Processo n.º 84/2022 Data do acórdão: 2022-3-31
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal a quo, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse tribunal, não tendo a decisão condenatória recorrida padecido do vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 84/2022
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do relator)
Recorrentes:
2.a arguida A (ora reclamante)
3.a arguida B
Assistente recorrida:
Associação dos Conterrâneos de C de Macau (澳門C同鄉會)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1830 a 1845 do Processo Comum Colectivo n.o CR1-20-0220-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), ficaram condenados:
– o 1.o arguido D, a 2.a arguida A e a 3.a arguida B, como co-autores materiais de um crime consumado de falsificação de documento (concretamente, de uma acta de deliberação da Associação dos Conterrâneos de C de Macau (澳門C同鄉會)), p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal (CP), em pena igual de nove meses de prisão;
– o 1.o arguido, a 2.a arguida e a 3.a arguida, como co-autores materiais de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor (concretamente, da escritura de compra e venda da fracção autónoma sede da dita Associação), p. e p. pelos art.os 245.o e 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, em pena igual de um ano e seis meses de prisão;
– o 1.o arguido, a 2.a arguida e a 3.a arguida, como co-autores materiais de dois crimes consumados de burla em valor consideralmente elevado (concreta e respectivamente, burla do direito de propriedade daquela fracção, e burla da quantia pecuniária dada pelo Banco da China a título de empréstimo), p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do CP, em pena igual de três anos e três meses de prisão por cada um destes crimes;
– e, em cúmulo jurídico, as 2.a e 3.a arguidas igualmente em cinco anos de prisão única;
– e o 1.o arguido, ainda como autor material de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor (concretamente, de um cheque), p. e p. pelos art.os 245.o e 244.o, n.o 1, alínea a), do CP, em um ano e seis meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico, o 1.o arguido em sete anos e seis meses de prisão única;
– e todos os três arguidos condenados a pagar solidariamente à assistente e demandante civil Associação dos Conterrâneos de C de Macau a quantia indemnizatória de cem mil patacas, com juros a contar da data desse próprio acórdão até integral e efectivo pagamento.
Vieram as duas arguidas interpor recurso para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou a 2.a arguida A, no essencial, na motivação de fls. 1864 a 1883 dos presentes autos correspondentes, o seguinte, para pedir a invalidação da decisão condenatória penal e civil da Primeira Instância:
– a decisão ora recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), sobretudo devido à falta de prova objectiva e forte, nos autos, sobre os seguintes três pontos essenciais: 1) o dolo dela em falsificar em conjunto com o 1.o arguido a acta da deliberação da Associação em causa, 2) o conhecimento dela, aquando da assinatura da escritura de compra e venda, da conduta do 1.o arguido de falsificar essa acta da deliberação, e 3) o conhecimento dela, aquando da assinatura da escritura, do conteúdo da acta da deliberação;
– deve ela passar a ser absolvida dos quatro crimes por que vinha condenada em primeira instância, quer por inexistência da participação dela na falsificação do conteúdo falso da acta da deliberação ou por desconhecimento dela do conteúdo falso da acta, quer por inexistência do dolo por sua parte em burlar o direito de propriedade da fracção autónoma sede da Associação ou em burlar o Banco da China;
– e a decisão condenatória civil no pagamento de indemnização de cem mil patacas de danos morais (com juros legais) também tem que ser revogada, mormente pelo facto de a lesada Associação dos autos ser uma pessoa colectiva, e não pessoa singular;
– e deve a Associação passar a ser condenada como litigante de má fé (por esta ter enxertado no presente processo penal o pedido de indemnização de todas as custas, despesas de honorários e diversos encargos, etc., pagos ou a incorrer na acção cível intentada pela mesma em separado, apesar de ter formulado idêntica pretensão nessa acção sseparada), com condenação em pagar oitenta mil patacas de honorários de advogado por causa do pedido cível enxertado por essa Associação.
