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Processo n.º 13/2022 Data do acórdão: 2022-3-3
Assuntos:
– reclamação para conferência da decisão sumária do recurso
– não alteração do objecto do recurso
S U M Á R I O
Nos termos processuais legais, assistem à arguida o direito e o interesse processuais para reclamar da decisão sumária proferida pelo relator sobre o seu recurso, mas já não o direito de alterar o objecto do recurso que tinha interposto inicialmente da decisão final condenatória da Primeira Instância.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 13/2022
(Recurso em processo penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do relator)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.a arguida B (ora reclamante)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1305 a 1313 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-21-0146-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados:
– o 1.o arguido A pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de quatro crimes de auxílio, p. e p. pelo art.o 14º, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de dois anos e três meses de prisão por cada, e de um crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da mesma Lei, na pena de cinco meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas cinco penas, finalmente na pena única de quatro anos e nove meses de prisão;
– a 2.a arguida B pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de quatro crimes de auxílio do n.o 1 do art.o 14.o da mesma Lei, na pena de dois anos e seis meses de prisão de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas quatro penas, finalmente na pena única de cinco anos e seis meses de prisão.
Inconformados, vieram ambos os arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido alegou e peticionou, no essencial, na sua motivação a fls. 1334 a 1335 dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– na audiência de julgamento, confessou ele integralmente e sem reservas os factos;
– agiu ele com erro censurável sobre a ilicitude dos factos (se soubesse das sanções penais tão graves dos seus delitos praticados, com certeza não os teria praticado);
– daí que nos termos previstos no n.o 2 do art.o 16.o do Código Penal (CP), pede a nova determinação da medida da pena.
Já a 2.a arguida alegou, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 1347 a 1356 dos presentes autos, o seguinte:
– em face dos elementos probatórios dos autos, não existiu dolo de comparticipação criminosa entre ela e o 1.o arguido, não podendo ter sido ela co-autora material do 1.o arguido, pelo que o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), devendo ela passar a ser absolvida dos quatro crimes de auxílio por que vinha condenada em primeira instância, ou devendo as penas passarem a ser reduzidas a seu favor.
Respondeu a Digna Delegada do Procurador ao recurso do 1.o arguido a fls. 1358 a 1359 e ao recurso da 2.a arguida a fls. 1360 a 1365, no sentido de improcedência manifesta do recurso do 1.o arguido, e de não provimento do recurso da 2.a arguida.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 1380 a 1383, no sentido de manutenção do julgado.
Por decisão sumária proferida pelo relator a fls. 1385 a 1388v, por entender serem simples as questões a decidir, nos termos do art.o 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, foram julgados parcialmente providos os recursos dos 1.o e 2.a arguidos, com a consequente redução das penas únicas de prisão deles, de quatro anos e nove meses de prisão para três anos e três meses de prisão para o 1.o arguido, e de cinco anos e seis meses de prisão para três anos e três meses de prisão para a 2.a arguida, e foi decidido que os dois arguidos pagarão metade das custas dos respectivos recursos, e uma UC de taxa de justiça individual por decaimento parcial dos recursos, e foi fixada a quantia de duas mil e duzentas patacas de honorários a favor do Ex.mo Defensor Oficioso do 1.o arguido, a suportar a meias por este arguido e pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Notificada dessa decisão sumária, veio reclamar dela a 2.a arguida para conferência, através do petitório apresentado a fls. 1396 a 1398, aí preconizando o seguinte:
– não foi ela co-autora material da conduta delitual penal de auxílio à imigração clandestina por que vinha condenada;
– a decisão penal condenatória dela padece dos vícios das alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, para além do vício de falta de fundamentação ao arrepio do disposto no n.o 2 do art.o 355.o do CPP;
– mesmo que assim não se entendesse, na noite dos factos nem existiram sequer imigrantes clandestinos “auxiliados” por ela, daí que não se pode punir ela, por tentativa impossível;
– deve ser, pois, invalidada a decisão condenatória penal dela, ou absolvida ela;
– e seja como for, devem ser reduzidas as penas dela, com sempre pretendida suspensão, dentro do possível, da execução da pena única a aplicar a final.
À matéria da reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 1403 a 1404 inclusivamente pela manutenção da decisão sumária do relator.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 1305 a 1313, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A decisão sumária do relator tem por seguinte fundamentação:
<<[…] De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, debruça-se sobre o vício de erro notório na apreciação da prova, esgrimido a título principal pela 2.a arguida na respectiva motivação de recurso.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, sobretudo sensivelmente no meio da página 12 do texto do seu acórdão a fl. 1310v dos autos, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado o conteúdo dos diversos elementos probatórios analisados em global e de modo crítico. E o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, estando efectivamente já feita a prova suficiente dos factos descritos como provados na fundamentação fáctica do próprio aresto impugnado.
Portanto, ante a factualidade provada em primeira instância: a 2.a arguida, indubitavelmente, é co-autora de outrem (apesar de não ser co-autora do 1.o arguido) na questão de transportação marítima de quatro indivíduos imigrantes clandestinos dos autos para Macau.
