Processo n.º 62/2022
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 07 de Abril de 2022
ASSUNTOS:
- Extinção da instância por não haver bens comuns para separar
SUMÁRIO:
Quando, nos termos do art. 970° do CPC, o juiz remete as partes para os meios comuns para resolver a questão da titularidade dos bens em causa, e, numa outra acção em que foi sentenciado que os bens são bens próprios do Requerente (marido da executada), decisão esta que transitou em julgado, e depois o juiz do processo do inventário veio a declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente por não haver bens para separar, esta decisão não merece censura por não violar nenhum preceito legal.
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 62/2022
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 07 de Abril de 2022
Recorrente : A Sociedade Unipessoal Limitada (A一人有限公司) (Exequente)
Objecto do Recurso : Despacho que declarou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide (宣告訴訟程序基於嗣後出現進行訴訟屬不可能之情況而消滅的批示)
Requerente : B (cônjuge da executada)
Requerida : C (executada)
Credor Reclamante : Banco da X, Limitada (X銀行股份有限公司)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A Sociedade Unipessoal Limitada (A一人有限公司), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando do despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, datado de 09/07/2021 (fls. 494), dela veio, em 06/10/2021, interpor recurso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 503 a 520, tendo formulado as seguintes conclusões:
a. O presente recurso tem por objecto o despacho de fls. 494 do presente apenso, que reconheceu os bens penhorados à ordem dos autos principais como bens próprios do requerente e declarou extinto o presente apenso de separação de bens, por inutilidade superveniente da lide.
b. Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com a referida decisão por entender que a mesma enferma de erro na aplicação da matéria do Direito.
c. A decisão recorrida surge como o culminar do procedimento de separação de bens requerido pelo cônjuge da executada e ora recorrido, cuja finalidade seria para separar os bens comuns do casal, mas que no final serviu para "sonegar" os mesmos do pagamento das dívidas à exequente e ora recorrente, conforme facilmente ressalta da mera consulta dos presentes autos.
d. Dispõe o art. 709°, nº 2, do CPC que, tendo sido movida execução contra um dos cônjuges, pode o exequente nomear à penhora bens comuns do casal, desde que requeira a citação do cônjuge não executado para, se assim o pretender, promover a separação dos bens.
e. Citado para o efeito, o ora recorrido veio requerer a separação dos bens comuns do casal, processo ao qual se aplica o regime da partilha, nos termos do art. 1030° do CPC, e cuja finalidade de permitir cessar a comunhão patrimonial, para que a execução prossiga apenas contra o património que couber ao cônjuge executado, salvaguardando assim a garantia patrimonial dos credores.
f. Porém, ao invés de pedir a separação desses bens, como resulta do seu requerimento inicial, o cônjuge da executada e aqui recorrido veio requerer ao Tribunal que confirmasse que todos os bens são, afinal, bens próprios seus, e assim que fosse extinto o apenso de separação de bens.
g. Não tendo visto a sua pretensão imediatamente satisfeita, o cabeça-de-casal requereu a suspensão do presente apenso para que lhe fosse concedido prazo de 30 dias para intentar acção judicial com a finalidade de demonstrar que os bens penhorados são bens próprios seus, ao abrigo do art. 970°, nº 1, do CPC,
h. Na sequência do acórdão do TUI notificado em 03.12.2019, o qual reverteu as decisões de indeferimento anteriores, o TJB decretou a suspensão da instância e ordenou ao requerente propor, em 30 dias, acção tendente a demonstrar que os bens penhorados são seus bens próprios, conforme despacho notificado em 25.03.2020.
i. Sucede que, em 04.01.2019 - ainda antes do referido despacho de suspensão – o aqui recorrido B já havia intentado acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO, pedindo para ser declarado como único titular dos saldos bancários constantes das contas nº ... e nº ..., abertas no Banco da X (Sucursal de Macau) por se tratarem de seus bens próprios, estando assim excluídos da comunhão conjugal; e único proprietário da fracção autónoma por "D5", do prédio urbano nº ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., e da fracção autónoma designada por "P17" do prédio urbano localizado na Estrada dos..., nº..., por se tratarem de bens próprios, estando, como tal, excluídos da comunhão conjugal.
j. A referida acção transitou em julgado em 16.03.2020, dando provimento ao pedido do autor.
