Processo n.º 962/2020 Data do acórdão: 2022-4-7
Assuntos:
– notificação edital para audiência de julgamento
– art.o 316.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– crime de falsificação de atestado
– art.o 249.o, n.o 1, do Código Penal
– atestado médico para justificação da falta por doença
– obtenção de benefício ilegítimo para a pessoa falsamente doente
S U M Á R I O
1. Tratando-se de uma arguida, com seu Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente já cancelado, em relação à qual só se sabe o seu endereço anteriormente em Macau, a propósito do qual nunca se conseguiu fazer a notificação com êxito, andou bem o tribunal a quo em acabar por ordenar, nos termos do art.o 316.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, a notificação edital da mesma arguida para a audiência de julgamento então designada, depois de saber, através das informações policiais prestadas, que a arguida tinha saído de Macau e não tinha voltado mais a Macau e que a Polícia não tinha conseguido interceptar a arguida para efeitos de notificação da data da audiência de julgamento.
2. O tipo legal de falsificação de atestado do art.o 249.o, n.o 1, do Código Penal prevê, designadamente, que o médico que passar atestado que sabe não corresponder à verdade, sobre o estado da saúde de uma pessoa, destinado a obter para outra pessoa benefício ilegítimo, é punido.
3. Um médico que passa falsamente atestado do qual consta que uma pessoa precisa de “sick leave” em determinado dia, já está a saber nitidamente para qual a finalidade se destina o atestado em questão: precisamente para a finalidade de justificação de “sick leave” (justificação da falta ao trabalho por motivo de doença), justificação esta que para o caso concreto da arguida falsamente doente constitui um benefício ilegítimo, devido ao carácter falso da matéria de doença atestada no próprio atestado. Portanto, a matéria fáctica já dada por provada em primeira instância sustenta cabalmemte a decisão condenatória penal do médico no referido crime de falsificação de atestado.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 962/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 287 a 293v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-19-0193-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados:
– o arguido (aí presencialmente julgado) A como autor material de um crime consumado continuado de falsificação de atestado, p. e p. pelo art.o 249.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em 210 (duzentos e dez) dias de multa, à quantia diária de MOP300,00 (trezentas patacas), no total, pois, de MOP63.000,00 (sessenta e três mil patacas) de multa, convertível, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho, em 140 (cento e quarenta) dias de prisão;
– e a arguida (aí julgada à revelia) B, condenada como autora material de um crime consumado continuado de uso de atestado falso, p. e p. pelo art.o 250.o do CP, na pena de seis meses de prisão, suspensa na execução por um ano.
Inconformado, veio recorrer o arguido A para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, na sua motivação apresentada, em original, a fls. 358 a 382v dos presentes autos correspondentes, o seguinte, para pedir a invalidação do acórdão recorrido (devido à nulidade da notificação por éditos da arguida para audiência de julgamento), ou a revogação do mesmo acórdão com devida absolvição penal dele ou o reenvio do processo para novo julgamento:
– como não se encontraram esgotadas todas as vias de notificação possíveis, quer postal, quer pessoal, da arguida sobre o assunto de comparência à audiência de julgamento, não se podia ter procedido à notificação edital desta de fl. 252, a qual, pois, foi realizada em desonformidade com a lei, o que constituiu a nulidade insanável prevista na alínea c) do art.o 106.o do Código de Processo Penal (CPP), devendo ser declarada a nulidade insanável da dita notificação edital, bem como dos subsequentes actos dependentes dessa notificação, com nulidade acarretada para a audiência de julgamento e para o próprio acórdão condenatório;
– o mesmo acórdão padece também do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, “já que do seu texto não se afere quais as razões de facto que levaram à condenação” do próprio arguido; isto porque face à explicação do próprio arguido, o cerne da questão era saber se ele tinha passado dolosamente os atestados médicos nos quais as datas de passagem não correspondiam à data da consulta médica; dito por outras palavras, importava terem sido investigados e esclarecidos os pontos duvidosos em torno desta matéria;
