Processo nº 488/2021
Data do Acórdão: 17MAR2022
Assuntos:
Registo predial
Regime de bens
Rectificação judicial do registo
SUMÁRIO
1. Se a inexactidão do registo que carece de ser regularizada não resultar da desconformidade do registo com o título que serve de base ao registo, mas sim consiste na inexactidão proveniente do título, na medida em que alguns dos elementos constantes do título não correspondem à verdade, estamos perante a situação de deficiência dos títulos, a que se refere o artº 116º/1 do CRP.
2. Nos termos do artº 116º do Código do Registo Predial, se não for possível obter o consentimento de todos os interessados e a rectificação do registo implicar prejuízo a alguns sujeitos inscritos, a rectificação judicial será a única idónea para o efeito.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 488/2021
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
Mediante a petição dirigida ao Tribunal Judicial de Base, o Conservador do Registo Predial pediu ex oficio a rectificação judicial de um averbamento lavrado sobre a inscrição hipotecária nº 181832C, com fundamento na irregularidade do registo consistente no alegado erro quanto ao regime de bens de um dos sujeitos inscritos e na impossibilidade da rectificação por acordo dos interessados.
Pelo seguinte despacho a petição foi liminarmente indeferida:
本案中,物業登記局根據《物業登記法典》第121條第2款的規定向本法庭提起司法更正程序,藉此希望對物業標示編號XXX的房地產的獨立單位“E17”上的登錄編號181832C的第4項附註作出更正。
為此,登記官嘗試召集全體利害關係人進行會議,以便就更正事項達成協議,然而,於會議日期,因有部份利害關係人缺席,以致無法達成任可協議,因此,登記官為著促使相關登記之更正而提起本司法更正程序。
根據《物業登記法典》第114條第1款的規定,“不準確之登記及不適當繕立之登記,得由登記局局長主動更正,或應任何利害關係人(包括非為登錄權利人之利害關係人)之請求而更正”。
另根據同法典第119條的規定,“登記之更正得基於經登錄之全體利害關係人之同意或法院之裁判作出。”
又根據同法典第121條的規定﹕
“一、如並無作出上條第一款所指任一通知或未能獲得同意,則任何利害關係人均得聲請透過司法途徑作出更正。
二、屬在八日內不提出聲請之情況,如登記局局長認為登記不準確或不適當繕立,則應依職權促使作出更正;如登記局局長不認為登記不準確或不適當繕立,則應促使註銷上條第二款所指附註。”(底線由我們加上)
按照上述援引的各條條文登記的更正可以於三種情況下發生,第一,是由登記局依職權主動作出更正;第二,經利害關係人全體達成協議作出登正;第三,由法院的裁判作出司法更正。
現在,我們面對的情況是上述第二種更正的方式為不可行,而登記官又認同應作出登記之更正的情況,那麼,問題便是﹕是否必須透過司法途徑來作出相關更正?
除了應有尊重外,我們認為在登記官本人也認同有需要作出登記之更正的情況下,審查有關請求的職權是專屬於登記官,只有在欠缺全體利害關係人的協議,而登記之更正又未獲登記局認同時,方得提起司法更正程序。
上述理解是源於現行的澳門物業登記法典是傾向更正登記程序的非司法化,關於這一方面,我們認為值得轉錄VICENTE JOÃO MONTEIRO 的理解﹕“Quanto à matéria de rectificação de registos, optou o legislador por atribuir ao conservador poderes para proferir a decisão final no respectivo processo, mesmo quando estejam em causa direitos de terceiros e não exista acordo, salvaguardando sempre – como não podia deixar de ser – a possibilidade de recurso judicial por parte dos interessados.
Ao contrário do que acima se defendeu a propósito da justificação de direitos sobre imóveis, considera-se que é de acolher no Código de Macau a desjudicialização do processo de rectificação de registo, na medida em que se trata de matéria que, melhor do que ninguém, o conservador pode decidir, não só porque ele é o jurista mais bem qualificado em questões de registo, como porque é no arquivo da conservatória que em regra se encontram depositados os documentos que poderão esclarecer as dúvidas que conduzirão à decisão de considerar, ou não, a existência de erro ou de registo indevidamente efectuado, como ainda porque, a tendência actual em matéria de suprimento de deficiências é a de alargar os poderes (e os deveres) do conservador.
