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Processo n.º 759/2020 Data do acórdão: 2022-3-31
Assuntos:
– abuso de confiança
– guardar
– fazer seu de modo ilegítimo
– entrega de coisa móvel
– título não translativo da propriedade
– qualquer fonte lícita de que deriva a obrigação de restituir
– depósito irregular
– natureza fungível da coisa depositada
– art.o 1132.o do Código Civil
– art.o 1071.o do Código Civil
– arbitramento oficioso da indemnização
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, o ofendido entregou, sucessivamente, por transferência bancária, e em numerário, oitocentos e quarenta mil renminbis à arguida para esta guardar provisoriamente, tendo esta, porém, feito seu de modo ilegítimo todo esse montante total.
2. As expressões em chinês 「保管」 (que significa “guardar”) e 「不正當據為己有」 (que significa “fazer seu de modo ilegítimo”), usadas na descrição da matéria de facto provada em primeira instância, têm sido de uso corrente e frequente na vida quotidiana das pessoas. Como essas duas expressões têm alicerce na restante matéria de facto descrita como provada no aresto recorrido, não são elas meramente conclusivas, cabendo ao tribunal interpretá-las em sede da decisão do Direito.
3. O art.o 1132.o do Código Civil (CC) dispõe: “Consideram-se aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo”, sendo irregular o depósito quando tem por objecto coisas fungíveis.
4. Entretanto, mesmo que seja aplicável, por força do art.o 1132.o do CC, a regra do art.o 1071.o do CC (que prevê: “As coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega”) ao contrato de depósito irregular, precisa e unicamente por causa da natureza fungível da coisa móvel depositada (como por exemplo, dinheiro normal), nem por isso fica afastado a priori o tipo legal delitual penal de abuso de confiança, já que se entende por “título não translativo da propriedade” qualquer fonte, lícita, de que deriva a obrigação de restituir.
5. Condenada a arguida neste crime, deve ela pagar indemnização ao ofendido, por correcta decisão de arbitramento oficioso já tomada pelo Tribunal recorrido, em sede do art.o 74.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 759/2020
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A (A)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 163 a 167v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-19-0144-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou a arguida A condenada como autora material de um crime consumado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelos art.os 199.o, n.o 1, e n.o 4, alínea b), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de dois anos de prisão, suspensa na execução por três anos, e na obrigação de pagar ao ofendido a quantia indemnizatória civil, arbitrada oficiosamente, de oitocentos e quarenta mil renminbis, com juros legais contados da data desse próprio acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, veio recorrer ela para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 177 a 208 dos presentes autos correspondentes, o seguinte, para pedir a sua absolvição total:
– os factos provados n.os 5 e 8 têm a ver com juízos de valor de natureza jurídica conclusiva, não devendo ser, pois, considerados existentes os factos conclusivos nem afirmações jurídicas;
– na verdade, a palavra em chinês 「保管」 (que significa em português “guardar”) dentro da expressão em chinês 「暫時保管」 (que significa em português “guardar provisoriamente”) é um conceito jurídico, pelo que sem outros factos provados que suportem concretamente a verificação desse conceito, o Tribunal recorrido não deve ter usado a expressão “guardar provisoriamente” na descrição da matéria de facto provada;
– outrossim, nem há factos provados concretos a suportar o significado da expressão em chinês 「不正當據為己有」 (que significa em português “fazer seu de modo ilegítimo”);
– daí que na devida desconsideração daquelas duas expressões como matéria de facto provada, não se deve condenar a própria recorrente no crime acusado de abuso de confiança em causa;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que a situação dos autos traduz mero incumprimento contratual no direito privado do contrato de depósito irregular, regulado nos art.os 1131.o e 1132.o do Código Civil (CC), sendo certo que no momento de entrega do dinheiro, o direito de propriedade sobre o dinheiro já se encontrou logo transferido, pelo que já não se pode verificar o requisito de “título não translativo de propriedade” postulado no tipo legal de abuso de confiança, pelo que o acórdão condenatório recorrido padeceria também do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP);
– por fim, as considerações tecidas pelo Tribunal recorrido em sede de fundamentação probatória da sua livre convicção sobre os factos também não deixariam de ter incorrido em erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP;
– devendo ser ela absolvida do crime em causa, há que absolvê-la também da indemnização cível arbitrada no mesmo acórdão.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 210 a 217 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 226 a 228, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 163 a 167v, cujo teor (incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
Na contestação escrita então apresentada em nome da arguida a fl. 86 à acusação pública deduzida a fls. 64 a 65, apenas foi oferecido o merecimento dos autos e foram arroladas para serem testemunhas de defesa as três testemunhas já referidas na acusação.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, debruça-se sobre a alegada pretendida devida desconsideração, como parte integrante da matéria de facto provada, das expressões, em chinês, de 「保管」 (que significa em português “guardar”) e de 「不正當據為己有」 (que significa em português “fazer seu de modo ilegítimo”):
Entende, porém, o presente Tribunal de recurso que estas duas expressões em chinês têm sido de uso corrente e frequente na vida quotidiana das pessoas da Comunidade Chinesa em Macau, já que toda a gente desta Comunidade sabe o sentido e alcance semânticos, na Língua Chinesa, dessas duas expressões (e o mesmo se pode dizer, aliás, e nota-se, em relação às correspondentes expressões em Português, para a Comunidade Portuguesa em Macau). E essas duas expressões em chinês têm alicerce na restante matéria de facto descrita como provada no aresto recorrido, pelo que não são meramente conclusivas, cabendo ao Tribunal interpretá-las em sede da decisão do Direito, caso a matéria de facto dada por assente não tenha sido objecto de alegado erro notório na apreciação da prova, questão esta a ser decidida depois.