k. Examinando com atenção o art. 970°, nº 1, do CPC, conclui-se que o juiz remete as partes para os meios comuns apenas e se entender que as questões suscitadas na pendência do inventário não podem ser decididas no próprio processo e depois de determinar a suspensão da instância.
l. Deste preceito decorre, portanto que a acção para determinação da titularidade dos bens encontra-se dependente da decisão de suspensão da instância e remessa das partes, ou seja, estando em causa matéria discutida nos autos de inventário, a mesma só pode ser apreciada noutra acção se o tribunal para ela remeter.
m. De facto, o juiz apenas suspende a instância e remete as partes para os meios comuns se entender que as questões suscitadas na pendência do inventário não podem ser decididas no próprio processo e que resulta numa relação de prejudicialidade - quando o conhecimento do mérito da acção está dependente da prévia resolução de uma outra questão que, segundo uma estrutura lógica ou encadeamento lógico da sentença, carece de prévia decisão, portanto.
n. Nesta situação, a suspensão da instância por determinação do tribunal tem respaldo no art. 223°, nº 1 e 220°, nº 1, al. d), ambos do CPC, o que se justifica a fim de evitar a ocorrência de litispendência ou de caso julgado - arts. 416° e 417°, ambos do CPC.
o. Nos presentes autos, verifica-se que o facto de o cabeça-de-casal ter requerido a suspensão da instância e a fixação de um prazo de 30 dias para intentar a acção em separado - o que só por si demonstra que não tinha nenhuma pendente nem pretendia vir a propor antes de ser decretada a suspensão da instância - não o deteve de intentar desde logo a acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO, em 04.01.2019, com o mesmo pedido, a mesma causa de pedir e as mesmas partes em conflito nos presentes autos.
p. E não obstante as duas acções terem a mesma finalidade e sido tramitadas em simultâneo, o recorrido nunca manifestou, perante os autos de execução e respectivos apensos e recursos, que a acção que se propunha intentar já estava, afinal, a correr os seus trâmites, sonegando deliberadamente tal informação às várias instâncias, que poderia ser essencial para a boa decisão da causa!
q. Fica patente que a sentença proferida no processo nº CV2-19-0006-CAO não é prejudicial nem pode constituir efeito de caso julgado nos presentes autos de execução e separação de bens, e como tal não poderá ter qualquer efeito nos mesmos, visto que não foi intentada na sequência da suspensão da instância e remessa das partes para os meios comuns, o que somente veio a suceder por despacho notificado em 25.03.2020.
r. E nem se diga o contrário, com fundamento no princípio da economia processual, porquanto o ora recorrido acabou por nem precisar que fosse suspensa a instância de separação de bens, porquanto ainda antes de ver a decisão final do TUI, já a acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO tinha transitado em julgado, pelo que há muito tinha perdido o interesse nesse recurso.
s. Apesar de ter requerido um prazo de 30 dias para intentar a acção autónoma, constata-se agora que o cabeça-de-casal optou por não esperar pela decisão, o que constitui uma óbvia desistência do pedido, devendo a instância de separação de bens ser considerada extinta de imediato, por desistência do pedido - art. 229°, al. d) e art. 235°, nº 1, ambos do CPC. - mantendo-se a douta decisão proferida pelo douto despacho deste tribunal de 17.04.2018.
t. Assim, não obstante a decisão proferida no processo nº CV2-19-0006-CAO, que declarou o aqui cabeça-de-casal como único proprietário da fracção autónoma para habitação designada por “D5” do prédio urbano sito na Estrada… nº ..., descrito na CRP sob o nº ..., e da fracção autónoma para habitação designada por “P17” do 17º andar "P" do prédio urbano sito na Estrada dos..., nº..., descrito na CRP sob o nº ..., é entendimento da ora recorrente que a mesma não produz efeitos nos presentes autos nem em relação à aqui exequente, nos termos já expostos quer por não se verificar uma situação de prejudicialidade e de efeito de caso julgado, quer por ocorrer desistência do pedido de suspensão da presente instância, devendo as penhoras decretadas nestes autos de execução ser mantidas, o que desde já se requer.