(…) Quer dizer, o regime que consideramos mais adequado é o de que a rectificação é sempre decidida pelo conservador, não havendo lugar à actual rectificação judicial prevista nos artigos 121º e segs. do Código. O tribunal só será chamado a pronunciar-se sobre a rectificação no âmbito de impugnação da decisão do conservador, sem perda, pois, de todas as garantias do interessados.”1。
換言之,登記官實際上是有職權自行就登記的錯誤或無效主動作出登記之更正,因為立法者認為其是就更正問題作出最終決定的最合適人士,只有當利害關係人之間無法達成有效協議,且登記官又不認同作出更正時,才有條件提出司法更正,並透過法院的裁判作出更正。
回到本案中,事實上,登記官在其更正的最初聲請中的請求部份已明確表明同意登記的更正,因此結論是法院根本毋須介入相關程序,又或欠缺以司法途徑解決相關問題的訴之利益。
有見及此,現決定不受理由物業登記局提出的司法更正程序,初端駁回有關聲請 – 見《民事訴訟法典》第394條第1款c項。
無訴訟費用。
作出登錄及通知。
Notificado, mediante o ofício a fls. 87 dos p. autos dirigido ao Tribunal a quo, veio o Conservador do Registo Predial pedir a reconsideração do pedido, tendo para o efeito reiterado a obrigatoriedade e necessidade da rectificação judicial.
Por despacho a fls. 82, o pedido não foi atendido pelo Tribunal a quo com fundamento no esgotamento do seu poder judicial.
No uso dos poderes que lhe foram conferidos pelo artº 125º/2 do CRP, o Ministério Público interpôs recurso jurisdicional desse do indeferimento liminar para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:
1. O presente rucurso tem por objecto a sentença do douto tribunal “ad quo” que indeferiu liminarmente o pedido da rectificação judicial por entendeu que é da competência do próprio Sr. Conservador a rectificação da rectificação do registo, faltando-lhe assim, o interesse processual.
2. De acordo com os artos 114 a 121 do CRP, a rectificação do registo pode ser através de uma das três modalidades, primeira, é a da rectificação oficiosa pelo próprio Sr. Conservador; a segunda é a de por acordo unânime de todos os interessados e a última é a de rectificação judicial.
3. O averbamento da alteração de regime de bens (de separação para o de comunhão de adquiridos) na escritura pública de compra e venda foi posterior à constituição da hipoteca a favor de A.
4. Há que distinguir os efeitos produzidos por tal averbamento da alteração na esfera jurídica dos registos da aquisição da fracção e da hipoteca voluntária. Para o primeiro caso, entendemos que o averbamento da alteração do regime de bens é um título suficiente pois intervêm no acto ambos os cônjuges, ou seja, compareceram a B com o C para proceder ao averbamento da alteração do regime de casamento, quanto ao segundo caso, com a ausência total de credor A, a alteração unilateral do regime de casamento do devedor C vai afectar o direito adquirido do próprio credor, pois, o objecto de garantia “E17” vai deixar de ser um bem próprio do C para passar a ser bem comum do casal, logo, este averbamento de alteração do regime de bens nunca pode fazer parte integrante da hipoteca nem altera-la automaticamente, pois, não se considera como um título suficiente para proceder à rectificação do próprio registo de hipoteca.
5. Face à alínea b) do artº 17 do CRP, o registo é nulo quando tiver sido lavrado com base em título insuficiente para a prova legal do facto registado, assim, o averbamento n.º 4 à inscrição hipotecária nº 181832C é nulo por ser indevidamente lavrado nos termos da alínea b) do artº 17 do CRP .
6. Logo, os registos indevidamente lavrados que enfermem de nulidade podem ser cancelados mediante consentimento de todos os interessados ou por decisão judicial em processo de rectificação nos termos do artº 117 do CRP.