Enquanto a 3.a arguida B, na motivação 1891 a 1900 dos presentes autos, alegou, no essencial, e rogou, o seguinte:
– a decisão condenatória dela enferme dos vícios das alíneas a) e c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, por falta de prova acerca de qualquer acordo ajustado entre ela e os outros dois arguidos para enganar outrem com astúcia, nem sobre a existência de decisão conjunta entre ela e esses outros dois arguidos sobre o processo de prática dos factos criminais, por um lado, e, por outro, devido à regra da experiência segundo a qual na relação de concessão de empréstimo bancário, a capacidade de amortização do empréstimo pela pessoa mutuária carece de ponderação e autorização pelo banco mutuante, sendo certo que no caso dos autos o Banco da China até exigiu a garantia prestada pela própria pessoa da 3.a arguida, para efeitos de concessão de empréstimo;
– fosse como fosse, as penas aplicadas a ela ora recorrente em dose excessiva violaram o disposto nos art.os 40.o e 65.o do CP, devendo ser feita nova medida da pena em seu favor, que culmiraria em aplicação, a final, de pena de prisão inferior a três anos, com sempre também almejada suspensão da execução da pena.
Aos recursos das 2.a e 3.a arguidas, respondeu a Digna Delegada do Procurador respectivamente a fls. 1919 a 1930 e a fls. 1931 a 1942 dos autos, no sentido de não provimento dos mesmos.
Ao recurso da 3.a arguida, respondeu a assistente Associação a fls. 1984 a 1996 dos autos, pugnando pela improcedência do mesmo. A mesma assistente também respondeu ao recurso da 2.a arguida, defendendo, a fls. 2000 a 2020, a improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 2059 a 2064, opinando pela improcedência dos recursos.
Após feito o exame preliminar dos autos, foi proferida a seguinte decisão do relator de fls. 2066 a 2073v:
– a) julgar não admissível o recurso da 2.a arguida A na parte referente ao seu pedido de condenação da assistente Associação dos Conterrâneos de C de Macau em pagar-lhe indemnização por litigância de má fé, com custas nesta questão incidental recursória pela 2.a arguida, com duas UC de taxa de justiça respectiva, além das custas deste pedido de condenação de litigância de má fé na Primeira Instância tudo a cargo da 2.a arguida;
– b) julgar sumariamente provido o recurso da 2.a arguida (ainda que por fundamentação jurídica diversa da alegada na sua motivação) na parte concernente à peticionada absolvição da sua obrigação civil solidária de pagamento de cem mil patacas de indemnização de danos morais à dita demandante Associação, decisão absolutória civil esta a aproveitar também aos também demandados arguido D e 3.a arguida B, com custas do pedido cível então enxertado pela demandante Associação em ambas as duas Instâncias tudo a cargo desta;
– e c) rejeitar a parte penal dos recursos das 2.a e 3.a arguidas, devido à respectiva manifesta improcedência, com custas da parte penal dos recursos respectivamente a cargo delas, com três UC de taxa de justiça para a 2.a arguida e quatro UC de taxa de justiça para a 3.a arguida, e quatro UC de sanção para a 2.a arguida e cinco UC da sanção para a 3.a arguida, pela rejeição da parte penal dos recursos, fixando-se em duas mil e trezentas patacas os honorários da Ex.ma Defensora da 3.a arguida, a suportar por esta.
Notificada, veio a 2.a arguida A reclamar para conferência da decisão do relator que lhe tinha rejeitado a parte penal do seu recurso por manifestamente improcedente, alegando, no essencial, no seu petitório de fls. 2080 a 2083v, a montante, que nessa decisão de rejeição não tinha sido cumprido o dever judicial de fundamentação da decisão, e a jusante, que sobre o mérito do seu recurso, sempre deveria ser corrigido o erro notório na apreciação da prova cometido pelo Tribunal recorrido, com almejada absolvição dela de todos os crimes em causa.
Sobre a matéria dessa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 2085 a 2085v, no sentido de improcedência da reclamação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 1830 a 1845, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e jurídica) se dá por aqui integralmente reproduzido.
Na contestação cível apresentada pela 2.a arguida em 17 de Setembro de 2020 (a fls. 1336 a 1343v) ao pedido cível enxertado pela assistente Associação em 10 de Junho de 2020 (a fls. 1177 a 1193, em original), foi pedida a consideração desta como litigante de má fé nos termos aplicáveis do Código de Processo Civil (CPC), com condenação da mesma em multa e no pagamento, à própria 2.a arguida, de oitenta mil patacas de indemnização de despesas de honorários de advogado.
No acórdão final da Primeira Instância, foi julgado procedente o pedido cível da assistente apenas na parte respeitante aos danos morais, com fixação judicial do respectivo montante indemnizatório em cem mil patacas somente, para além de ter sido julgado totalmente improcedente aquele pedido, da 2.a arguida, da condenação da assistente demandante como litigante de má fé.