u. Deve atender-se ainda que qualquer discussão em torno da titularidade sobre os bens comuns dos cônjuges - como pretende o recorrente - também seria manifestamente irrelevante no âmbito do processo de separação de bens em causa.
v. Com efeito, tendo os imóveis penhorados nestes autos sido adquiridos durante o casamento, os mesmos constituem bens comuns do casal, nos termos do art. 1603°, 1 e 2 do CC), qualidade que se presume ao abrigo do art. 1606°, nº 1 do CC.
w. Esta presunção - à semelhança do previsto no art. 1723°, al. c), do CC Português - configura-se como inilidível relativamente a terceiros, por forma a tutelar os legítimos direitos e interesses de terceiros.
x. Por força desta presunção, pretende o legislador salvaguardar os direitos dos credores da tentativa dos devedores fazerem uso abusivo de expedientes legais, com vista a subtrair património da esfera jurídica do cônjuge executado, por exemplo, invocando ser bem próprio do outro...
y. De onde, a decisão proferida no referido processo nº CV2-19-0006-CAO, que qualificou os bens penhorados como bens próprios do cabeça-de-casal, não pode aqui ser oponível à exequente, o que desde já se invoca, devendo todos os bens penhorados ser considerados bens comuns do casal.
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B (cônjuge da executada), veio, 15/11/2021, a apresentar as suas contra-alegações constantes de fls. 524 a 535, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. No recurso a que ora se responde a Recorrente conclui as suas alegações pedindo a revogação do dito despacho de fls. 484 e "considerados os bens penhorados comuns do casal", indicando como fundamento único desse pedido a alegada inoponibilidade da decisão proferida na Acção.
2. Sucede que, a Recorrente já tinha submetido ao Tribunal a quo o mesmo pedido àquele que formula no presente recurso (e no requerimento que o antecede, o requerimento de fls. 471), baseado no mesmo fundamento.
3. Com efeito, na sequência do requerimento do Recorrido de 22/04/2020, no qual veio informar o Tribunal a quo do trânsito em julgado da sentença proferida na Acção, pedindo a extinção do presente apenso, a Recorrente respondeu através do requerimento de fls. 345 a 349, no qual requereu a rejeição daquele pedido e a manutenção da "decisão proferida pelo despacho deste tribunal de 17.04.2018" - despacho que que foi revogado pelo acórdão do TUI acima aludido - fundamentando tal pedido dizendo, precisamente, que a decisão proferida na Acção "não poderá ter qualquer efeito nestes autos de execução e separação de bens, visto que não foi intentada na sequência do despacho notificado em 25.03.2020, o qual ordenou a suspensão da instância e remeteu as partes para os meios comuns" e porque "tendo sido os imóveis penhorados nestes autos adquiridos durante o casamento, os mesmos presumem-se bens comuns do casal, nos termos do art. 1603°, 1 e 2 do CC, em conjugação com o art. 1606, n° 1 do CC".
4. Confrontado com aquele requerimento da ora Recorrente o Tribunal a quo decidiu a fls. 351 que "sendo a exequente [ora Recorrente] uma das partes dos autos CV2" a questão da não produção de efeitos da sentença proferida na Acção "há-de ser resolvido naqueles autos" (onde foi), no que não pode ser entendido senão como uma decisão de improcedência do pedido formulado pela Recorrente no seu requerimento de fls. 345 a 349 e que, como se disse, é o mesmo (quer ao nível da pretensão, quer ao nível dos fundamentos) do pedido que deduziu no requerimento de fls. 471 e que formula no presente recurso.
5. A Recorrente não reagiu contra o dito despacho de fls. 351, não o tendo impugnado por via de recurso, ou por qualquer outro meio, pelo que a decisão nele contida e que, repita-se, decidiu que a natureza dos bens penhorados e os efeitos da decisão a proferir na Acção, nomeadamente em relação às penhoras decretadas nos autos de execução de que estes constituem um apenso, teriam de ser discutidos na Acção, transitou em julgado e tornou-se definitiva.
6. Como tal, sob pena de uma patente violação do caso julgado a pretensão da Recorrente de ver novamente apreciada esta questão (por via do recurso interposto do despacho de fls. 494) não pode simplesmente ser atendida, devendo o recurso ser objecto de indeferimento liminar, abstendo-se este Venerando Tribunal de conhecer do seu mérito.