– apesar da ausência de prova directa, uma vez que a arguida foi julgada à revelia e nunca foi ouvida no decurso do inquérito, o Tribunal a quo deu como provados os factos descritos nos art.os 5.o e 10.o da acusação pública; mas não o podia ter feito, porque não se pode condenar um arguido com base em simples presunções; no caso, por não existirem os factos concretos de onde se pudesse ter concluído a intenção criminosa imputada ao próprio arguido, não poderia ter o erro administrativo dele ter sido subsumido na previsão do art.o 249.o, n.o 1, do CP;
– não se pode excluir a possibilidade de a arguida se ter aproveitado do descuido do próprio arguido, não podendo, pois, ter o Tribunal recorrido descartado explicação racional, plausível e descoincidente apresentada em juízo por ele, sem que a factualidade apurada fosse suficiente e suficientemente convincente para o condenar;
– violou a decisão condenatória recorrida o princípio de in dubio pro reo;
– por outro lado, não existindo nos autos quaisquer factos concretos de onde se conclua que o próprio arguido tenha realizado a sua conduta com a particular intenção de causar a outrem um prejuízo ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, afigura-se indiscutível não terem ficado provados os factos sobre o dolo específico do crime por que vinha condenado;
– os factos dados como assentes foram apenas reproduzidos conceitos de direito e/ou juízos conclusivos de facto não substanciados nos factos brutos que os consentissem, devendo, pois, a acusação deduzida ter sido rejeitada, evitando-se, assim, a realização de um julgamento inútil;
– sob pena de ilegal inversão do ónus de prova, devia o próprio arguido ter sido absolvido, designadamente por não se ter provado o móbil do crime, nem o dolo específico do crime, nem ser possível ao tribunal recorrido afastar explicação racional e plausível descoincidente apresentada por ele em juízo;
– e haveria sempre erro de qualificação da conduta do próprio recorrente como sendo de falsificação do art.o 249.o, n.o 1, do CP, visto que a passagem de atestados com datas erradas preenchidas sem intenção provada de passagem de atestados falsos não poderia relevar para o tipo legal do art.o 249.o, n.o 1, do CP, mas sim, quanto muito, para a eventual responsabilidade disciplinar; ou seja, das duas uma, ou absolve-se o próprio arguido, ou reenvia-se o processo para novo julgamento, com fundamento na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 401 a 407v dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 419 a 421, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o seguinte:
A fl. 100 dos autos, consta uma cópia alusiva ao boletim de inscrição, com a data de 10 de Julho de 2015, de B na Direcção dos Serviços de Finanças de Macau para efeitos de imposto profissional, do qual constando como sendo o seu endereço: Rua de…, n.o…, edifício X X Garden – X X, X.o andar, fracção X, Taipa.
A fl. 102 a 106 dos autos, consta uma cópia alusiva ao contrato de emprego de B (ora arguida no presente processo penal), datado de 29 de Junho de 2015 com a assinatura inclusivamente desta, do qual constando como sendo a sua morada: “Fl X, Flat X, Edf. X X Garden – X X, … Rua De … Taipa, Macau SAR”.
No intróito da acusação pública deduzida a fls. 191 a 193 dos autos (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido), consta o seguinte como a morada da arguida B: Rua de …, n.o …, Edf. X X Garden – X X, …andar…, Taipa.
No mandado de notificação da acusação de fl. 196 a 196v, consta a seguinte versão chinesa do contacto da arguida: 澳門氹仔, XX街, …, XX花園(XX閣) X樓X室.
A fl. 198, foi lavrada, pelo pessoal do Ministério Público, uma certidão negativa de notificação da arguida nessa morada.
A fl. 199 a 199v, consta a notificação com registo postal, feita pelo pessoal do Ministério Público, da acusação para a mesma morada na versão chinesa da arguida, tendo a correspondente carta de notificação sido devolvida a fl. 209v e 210, por não ter sido reclamada.
A fl. 226 a 226v, consta um mandado de notificação, inclusivamente para efeitos de notificação da arguida, na morada de Rua de …, n.o …, Edf. X X Garden – X X, …andar…, Taipa, nomeadamente da data de audiência de julgamento designada pela primeira vez para o dia 5 de Maio de 2020 (cfr. também o teor de fl. 205). E a fl. 230, foi lavrada, pelo pessoal do Tribunal ora recorrido, uma certidão negativa de notificação da arguida nessa morada.