Em sintonia com a matéria fáctica dada por provada nesse acórdão, no respeitante ao pedido cível enxertado pela assistente Associação ao ora subjacente processo penal:
Os actos criminais dos três réus (arguidos demandados) privaram a assistente do direito de propriedade da própria sede social (sede esta com enorme valor simbólico para a própria Associação), e o facto de a Associação ter sido burlada no direito de propriedade da sua sede acarretou impacto à boa imagem e reputação da Associação junto da sociedade, boa imagem e reputação estas que ficaram feridas pelos actos dos três réus (cfr. o teor da página 15 do acórdão recorrido, a fl. 1837).
A decisão do relator, proferida a fls. 2066 a 2073v, tem por fundamentação o seguinte teor:
– <<[…] A nível do Direito, é, desde já, de julgar, à luz da competência prevista no art.o 407.o, n.o 6, alínea a), do CPP, não admissível o recurso da 2.a arguida no tocante ao seu pedido de condenação da assistente demandante Associação em pagar-lhe, por litigância de má fé, oitenta mil patacas de indemnização de honorários de advogado, por seguintes razões:
– enquanto a decisão condenatória da litigância de má fé é sempre susceptível de recurso, em um grau, independentemente do valor da causa e da sucumbência (cfr. a regra especial do art.o 385.o, n.o 3, do CPC), a decisão absolutória da litigância de má fé, para ser recorrível, já deve satisfazer, a priori, o requisito legal, exigido em termos gerais pelo art.o 583.o, n.o 1, parte inicial, do CPC, de o valor da causa da controvertida litigânca de má fé ser superior à alçada do tribunal decisor em primeira instância;
– a alçada do TJB na matéria civil já é de cem mil patacas (cfr. a vigente norma do art.o 18.o, n.o 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária da Região Administrativa Especial de Macau, com aplicação ao presente subjacente processo, por comando do art.o 16.o, n.o 2, da Lei de 4/2019, de 4 de Março, atenta a data da instauração, nos presentes autos penais, do pedido cível enxertado pela assistente (cfr., neste sentido, também o acórdão do TSI, de 2 de Abril de 2020, do Processo n.o 2/2020), tendo o pedido de condenação de litigante de má fé sido concretamente formulado no âmbito daquele enxerto cível);
– o valor da causa no pedido de condenação por litigância de má fé, formulado pela 2.a arguida contra a assistente demandante, não é superior a cem mil patacas (já que esta arguida insistiu, no seu recurso, no pedido, então formulado na contestação ao pedido cível enxertado pela Associação, de condenação desta por litigância de má fé, no pagamento de oitenta mil patacas de despesas de honorários de advogado, pedido de condenação este que tinha sido julgado como integralmente improcedente no acórdão ora recorrido, segmento da decisão judicial este que não deixa de ser uma decisão de natureza materialmente civil, na óptica mesmo do art.o 73.o do CPP, apesar de se encontrar proferida no seio de um processo penal), pelo que há que considerar não admissível o recurso da 2.a arguida nesta parte materialmente civil, sendo, aliás, de entender que a regra do n.o 2 do art.o 390.o do CPP, que se ocupa do valor da sucumbência, não é susceptível de tornar recorrível uma decisão materialmente civil inicialmente irrecorrível por comando daquela norma do art.o 583.o, n.o 1, parte inicial, do CPC, sob pena de óbvia disparidade, ao arrepio do factor mais importante de “unidade do sistema jurídico” na tarefa de hermenêutica jurídica de que se fala no art.o 8.o, n.o 1, do Código Civil (CC), no tratamento da questão jurídica de recorribilidade de decisões materialmente civis, disparidade esta não justificável pelo fim visado pelo princípio da adesão do art.o 60.o do CP.
Outrossim, é de julgar sumariamente do recurso da 2.a arguida na parte concernente ao pedido, materialmente civil, de absolvição da sua obrigação solidária de pagamento de cem mil patacas de indemnização de danos morais à demandante Associação, por ser simples a questão a decidir, nos termos dos art.os 621.o, n.o 2, e 619.o, n.o 1, alínea g), do CPC, ex vi do art.o 4.o do CPP, a despeito de ela ter invocado vários argumentos na sua motivação para sustentar essa rogada absolvição civil.