7. Por conseguinte, uma vez que a questão que a Recorrente pretende ver apreciada no presente recurso já foi objecto de decisão anterior transitada em julgado, outra solução não pode restar senão de este Venerando Tribunal se abster de conhecer do mérito do recurso, declarando-o liminarmente improcedente nos termos do artigo 619.°, n.º 1 alínea g) do CPC, o que se requer.
8. A violação do caso julgado de que enferma o recurso interposto pela Exequente não se resume ao despacho de fls. 351, estendendo-se também à sentença proferida na Acção na qual, como se disse, foi decidido que os bens objecto do inventário para separação de bens não são bens comuns, mas sim bens próprios do ora Recorrido.
9. Efectivamente, ao peticionar a revogação do despacho recorrido e "considerados os bens penhorados comuns do casal" aquilo que a Recorrente vem pedir é que este Venerando Tribunal se pronuncie mais uma vez sobre uma causa já anteriormente decidida e sobre um pedido já anteriormente julgado.
10. Destarte, havendo uma identidade de sujeitos, de pedidos (traduzida no facto de tanto na Acção, como no presente recurso o efeito jurídico a alcançar ser o mesmo) e de causas de pedir entre a Acção e o presente recurso, este, por se tratar de uma causa repetente, tem de ser liminarmente rejeitado sob pena de manifesta violação do caso julgado.
11. Mas ainda que assim não se entendesse, hipótese que apenas à cautela e por dever de patrocínio se concebe, outra solução não parece restar senão a da total improcedência do mesmo por falta de fundamento legal.
12. Aquilo que resulta da argumentação da Recorrente contida no capítulo II das suas alegações resume-se a um único ponto: para aquela o facto de o Recorrido ter intentado a acção para obter a declaração de que os bens penhorados são bens próprios seus, antes do despacho que, em cumprimento do acórdão do TUI, ordenou a suspensão do inventário e a remessa das partes para os meios comuns a fim de esta questão ser aí discutida e resolvida, faz com que a decisão proferida na Acção não possa produzir quaisquer efeitos no inventário.
13. Aquilo que importa reter e que é relevante é a circunstância de, por decisão do TUI transitada em julgado, ter sido deliberado que a questão sobre natureza dos bens penhorados constitui uma questão prejudicial em relação à separação de bens de que se ocupa o presente inventário e que, pela sua complexidade, teria de ser decidida nos meios comuns, com a consequente suspensão do presente processo até ao julgamento definitivo daquela questão.
14. A circunstância de o accionamento dos meios comuns ter sido feito antes do despacho que deu cumprimento à supra referida decisão do TUI em nada contende com a relação de prejudicialidade que este Venerando Tribunal entendeu existir e que, como se disse, coloca de um lado a questão sobre a titularidade dos bens penhorados (a resolver em acção própria) e do outro a possibilidade ou não de deverem constar da relação de bens e consequentemente ser ordenado a suspensão da sua partilha no inventário, e cuja resolução depende do sentido em que foi proferida a sentença naqueloutra.
15. Não é pelo facto de a causa prejudicial (a Acção) já ter sido intentada quando o Tribunal ordenou a suspensão do inventário e, portanto já estar pendente, que a decisão a proferir na mesma deixa de ser prejudicial em relação ao presente processo.
16. Pelo contrário, com o recurso aos meios comuns antes da decisão, conseguiu-se que a suspensão tivesse lugar por menos tempo, ou seja a suspensão foi abreviada.
17. Com efeito, o que releva para aferir da existência de uma relação de prejudicialidade é apenas o facto de se concluir que uma determinada questão cuja resolução por si só possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de um pleito à luz da sua apreciação noutro pleito, como sucedeu in casu relativamente à questão da propriedade dos bens penhorados.
18. Essa prejudicialidade não desaparece obviamente pelo facto de quando foi ordenada a suspensão da instância a causa prejudicial já se encontrar pendente, isso em nada influi na determinação da questão prejudicial e nos efeitos que a decisão de tal questão tem na causa prejudicada. Apenas abrevia o prazo de suspensão da acção suspensa.
19. Tal resulta claro, por exemplo, do disposto no n.º 2 do artigo 970.° do CPC, que prevê precisamente que a suspensão da instância do inventário possa ocorrer quando se reconheça a existência de uma causa prejudicial já pendente.
