não estão os necessários pressupostos para tal efeito.

Por outro lado, e como igualmente temos afirmado, com o recurso não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020-I, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021, de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021-I e 84/2021 e de 24.09.2021, Proc. n.° 66/2021).

Com efeito, de forma repetida e firme temos vindo a entender que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021-I e 84/2021).

Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a selecção (adequada) dos elementos factuais elegíveis, a identificação (correcta) das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida e justa dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da(s) pena(s) aplicada(s); (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste Tribunal de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 03.06.2021, Proc. n.° 58/2021-I).

Aliás, como nota Figueiredo Dias, (in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo 1, pág. 84), “em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa”.

In casu, tendo-se presente a moldura penal em questão – 5 a 15 anos de prisão – e resultando da factualidade dada como provada que agiram os arguidos ora recorrentes com dolo directo e intenso, elevada sendo a sua ilicitude, e tendo-se igualmente presente as “necessidades de prevenção criminal” (deste tipo de crime), viável não é a pretendida redução das penas, que já se encontram (bem) próximas do seu limite mínimo, (a 1 ano/ 1 ano e 3 meses, estando a 9 anos/ 8 anos e 9 meses do seu limite máximo), o que não deixa de evidenciar (claramente) a solução que se mostra de adoptar.

*

Aqui chegados, mostra-se ainda adequada a nota seguinte.

Apresenta-se-nos inquestionável – especialmente, em processos como o presente, ou seja, em sede de “recurso em processo de natureza penal”, (em que atenta a “natureza pública” do Direito Penal e Processual Penal, mais que uma “justiça meramente formal”, importa é uma “efectiva e recta justiça material”) – que os Tribunais se não devem dispensar de apreciar (oficiosamente) do acerto e correcção da “decisão da matéria de facto” e do seu “enquadramento jurídico-penal”, (até mesmo porque, como sabido é, os vícios da decisão da matéria de facto do art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M. são de “conhecimento oficioso”, não se mostrando igualmente de considerar o julgador do recurso um mero “espectador”, vinculado à interpretação da Lei seguida pelo Tribunal recorrido).

Na verdade, a confirmação (consciente) de um erro nos referidos aspectos, seria, certamente, uma indesejável manifestação da dita “justiça formal” que, para além de constituir um vexame para os próprios Órgãos Judiciais, podia, em resultado de uma menos feliz apreciação e decisão assente em (involuntário) engano acabar por permitir exorbitantes e injustificadas vantagens, (ao arguido).

Assim, desde que oportuna e devidamente observado o contraditório, e, obviamente, sem prejuízo do integral e rigoroso respeito devido ao “princípio da proibição da reformatio in pejus” consagrado no art. 399° do C.P.P.M.), adequado se nos apresenta que, (sendo o caso), pode – e deve – o Tribunal de recurso proceder a uma “requalificação jurídico-penal” da factualidade tida como definitivamente adquirida.

In casu, resultando da “matéria de facto dada como provada” que a conduta dos (1ª e 2°) arguidos, ora recorrentes, A e B, integra a prática em co-autoria material, e em concurso real, de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” e 1 outro de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelos art°s 8°, n.° 1 e 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, (aliás, tal como acusados estavam), nesta conformidade devia ser aquela (re)qualificada.

Porém, considerando que a decisão da 1ª Instância que condenou os ditos recorrentes nos termos já vistos não foi objecto de recurso, mais não se mostra de dizer sobre esta questão.

Dest’arte, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam:
- conceder parcial provimento ao recurso da (1ª) arguida A (甲), ordenando-se a devolução das quantias que lhe foram apreendidas, mantendo-se, no restante, o Acórdão recorrido; e,
- negar provimento aos recursos dos (2° e 4ª) arguidos B (乙), e D (丁).

Pelo decaimento pagará a (1ª) arguida A a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs, suportando os (2° e 4ª) arguidos B e D, a taxa individual de justiça de 5 UCs.

Honorários aos Exmos. Defensores dos arguidos no montante de MOP$3.500,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 11 de Março de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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Proc. 8/2022 Pág. 21