Observa-se que o Tribunal recorrido condenou a 2.a arguida e também o 1.o arguido e a 3.a arguida no pagamento solidário, à assistente e demandante Associação, da quantia de cem mil patacas (com juros legais), destinada à reparação dos danos morais sofridos por esta, por ficar provado que: os actos criminais dos três réus privaram a assistente do direito de propriedade da própria sede social (sede esta com enorme valor simbólico para a própria Associação), e o facto de a Associação ter sido burlada no direito de propriedade da sua sede acarretou impacto à boa imagem e reputação da Associação junto da sociedade, boa imagem e reputação estas que ficaram feridas pelos actos dos três réus.
Entretanto, em termos abstractos ora falando (com subtracção, pois, da indagação, a fazer em seguida, do objecto penal dos recursos interpostos pelas duas arguidas), o dano provocado pela conduta criminosa descrita na fundamentação fáctica do acórdão recorrido como praticada pelos três arguidos contra a assistente Associação foi apenas de cariz patrimonial (por, no fundo, na parte respeitante a esta assistente, estar em causa a burla do seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma sede da própria Associação, conduta de burla esta – ainda que conseguida mormente através da falsificação de uma acta de deliberação e da falsificação da escritura de compra e venda da mesma fracção – que só pôde ferir o património da Associação), pelo que a indemnização do dano patrimonial (ou de natureza patrimonial) não deve nem pode ser feita nos termos do art.o 489.o, n.os 1 e 3, do CC (artigo este que tem por mira somente danos não patrimoniais propriamente ditos), mas, sim, nos termos próprios dos art.os 556.o, 557.o, 558.o e 560.o do CC.
Assim sendo, e por fundamentação acima, distinta da alegada pela 2.a arguida na motivação do recurso, é de passar a absolver esta arguida da quantia indemnizatória civil de cem mil patacas (com juros legais) por que vinha condenada solidariamente com o 1.o arguido e a 3.a arguida no acórdão recorrido, decisão absolutória civil esta a aproveitar também a estes outros dois arguidos.
Por fim, da parte penal dos recursos interpostos pelas duas arguidas:
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Como cerne dos recursos das duas arguidas, cumpre conhecer agora do vício de erro notório na apreciação da prova assacado por elas à decisão final condenatória penal da Primeira Instância (sendo de notar que a argumentação concretamente tecida pela 3.a arguida para suportar a sua tese de existência, no aresto recorrido, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com o sentido e alcance deste vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim materialmente com a alegada falta ou insuficiência da prova dos factos, no âmbito daquele vício, também invocado por ela).
Pois bem, sobre o assim esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, é de relembrar, desde já, os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador, que, aliás, já explicou congruente e convincentemente, sobretudo a partir da 4.a linha da página 18 do texto do seu acórdão (a fl. 1838v) até ao segundo parágrafo, inclusive, da página seguinte (a fl. 1839), as razões sustentadoras da sua livre convicção sobre os factos penais nomeadamente no respeitante às duas arguidas.
De frisar que não pode proceder a tese da 3.a arguida no tocante ao argumento ligado à capacidade de amortização do empréstimo bancário. É que se bem que o empréstimo dos autos tenha sido concedido pelo Banco da China contra a hipoteca sobre a fracção autónoma sede da Associação e também com a garantia prestada pela própria pessoa da 3.a arguida, o certo é que se esse banco tivesse sabido do carácter ilícito da aquisição, pela 2.a arguida, do direito de propriedade dessa fracção autónoma, seguramente, à luz da regra da experiência, não iria ter decidido em conceder empréstimo à 2.a arguida contra a hipoteca, por não ser ela própria o legítimo dono da fracção, e, como tal, sem legitimidade para hipotecar a favor do banco.
Improcedem, pois, os recursos das duas arguidas na parte em que esgrimiram materialmente o vício de erro notório na apreciação da prova à decisão condenatória recorrida.
Resta ver a questão subsidiariamente posta pela 3.a arguida no seu recurso, relacionada com a problemática da medida concreta da pena:
Vistas todas as circunstâncias fácticas já dadas por apuradas e descritas no acórdão recorrido com pertinência à medida concreta – aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, com consideração também das inegáveis exigências da prevenção geral – das penas dos três crimes por que vinha condenada a 3.a arguida em primeira instância, dentro das respectivas molduras penais aplicáveis de prisão, é patente que todas as três penas parcelares de prisão aplicadas à 3.a arguida no aresto recorrido já não admitem mais margem para a pretendida redução.
E ponderados, para os efeitos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, em conjunto os factos provados e a personalidade da 3.a arguida reflectida na prátida dos mesmos, é também evidente que nem é excessiva a pena única de cinco anos de prisão achada finalmente pelo Tribunal recorrido para ela.