7. Não sendo obtido o acordo referido no artº 117 e nº 1 do artº 120, ambos do CRP, parece que, quando se trate de registo sem ter qualquer base em título necessário ou suficiente tal como figurado na alínea b) do artº 17 do CRP , a única hipótese para a sua rectificação é a de a promover oficiosamente por via judicial nos termos do nº 2 do artº 121 do CRP, tal como observado pelo Sr. Conservador, cabendo assim à competência do Juiz “ad quo” apreciar a questão em causa.
8. Caso assim, a V. Exa, não se entenda, o averbamento n.º 4 à inscrição hipotecária nº 181832C pode ser configurado como deficiente nos termos do nº 1 do artº 19 e assim, ao abrigo do nº 1 do artº 116, ambos do CRP, pela sua inexactidão também só pode ser rectificado com o consentimento de todos os interessados ou por decisão judicial. Não se tendo conseguido corrigir essa inexactidão por acordo de todos os interessados, parece que podemos concluir que a rectificação judicial será a via correcta.
9. No Código de Registo Predial prevê-se registos que enfermem de outros tipos de inexactidão que resultam de desconformidade com o título, e que podem ser rectificados oficiosamente por Sr. Conservador, desde que a respectiva rectificação não prejudique direitos dos titulares inscritos nos termos da 1ª parte do nº 1 do artº 19, conjugado com o artº 115, ambos do CRP.
10. No entanto, parece que o caso em apreço não se enquadra neste tipo de inexactidão que caiba ao próprio Sr. Conservador rectificar oficiosamente.
11. A nosso ver, o Sr. Conservador andou bem com a sua promoção por via judicial para a rectificação em questão, pois é um registo nulo nos termos da alínea b) do artº 17, ou, um registo baseado num título deficiente ao abrigo n.º 1 do artº 19.º , ambos do CRP que, quando não obtido acordo, procede-se por via judicial.
12. Assim, a decisão recorrida violou a alínea b) do artº 17, conjugado com o artº 117, ou subsidiariamente, o nº 1 do artº 19, conjugado com o n.º 1 do artº 116, todos do CRP.
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Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, se requer que seja o presente recurso julgado integralmente procedente, e consequentemente seja a decisão recorrida revogada, seguindo-se os ulteriores termos de acordo com o artº 123 do CRP, conjugado com o nº 3 do artº 395 do CPC.
Cumprido o contraditório, o processo foi feito subir a esta segunda instância.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Conforme se vê nas conclusões do recurso, a única questão que nos cabe resolver é a de saber se a rectificação do registo nos termos requeridos carece de intervenção judicial?
Foi alegado na petição o seguinte:
1) Em 12/11/2014 sob a apresentação nº114 foi registada definitivamente hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada por E17 do prédio descrito sob o nºXXX, inscrita sob o nºXXX. Na escritura de constituição da hipoteca o hipotecante foi dado como casado em separação de bens (escritura de 12/11/2014).
2) Pela apresentação nº140 de 19/11/2014, foi efectuado registo provisório por natureza, nos termos da al.a) do nºl do art.86º do CRP, da acção de execução específica, sendo autores D, casado com E no regime da comunhão de adquiridos e réu (F) o titular inscrito, casado no regime da separação de bens;
3) Pela apresentação nº36 de 17/12/2014, foi efectuado averbamento de rectificação à inscrição de aquisição nºXXX, passando a constar que "o regime de bens do sujeito activo é "regime da comunhão de adquiridos" e não "regime da separação", com base rectificação feita em 21/11/2014 da escritura de compra e venda, outorgada no dia 3 de Abril de 2007, no Cartório Notarial do notário privado XXX, a folhas 145 do livro de notas para escrituras diversas nº255;
4) Pela apresentação nº229 de 16/06/2015 foi convertido em definitivo o registo da acção execução específica;
5) Pela apresentação nº137 de 05/04/2016 foi averbada sob o nºl à inscrição hipotecária nº181832C, a penhora, registada provisoriamente por dúvidas e por natureza, nos termos da al. a) do nº2 do art. 86º do CRP, por existir registo de aquisição a favor de pessoa diversa do executado;
6) Por força da apresentação nº107 de 20/11/2017, foi cancelada o registo desta penhora;
7) Pela apresentação nº52 de 15/03/2018, foi averbado sob o nº4 à inscrição hipotecária 181832C a rectificação quanto ao regime de bens do sujeito passivo passando a constar que "O regime de bens do sujeito passivo foi rectificado para o da comunhão de adquiridos, consequentemente a inscrição supra passa a ter carácter provisória por natureza, nos termos do artigo 86º, nºl al. d) do CRP, a qual já se encontra caduca pelo decurso da provisoriedade".