20. Acresce que, a decisão do TUI que considerou a questão sobre a natureza/titularidade dos bens penhorados como uma questão prejudicial (o que acarretou a suspensão do inventário e a remessa para os meios comuns) em nada mudaria caso fosse confrontado com a circunstância de a Acção já estar pendente, pois como se disse para se aferir de uma relação de prejudicialidade (com a consequente suspensão da instância do presente pleito) aquilo que interessa é saber se a questão a decidir é ou não essencial para a resolução de uma determinada causa e se a mesma pode ser resolvida no seu âmbito.
21. Neste particular o que releva é que na Acção foi assegurada a legitimidade das partes, com a demanda da Executada e da Exequente, respeitado o principio do contraditório e, acima de tudo, o pedido sobre que recaiu o julgamento do Tribunal nesse pleito coincidiu integralmente com a questão considerada prejudicial em relação ao inventário: o reconhecimento dos bens penhorados, não como bens comuns do casal, mas sim como bens próprios do Recorrido.
22. A irrelevância do timing da entrada da Acção em juízo para aquilo que ora se discute resulta também da acção para reconhecimento da titularidade de um direito poder ser intentada a todo o tempo, nomeadamente após a venda executiva dos bens penhorados(!), como resulta claro da douta fundamentação do acórdão do TUI.
23. No capítulo III das suas alegações a Recorrente traz uma vez mais à baila a questão da presunção que deriva dos artigos 1603.° e 1606.° do CC.
24. Trata-se de uma questão cujo conhecimento, conforme já se explicou, está vedado ao tribunal de recurso não só por se tratar de questão que teria de ter sido suscitada e discutida na Acção, em função da respectiva prejudicialidade em relação ao inventário, como a mesma está abrangida pelo caso julgado.
25. Por isso, o Recorrido não se pronunciará sobre a mesma, com excepção de um pequeno aparte que serve para corrigir aquilo que erradamente a Recorrente afirma e para repor a verdade dos factos.
26. Um pequeno aparte apenas para referir que, como como resulta da lição contida no acórdão proferido pelo TUI nos Autos de Recurso Civil e Laboral (disponível no sítio da internet dos Tribunais de Macau) ,havendo convenção sobre a titularidade dos bens penhorados válida de acordo com a lei competente, não é o facto de no respectivo registo não constar a menção de que tais bens são próprios do Recorrente que esses bens passam a ser comuns, se realmente o não forem.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
- Na pendência da execução instaurada pela Recorrente contra C (executada), seu marido, B, veio a requerer a separação de bens (artigo 709º/2 do Cpc) (fls. 2 dos autos);
- Feitas diligências pertinentes, foi proferido o despacho constante de fls. 60, em que foi declarada inutilidade superveniente da lide por o cabeça-de-casal (marido da executada) veio a declarar que não havia bens comuns para seprarar.
- Contra tal despacho foi interposto recurso para este TSI (processo nº 862/2018, cujo acórdão foi proferido em 21/02/2019), tendo este decidido manter a decisão recorrida.
- Contra a decisão deste TSI foi interposto recurso para o TUI, tendo este confirmado o acórdão recorrido mediante decisão de 26/02/2020 (processo nº 108/2019).
- Em 04/01/2019 (ainda antes do referido despacho de suspensão), o aqui recorrido B (cônjuge da executada) já havia intentado acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO, pedindo ser declarado como único titular dos saldos bancários constantes das contas nº ... e nº ..., abertas no Banco da X (Sucursal de Macau) por se tratarem de seus bens próprios, estando assim excluídos da comunhão conjugal; e único proprietário da fracção autónoma por "D5", do prédio urbano nº ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., e da fracção autónoma designada por "P17" do prédio urbano localizado na Estrada dos..., nº..., por se tratarem de bens próprios, estando, como tal, excluídos da comunhão conjugal.
- A decisão da referida acção transitou em julgado em 16/3/2020, dando-se assim provimento ao pedido do Autor.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte despacho que constitui o objecto deste recurso, proferido pelo Tribunal de primeira instância:
Nos presentes autos de separação de bens em que é requerente B e requerida C, vem aquele requerer a separação de bens.