E agora da questão da medida da pena, posta pelos dois recorrentes:
Cabe salientar, entretanto, que o 1.o arguido, a partir do momento em que confessou os factos acusados (incluindo os factos acusados referentes ao seu já conhecimento da ilicitude e da punibilidade dos factos delituais), jamais poderia invocar, como que à moda de venire contra factum proprium, o alegado erro censurável sobre a ilicitude dos factos dos seus crimes de auxílio.
O crime de auxílio (simples) à imigração clandestina previsto pelo n.o 1 do art.o 14.o da Lei n.o 6/2004 é punível com pena de prisão de dois a oito anos.
Ponderadas em conjunto todas as circunstâncias fácticas já descritas como provadas na fundamentação fáctica do acórdão recorrido, e especialmente a circunstância de as quatro pessoas imigrantes ilegais terem sido auxiliadas numa mesma leva para entrarem clandestinamente em Macau, afigura-se mais justo e equilibrado, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, passar a condenar:
– o 1.o arguido, na nova pena única de três anos e três meses de prisão, como resultante do novo cúmulo jurídico (dentro da moldura de dois anos e três meses a nove anos e cinco meses de prisão única) das cinco penas parcelares já fixadas criteriosamente, e portanto sem excesso nenhum, no acórdão recorrido;
– e a 2.a arguida, na nova pena única de três anos e três meses (*) de prisão, como resultante do novo cúmulo jurídico (dentro da moldura de dois anos e seis meses a dez anos de prisão única) das quatro penas parcelares já fixadas também criteriosamente, e portanto também sem excesso nenhum, na decisão recorrida.
Em suma, procedem parcialmente os recursos, sem mais indagação, por desnecessária ou prejudicada.>> (* Nota-se que há um lapso manifesto de escrita na 1.a linha do 2.o parágrafo da página 8 do texto da decisão sumária do relator a fl. 1388v dos autos, pois onde se lê aí “três anos e seis meses de prisão” deve ler-se “três anos e três meses de prisão”).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Nos termos processuais legais, assistem à 2.a arguida o direito e o interesse processuais para reclamar da decisão sumária do relator, mas já não o direito de alterar o objecto do recurso interposto inicialmente da decisão condenatória da Primeira Instância. Assim sendo, cabe ao presente Tribunal Colectivo de recurso, em conferência, decidir do objecto inicial do seu recurso, interposto do acórdão condenatório da Primeira Instância.
Na motivação do recurso da 2.a arguida, foi referida a questão do vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas a fundamentação aí concretamente tecida já tem a ver com a suficiência, ou não, de prova, pelo que estava ela mesmo a sindicar do juízo de valor do Tribunal a quo quanto às provas incriminadoras produzidas dos autos, reconduzindo-se, assim, todo o alegado na motivação materialmente ao âmbito do principalmente alegado vício de erro notório na apreciação da prova, vício este já conhecido e correctamente decidido como inexistente na decisão sumária do relator. Nota-se que ao decidir deste vício, julgou aí o relator, e correctamente, que já estava efectivamente “feita a prova suficiente dos factos descritos como provados na fundamentação fáctica do próprio aresto impugnado” (cfr. a parte final do último parágrafo da página 6 do texto da decisão sumária, a fl. 1387v dos autos).
Em face da matéria de facto dada por provada pela Primeira Instância (sem, pois, erro na apreciação da prova), a 2.a arguida é, como já se julgou nessa decisão sumária, “co-autora de outrem (apesar de não ser co-autora do 1.o arguido) na questão de transportação marítima de quatro indivíduos imigrantes clandestinos dos autos para Macau”.
Quanto à medida concreta da pena, também já se decidiu adequadamente na decisão sumária em causa, sem mais achega por desnecessária.
Há, pois, que julgar improcedente a reclamação da 2.a arguida.
Nota-se que mesmo que se abstraísse da posição jurídica acima afirmada no sentido de impossibilidade de alteração do objecto do recurso em sede da reclamação da decisão sumária do recurso, sempre se poderia julgar que o acórdão final da Primeira Instância já contém a fundamentação da decisão como tal exigida pelo n.o 2 do art.o 355.o do CPP, sendo certo que a já comprovada co-autoria material da 2.a arguida (com outrem, apesar de não com o 1.o arguido) na questão de transportação marítima de quatro indivíduos imigrantes clandestinos dos autos para Macau preclude logicamente a tese jurídica de “tentativa impossível” defendida por ela no petitório da reclamação, por um lado, e, por outro, a final condenação dela na pena única de três anos e três meses de prisão torna inviável, a priori, qualquer hipótese da suspensão da execução da pena, por inverificação, para já, do pressuposto formal postulado no n.o 1 do art.o 48.o do CP para efeitos de decisão sobre a suspensão da pena.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a reclamação da 2.a arguida, mantendo a reclamada decisão sumária do relator.
Para além das custas e taxa de justiça fixadas a seu cargo no dispositivo dessa decisão sumária, pagará ainda a 2.a arguida as custas do processado da sua reclamação, com três UC de taxa de justiça correspondente a este processado.
Macau, 3 de Março de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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