A fl. 230, o Ministério Público promoveu que fossem solicitadas informações ao Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) acerca, inclusivamente, da posse, ou não, do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente (TITNR) por parte da arguida, e, se sim, da morada e do número telefónico dela, e dos últimos dez registos da sua motivação fronteiriça.
A fl. 239, consta a resposta-ofício do CPSP, a informar que o TITNR da arguida já foi cancelado, e a fornecer os últimos registos de motivação fronteiriça da arguida (ora constantes de fls. 240 a 241). Segundo estes registos, a arguida saiu de Macau em 13 de Maio de 2017, e não voltou mais a Macau (cfr. sobretudo o teor dos registos de movimentação fronteiriça de fl. 241).
Enquanto os autos estavam entretanto a aguardar pela notificação, através do pessoal policial em postos fronteiriços, da arguida da data da audiência de julgamento marcada para 5 de Maio de 2020, o CPSP enviou ao Tribunal recorrido a resposta-ofício de 17 de Março de 2020, a informar que até 16 de Março de 2020, não conseguiu essa Corporação interceptar com êxito a arguida.
Por despacho judicial de 26 de Março de 2020 (a fl. 251), foi ordenada a notificação edital da arguida para a audiência de julgamento.
Em 26 de Março de 2020, foram afixados (cfr. o processado a fls. 252 a 254v) os éditos para efeitos de notificação da arguida para a audiência de julgamento marcada para o dia 5 de Maio de 2020 (cfr. o teor de fl. 252), com indicação da seguinte morada: Rua de …, n.o …, Edf. X X Garden – X X, ….o andar…, Taipa.
Em 5 de Maio de 2020, foi realizada a primeira sessão da audiência de julgamento perante o Tribunal ora recorrido, à revelia da arguida (cfr. a acta de fls. 263 a 264). E em 19 de Maio de 2020, foi realizada a segunda (e última) sessão da audiência de julgamento, à revelia também da arguida (cfr. a acta de fls. 285 a 286v).
Os dois atestados médicos para cujo teor os pontos 6 e 11 da matéria de facto provada em primeira instância fazem remissão expressa constam já de fls. 108 e 109 dos autos, com seguinte conteúdo, essencialmente em inglês, inclusivamente:
– <<[…]
This is to certify that B is suffering from migraines attack
is unfit for work and is recommended 1 day(s) sick leave
from 27/09/2015 to 27/09/2015 inclusive.
[…]>> (cfr. o atestado de fl. 108);
– <<[…]
This is to certify that B is suffering from
headache
is unfit for work and is recommended 1 day(s) sick leave
from 25/10/2015 to 25/10/2015 inclusive.
[…]>> (cfr. o atestado de fl. 109).
O arguido ora recorrente não chegou a alegar, em sua defesa, factos diversos dos descritos na acusação, mas se limitou a arrolar provas para sua defesa, na exposição apresentada a fl. 237, depois de notificado para os efeitos do art.o 297.o do CPP.
O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 287 a 293v, cujo teor (incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Debruça-se primeiro sobre a arguida nulidade insanável decorrente do indevido emprego da notificação edital da arguida para a audiência de julgamento:
Não assiste razão ao arguido recorrente nesta questão, visto que em face dos elementos processuais retirados do exame dos autos e já acima elencados na parte II do presente acórdão de recurso, não pode ter ocorrido qualquer ilegalidade nem inadequação no emprego da notificação edital da arguida para a audiência de julgamento. Tratando-se de uma arguida, com seu TITNR já cancelado, em relação à qual só se sabe o seu endereço anteriormente em Macau, a propósito do qual nunca se conseguiu fazer a notificação com êxito, andou bem a M.ma Juiza titular do processo em primeira instância em acabar por ordenar, em 26 de Março de 2020, nos termos do art.o 316.o, n.o 1, do CPP, a notificação edital da arguida para a audiência de julgamento então designada para 5 de Maio de 2020, depois de saber, através das informações prestadas pelo CPSP, que essa arguida tinha saído de Macau em 13 de Maio de 2017 e não tinha voltado mais a Macau e que a Polícia de Segurança Pública não tinha conseguido interceptar a mesma arguida até 16 de Março de 2020 para efeitos de notificação da data de audiência de julgamento – neste sentido, cfr. a posição já veiculada no Acórdão de 31 de Outubro de 2019, do Processo n.o 554/2018, do TSI, já referido no judicioso parecer emitido pelo Ministério Público na presente lide recursória.