Foi declarado pelos autos CV2-19-0006-CAO de que os bens, melhor id nos autos, se tratam de bens próprios da requerente. (cremos aqui um lapso de escrito, deve ser do Requerente).
Mostrado que está transitada em julgado a sentença dos autos CV2-19-0006-CAO bem como transitado em julgado o recurso de revisão apenso naqueles autos, não resta senão concluir que nos presentes autos de separação de bens não há bens comuns a separar.
Termos em que, a separação de bens requerida pela requerente nos presentes autos deixou de ser possível de proceder, o que nos impõe a declarar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 229.º al e) do CPC.
Custas a cargo da requerente, uma vez que foi quem deu a causa dos presentes autos.
Notifique.
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Quid Juris?
Ora, o artigo 563º do CPC manda:
1. Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 230.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões que possam conduzir à absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
2. O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
3. O juiz ocupa-se apenas das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
É de ver que ao Tribunal compete resolver as questões suscitadas pelas partes, e não apreciar todos os argumentos invocados pelas mesmas. São duas realidades diferentes.
Importa recapitular o que se passou conforme os dados constantes dos autos:
Na sequência do requerimento do Recorrido de 22/04/2020, no qual veio informar o Tribunal a quo do trânsito em julgado da sentença proferida na acção registada sob o nº CV2-19-0006-CAO, pedindo a extinção da instância, a Recorrente respondeu através do requerimento de fls. 345 a 349, no qual requereu a rejeição daquele pedido e a manutenção da "decisão proferida pelo despacho deste tribunal de 17.04.2018" - despacho que foi revogado pelo acórdão do TUI acima aludido - fundamentando tal pedido dizendo que a decisão proferida na referida acção "não poderá ter qualquer efeito nestes autos de execução e separação de bens, visto que não foi intentada na sequência do despacho notificado em 25.03.2020, o qual ordenou a suspensão da instância e remeteu as partes para os meios comuns" e porque "tendo sido os imóveis penhorados nestes autos adquiridos durante o casamento, os mesmos presumem-se bens comuns do casal, nos termos do art. 1603°, 1 e 2 do CC, em conjugação com o art. 1606, n° 1 do CC".
Perante o citado requerimento da ora Recorrente, o Tribunal a quo decidiu (fls. 351) nos seguintes termos "sendo a exequente [ora Recorrente] uma das partes dos autos CV2-19-0006-CAO” a questão da não produção de efeitos da sentença proferida na citada acção "há-de ser resolvido naqueles autos(...)".
A Recorrente não reagiu contra o dito despacho de fls. 351, não o tendo impugnado por via de recurso, ou por qualquer outro meio, pelo que a decisão nele contida e que decidiu que a natureza dos bens penhorados e os efeitos da decisão a proferir na citada acção, nomeadamente em relação às penhoras decretadas nos autos de execução de que estes constituem um apenso, tornou-se definitiva.
Depois, a Recorrente teceu ainda a seguintes considerações neste recurso:
“(…)
k. Examinando com atenção o art. 970°, nº 1, do CPC, conclui-se que o juiz remete as partes para os meios comuns apenas e se entender que as questões suscitadas na pendência do inventário não podem ser decididas no próprio processo e depois de determinar a suspensão da instância.
l. Deste preceito decorre, portanto que a acção para determinação da titularidade dos bens encontra-se dependente da decisão de suspensão da instância e remessa das partes, ou seja, estando em causa matéria discutida nos autos de inventário, a mesma só pode ser apreciada noutra acção se o tribunal para ela remeter.
m. De facto, o juiz apenas suspende a instância e remete as partes para os meios comuns se entender que as questões suscitadas na pendência do inventário não podem ser decididas no próprio processo e que resulta numa relação de prejudicialidade - quando o conhecimento do mérito da acção está dependente da prévia resolução de uma outra questão que, segundo uma estrutura lógica ou encadeamento lógico da sentença, carece de prévia decisão, portanto.
n. Nesta situação, a suspensão da instância por determinação do tribunal tem respaldo no art. 223°, nº 1 e 220°, nº 1, al. d), ambos do CPC, o que se justifica a fim de evitar a ocorrência de litispendência ou de caso julgado - arts. 416° e 417°, ambos do CPC.