Condenada a 3.a arguida em cinco anos de prisão única, é inviável a suspensão da execução da pena, por inverificação, desde logo, do requisito formal postulado no n.o 1 do art.o 48.o do CP, de ser a pena de prisão concretamente aplicada não superior a três anos.
Em suma, improcedem manifestamente os recursos das duas arguidas no respectivo objecto penal, sem mais indagação por desnecessária, até também pelo espírito da norma do n.o 2 do art.o 410.o do CPP.>>
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio a 2.a arguida reclamar para conferência da decisão tomada pelo relator pela qual foi rejeitada a parte penal do seu recurso, por manifestamente improcedente.
Imputou ela a esta parte da decisão do relator a falta de fundamentação da própria decisão. Mas, não tem ela razão.
É que o seguinte teor nomeadamente constante do ponto 3 do texto da decisão do relator já contém a fundamentação da decisão de rejeição da parte penal do recurso da 2.a arguida ora reclamante:
– <<[…] da parte penal dos recursos interpostos pelas duas arguidas:
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Como cerne dos recursos das duas arguidas, cumpre conhecer agora do vício de erro notório na apreciação da prova assacado por elas à decisão final condenatória penal da Primeira Instância (sendo de notar que a argumentação concretamente tecida pela 3.a arguida para suportar a sua tese de existência, no aresto recorrido, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com o sentido e alcance deste vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim materialmente com a alegada falta ou insuficiência da prova dos factos, no âmbito daquele vício, também invocado por ela).
Pois bem, sobre o assim esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, é de relembrar, desde já, os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador, que, aliás, já explicou congruente e convincentemente, sobretudo a partir da 4.a linha da página 18 do texto do seu acórdão (a fl. 1838v) até ao segundo parágrafo, inclusive, da página seguinte (a fl. 1839), as razões sustentadoras da sua livre convicção sobre os factos penais nomeadamente no respeitante às duas arguidas.
De frisar que não pode proceder a tese da 3.a arguida no tocante ao argumento ligado à capacidade de amortização do empréstimo bancário. É que se bem que o empréstimo dos autos tenha sido concedido pelo Banco da China contra a hipoteca sobre a fracção autónoma sede da Associação e também com a garantia prestada pela própria pessoa da 3.a arguida, o certo é que se esse banco tivesse sabido do carácter ilícito da aquisição, pela 2.a arguida, do direito de propriedade dessa fracção autónoma, seguramente, à luz da regra da experiência, não iria ter decidido em conceder empréstimo à 2.a arguida contra a hipoteca, por não ser ela própria o legítimo dono da fracção, e, como tal, sem legitimidade para hipotecar a favor do banco.
Improcedem, pois, os recursos das duas arguidas na parte em que esgrimiram materialmente o vício de erro notório na apreciação da prova à decisão condenatória recorrida.
[…]
Em suma, improcedem manifestamente os recursos das duas arguidas no respectivo objecto penal, sem mais indagação por desnecessária, até também pelo espírito da norma do n.o 2 do art.o 410.o do CPP.>>
De salientar que tal como já se afirmou na parte inicial do ponto 3 do mesmo texto decisório do relator, <>.
No caso concreto dos autos, a propósito do vício de erro notório na apreciação da prova levantado na motivação do recurso da 2.a arguida para sustentar o seu pedido de absolvição total, é de confirmar o juízo de valor já emitido pelo relator na decisão ora sob reclamação, porquanto essa decisão estar conforme com todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão condenatória penal da Primeira Instância e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação da própria decisão do relator.
Daí que há que manter, nos seus precisos termos, a decisão do relator, emitida em sede de exame preliminar dos autos, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação da 2.a arguida da decisão do relator que lhe rejeitou a parte penal do seu recurso por manifestamente improcedente.
Custas da reclamação pela 2.a arguida, com quatro UC de taxa de justiça.
Notifique a presente decisão também ao 1.o arguido.
Macau, 31 de Março de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
(本人同意本案上訴之決定。由於上訴人沒有提出定罪量刑問題,故不屬上訴審理範圍。)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(com a declaração de voto em seguinte: em primeiro lugar, entendo que é do conhecimento oficioso a qualificação jurídica dos factos, e em seguida, por serem os crimes de falsifico de documento crimes instrumentos, deveriam ser absorvidos pelo crime fim de burla.)
Processo n.º 84/2022 (reclamação para conferência) Pág. 1/23