Improcede, pois, a primeira parte do objecto do recurso do arguido.
Quanto ao mérito da condenação penal dele, foi invocado em primeiro lugar o vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Entretanto, observa-se, desde logo, que os argumentos concretamente expostos por ele para sustentar a verificação deste vício não têm a ver com o sentido próprio deste vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas sim com a questão de entendida insuficiência da prova para o condenar e também com a questão de subsunção de factos provados ao Direito (questões duas estas a serem decididas depois, após decidida que venha a ser, em seguida, a questão de insuficiência da prova posta materialmente na motivação do recurso, aquando da alegação da violação do princípio de in dubrio pro reo).
Pois bem, como da leitura atenta da fundamentação fáctica do mesmo aresto recorrido, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já investigou todo o tema probando dos autos (tema probando este que, na falta de alegação pelo arguido de outros factos em sua defesa na exposição escrita então apresentada em sede do art.o 297.o do CPP, já ficou delimitado pela matéria de facto descrita contra ele na acusação pública, dada finalmente por provada na Primeira Instância), sem omissão alguma, pelo que nunca pode o mesmo Tribunal ter cometido o vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Agora da questão de insuficiência da prova:
A este propósito, sempre até se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado o conteúdo dos diversos elementos probatórios analisados em global e de modo crítico, tendo explicado convincentemente as razões por que não acreditou na explicação das coisas dada pelo arguido na audiência de julgamento (cfr. sobretudo a fundamentação probatória nesta concreta parte escrita nos últimos dois parágrafos da página 8 e no primeiro parágrafo da página 9 do texto decisório recorrido, a fls. 290v a 290), daí que não houve qualquer alegada “inversão do ónus da prova”, nem violação do princípio de in dubio pro reo, mas sim houve, já, produção da prova bastante dos factos então acusados ao arguido no libelo acusatório.
No respeitante à questão de alegada falta de descrição de factos com pertinência para aferição da intenção criminosa do arguido ou do seu “dolo específico” na passagem dos dois atestados falsos: um médico que passa falsamente atestado do qual consta que uma pessoa precisa de “sick leave” em determinado dia, já está a saber nitidamente para qual a finalidade se destina o atestado em questão: precisamente para a finalidade de justificação de “sick leave” (justificação da falta ao trabalho por motivo de doença), justificação esta que para o caso concreto da arguida constitui um benefício ilegítimo, devido ao carácter falso da matéria de doença atestada no próprio atestado.
De frisar que os factos provados 5 e 10, correspondentes aos factos acusados 5 e 10, não são meramente conclusivos, mas sim têm suporte fáctico na restante matéria de facto provada. Outrossim, os factos provados referentes ao dolo do arguido também têm base na restante matéria de facto provada, não tendo sido usados quaisquer conceitos jurídicos para descrever os factos provados concretamente atinentes a toda a história da passgem de dois atestados médicos em causa. Portanto, não se pode concordar com o arguido quando este diz, na motivação do recurso, que do texto do acórdão recorrido “não se afere quais as razões de facto que levaram à condenação” dele.
Assim, a matéria fáctica já dada por provada em primeira instância sustenta cabalmente, a nível do Direito, o tipo legal do art.o 249.o, n.o 1, do CP, que prevê que: <> (com sublinhado só agora aqui posto para efeitos de ênfase).
Naufraga o recurso do arguido, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pelo arguido, com dez UC de taxa de justiça.
Notifique o presente acórdão (com cópia do acórdão recorrido) aos Serviços de Saúde de Macau e ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 7 de Abril de 2022.
______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
______________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 962/2020 Pág. 3/18