Daí que sem mais consideração por desnecessária, improcede a objecção levantada na parte inicial da motivação do recurso.
Quanto à questão do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, os argumentos concretamente expostos pela recorrente para sustentar a verificação deste vício não têm a ver com o sentido próprio deste vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim com a questão de subsunção de factos ao Direito (questão esta a ser decidida depois, após decidida que venha a ser, em seguida, a questão do erro notório na apreciação da prova).
É que da leitura atenta da fundamentação fáctica do mesmo aresto recorrido, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já investigou todo o tema probando dos autos (tema probando este que, na falta de alegação de outros factos na contestação escrita da arguida para defesa dela própria, já ficou delimitado pela matéria de facto descrita na acusação pública, dada finalmente por provada inteiramente na Primeira Instância), sem omissão alguma, pelo que nunca pode o mesmo Tribunal ter cometido o vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado o conteúdo dos diversos elementos probatórios analisados em global e de modo crítico. (cfr. a fundamentação probatória na parte sobretudo escrita nas linhas 8 a 18 da página 6 do texto do acórdão recorrido, a fl. 165v).
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, pelo que há que respeitar esse julgado da Primeira Instância.
É, pois, de ver agora a questão de subsunção dos factos provados ao Direito.
Defende a arguida que o que existiu no caso dos autos foi somente depósito irregular de que se fala nos art.os 1131.o e 1132.o do CC, o que afasta a aplicabilidade do tipo legal delitual penal de abuso de confiança, por falhar o requisito de “título não translativo de propriedade”.
Segundo o facto provado 5, o ofendido entregou, sucessivamente, por transferência bancária, e em numerário, oitocentos e quarenta mil renminbis à arguida para esta guardar provisoriamente.
O art.o 1132.o do CC dispõe: “Consideram-se aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo”, sendo certo que é irregular quando o depósito tem por objecto coisas fungíveis.
Entretanto, mesmo que seja aplicável, por força do art.o 1132.o do CC, a regra do art.o 1071.o do CC (que prevê: “As coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega”) ao contrato de depósito irregular, precisa e unicamente por causa da natureza fungível da coisa móvel depositada (como por exemplo, dinheiro normal) (cfr., neste sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in CÓDIGO CIVIL ANOTADO, Volume II, 3.a Edição revista e actualizada, 1986, Coimbra Editora, página 785, linhas 17 a 22), nem por isso fica afastado a priori o tipo legal delitual penal de abuso de confiança, já que se entende por título não translativo da propriedade qualquer fonte, lícita, de que deriva a obrigação de restituir – cfr. neste sentido a pertinente anotação feita por MANUEL LEAL-HENRIQUES ao art.o 199.o do CP, in ANOTAÇÃO E COMENTÁRIO AO CÓDIGO PENAL DE MACAU, VOLUME IV, 2016, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, página 72, ponto 4, último parágrafo, com citação da posição jurídica veiculada no “notável Ac. STJ de Portugal, de 11.01.2006, Proc.o n.o 2407/2003-3.a).
Assim sendo, há que naufragar a pretensão de absolvição penal da arguida, por a matéria de facto dada por provada sem vício de erro notório na apreciação da prova integrar cabalmente o tipo do crime de abuso de confiança (em valor consideravelmente elevado) por que vinha ela condenada em primeira instância.
Condenada a arguida neste crime, deve ela pagar indemnização ao ofendido, por correcta decisão de arbitramento oficioso já tomada pelo Tribunal recorrido, em sede própria do art.o 74.o do CPP.
É, pois, mesmo de louvar até toda a decisão recorrida da Primeira Instância, nos termos do art.o 631.o, n.o 5, do CPC, ex vi do art.o 4.o do CPP. (Nota-se que não sendo alterada essa decisão de arbitramento da indemnização constante do acórdão recorrido, os juros legais do respectivo montante de oitocentos e quarenta mil renminbis continuam a ter que ser contados a partir da data desse próprio acórdão, em obediência à jurisprudência obrigatória veiculada no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010).
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pela arguida, com oito UC de taxa de justiça na parte penal do recurso.
Comunique o resultado da presente decisão de recurso ao ofendido, com cópia do acórdão recorrido.
Macau, 31 de Março de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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