o. Nos presentes autos, verifica-se que o facto de o cabeça-de-casal ter requerido a suspensão da instância e a fixação de um prazo de 30 dias para intentar a acção em separado - o que só por si demonstra que não tinha nenhuma pendente nem pretendia vir a propor antes de ser decretada a suspensão da instância - não o deteve de intentar desde logo a acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO, em 04.01.2019, com o mesmo pedido, a mesma causa de pedir e as mesmas partes em conflito nos presentes autos.
p. E não obstante as duas acções terem a mesma finalidade e sido tramitadas em simultâneo, o recorrido nunca manifestou, perante os autos de execução e respectivos apensos e recursos, que a acção que se propunha intentar já estava, afinal, a correr os seus trâmites, sonegando deliberadamente tal informação às várias instâncias, que poderia ser essencial para a boa decisão da causa!
q. Fica patente que a sentença proferida no processo nº CV2-19-0006-CAO não é prejudicial nem pode constituir efeito de caso julgado nos presentes autos de execução e separação de bens, e como tal não poderá ter qualquer efeito nos mesmos, visto que não foi intentada na sequência da suspensão da instância e remessa das partes para os meios comuns, o que somente veio a suceder por despacho notificado em 25.03.2020.
r. E nem se diga o contrário, com fundamento no princípio da economia processual, porquanto o ora recorrido acabou por nem precisar que fosse suspensa a instância de separação de bens, porquanto ainda antes de ver a decisão final do TUI, já a acção sob o processo nº CV2-19-0006-CAO tinha transitado em julgado, pelo que há muito tinha perdido o interesse nesse recurso.
(…)”.
Ora, quando o Tribunal a quo remeteu e bem as partes para usar os meios comuns para defender os seus interesses, está a cumprir rigorosamente aquilo que o legislador manda, sendo uma decisão meramente formal. Mas para tal, é preciso que a parte interessada tenha condições para este efeito. No caso, o marido da executada conseguiu sentença definitiva que declarou que os bens em causa são bens próprios dele, o que significa que os bens deles não podem ser “chamados” para responsabilizar as dívidas contraídas pela executada (cônjuge dele). Ou seja, falta-lhe o objecto para a respectiva separação.
Depois, a ora Recorrente insistiu ainda nos seguintes pontos:
“(…)
u. Deve atender-se ainda que qualquer discussão em torno da titularidade sobre os bens comuns dos cônjuges - como pretende o recorrente - também seria manifestamente irrelevante no âmbito do processo de separação de bens em causa.
v. Com efeito, tendo os imóveis penhorados nestes autos sido adquiridos durante o casamento, os mesmos constituem bens comuns do casal, nos termos do art. 1603°, 1 e 2 do CC), qualidade que se presume ao abrigo do art. 1606°, nº 1 do CC.
w. Esta presunção - à semelhança do previsto no art. 1723°, al. c), do CC Português - configura-se como inilidível relativamente a terceiros, por forma a tutelar os legítimos direitos e interesses de terceiros.
x. Por força desta presunção, pretende o legislador salvaguardar os direitos dos credores da tentativa dos devedores fazerem uso abusivo de expedientes legais, com vista a subtrair património da esfera jurídica do cônjuge executado, por exemplo, invocando ser bem próprio do outro...
y. De onde, a decisão proferida no referido processo nº CV2-19-0006-CAO, que qualificou os bens penhorados como bens próprios do cabeça-de-casal, não pode aqui ser oponível à exequente, o que desde já se invoca, devendo todos os bens penhorados ser considerados bens comuns do casal.
(…)”.
Ora, mais uma vez, são argumentos falaciosos, já que a natureza dos bens em causa está definitivamente esclarecida por sentença transitada em julgado, caindo por terra qualquer presunção nos termos alegados pela Recorrente.
Por último, importa frisar que, em matéria de processo civil, o que comanda é a justiça material e não a justiça formal, concretamente falado, neste processo, uma vez que, por sentença transitada em julgado, o bem é um próprio do cônjuge da executada, não há nada para dividir decisão esta que não merece censura. Pelo que, bem andou o Tribunal a quo proferiu a decisão nestes termos.
Improcede manifestamente assim o recurso interposto pela Recorrente e como tal é de confirmar a decisão recorrida.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 07 de Abril de 2022.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
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