8) Finalmente, pela apresentação nº137 de 18/04/2018 foi efectuado registo definitivo de aquisição a favor de G, casado com H no regime da comunhão de adquiridos, com base em escritura de compra e venda, outorgada no dia 18 de Abril de 2018, no Cartório Notarial do notário privado, XXX, a folhas 118, do livro de notas para escrituras diversas nº123.
9) Em 07 de Novembro de 2018 foi interposto o recurso administrativo pela recorrente A pretendendo que o averbamento nº4 à inscrição hipotecária, não deveria ter sido declarado o seu carácter provisório e sua caducidade.
10) Ao recurso foi dado provimento no sentido de dever ser rectificado o registo, nos termos do artº 114º e seguintes do CRP, repondo-se a referida inscrição hipotecária como definitiva e alertando-se para os efeitos decorrentes da rectificação os eventuais terceiros prejudicados.
11) Em cumprimento da decisão do recurso, foi convocada conferência de todos os interessados referidos, tendo comparecido G e sua mulher H acima identificados, faltando os restantes interessados devidamente notificados.
……
Sintetizando a causa de pedir alegada, a invocada inexactidão que carece de ser regularizada não resulta da desconformidade com o título que serve de base ao registo, mas sim consiste na inexactidão proveniente do título, na medida em que o regime de bens de alguns dos sujeitos indicado num dos títulos não corresponde à verdade.
O que integra-se na situação de inexactidões provenientes de deficiência dos títulos prevista no artº 116º/1 do CRP.
Diz o artº 116º do CRP que:
1. As inexactidões provenientes de deficiência dos títulos só podem ser rectificadas com o consentimento de todos os interessados ou por decisão judicial, desde que as deficiências não sejam causa de nulidade.
2. A rectificação que não envolva prejuízo de titulares inscritos, desde que baseada em documento bastante, pode ser feita a pedido de qualquer interessado, sem necessidade do consentimento dos restantes interessados.
Nos termos do ai preceituado, tendo em conta a alegada impossibilidade de obtenção do consentimento de todos os interessados e a susceptibilidade de a rectificação nos termos requeridos gerar prejuízo a alguns sujeitos inscritos, não resta outra alternativa que não seja provocar a intervenção judicial.
Assim sendo, não é de manter o despacho recorrido.
Resumindo e concluindo:
1. Se a inexactidão do registo que carece de ser regularizada não resultar da desconformidade do registo com o título que serve de base ao registo, mas sim consiste na inexactidão proveniente do título, na medida em que alguns dos elementos constantes do título não correspondem à verdade, estamos perante a situação de deficiência dos títulos, a que se refere o artº 116º/1 do CRP.
2. Nos termos do artº 116º do Código do Registo Predial, se não for possível obter o consentimento de todos os interessados e a rectificação do registo implicar prejuízo a alguns sujeitos inscritos, a rectificação judicial será a única idónea para o efeito.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e determinando a baixa dos autos ao TJB para o prosseguimento da acção.
Custas do recurso pelos interessados requeridos G e H.
Registe e notifique.
RAEM, 17MAR2022
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
1 參見VICENTE JOÃO MONTEIRO 著作《CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL DE MACAU》,法律及司法培訓中心出版,2016年版,第546頁和548頁。
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Ac. 488/2021-11