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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A (甲), melhor identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa de condenação, com processo ordinário (Processo n.º CV3-17-0028-CAO) contra B (1.ª Ré) e C (2.ª Ré), pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de MOP$1.030.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir da data da citação até ao integral pagamento da quantia.
Por sentença constante de fls. 268 a 275 dos autos, o Tribunal julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, decidiu condenar a 1.ª Ré no pagamento da quantia peticionada e absolver a 2.ª Ré do pedido formulado pelo Autor.
Dessa sentença recorreram o Autor e a 1.ª Ré para o Tribunal de Segunda Instância, que por acórdão proferido no Processo n.º 790/2019 decidiu negar provimento ao recurso interposto pela 1.ª Ré, confirmando a sentença do TJB na parte em que a condenou, e conceder provimento ao recurso interposto pelo Autor, passando a condenar a 2.ª Ré a pagar ao Autor, solidariamente com a 1.ª Ré, a quantia de MOP$1.030.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir do dia 7/06/2007, até efectivo e integral pagamento (fls. 385 a 398 do autos).
Vêm agora as duas Rés recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Do recurso da 1.ª Ré B
1) O acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, e do qual se recorre negou provimento ao recurso da ora Recorrente, confirmando a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
2) De acordo com o douto acórdão recorrido, o Tribunal da Primeira Instância “no quadro de análise holística que fez dos elementos recolhidos no processo, com relevo para o princípio da imediação e da livre convicção que pôde alcançar, não lhe atribuiu valor probatório e este TSI também não tem melhores motivos para lho conferir.”
3) E que, “uma vez que não foi capaz de demonstrar quem procedeu ao levantamento, não se pode concluir “a contrario” que quem o fez foi o autor.
4) Ora, com o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo.
5) Nos presentes autos, está em crise a relação de depósito existente entre 1.ª Recorrente e o Recorrido e responsabilização da primeira, regulada nos termos do artigo 1111.º do Código Civil e ss.
6) Entendeu o Tribunal de Primeira Instância e confirmou o Tribunal a quo que existiu uma entrega, dizendo o acórdão recorrido o seguinte: “No entanto, se o depósito está documentado através de docs. a fls. 163 e 164 ... a verdade é que já o doc. de fls. 165 e 166 não passa de um documento interno”.
7) O documento em questão que é parte integrante de uma certidão do processo de inquérito com o n.º XXXXX/2015, que consubstanciou a relação de depósito entre Recorrente e Recorrido é tão só uma fotocópia.
8) Tendo este facto sido alegado a artigo 18.º da p.i apresentada pelo Recorrido.
9) A admitir a relação de depósito que se fundou numa mera fotocópia de um talão de depósito, também teríamos que aceitar o documento interno admitido pela ora Recorrente.
10) O tribunal a quo lança a seguinte questão: “A coisa já não existia na sua esfera de poder, por a quantia ter sido levantada?”, respondendo assim: “Essa é uma questão que deveia ter merecido outra atenção e diligência por parte da “DORE”. Com efeito, o desaparecimento, extravio ou dissipação da coisa só desonera o depositário se provar que não houve qualquer culpa nesse desaparecimento, já que contratualmente e legalmente lhe cabe guardar a coisa com diligência e zelo.”
11) Na verdade, a Recorrente apresentou razões plausíveis para a sua desoneração, na medida em que, se viu privada de inúmeros documentos internos. Já para não dizer que o escândalo que rebentou na B foi notícia em todos os jornais de Macau, sendo assim, um facto notório e conhecido.
12) Não se podendo conceder, quando o tribunal a quo refere que “... então ser-lhe-ia, muito fácil através dos registos físicos ou informáticos apurar quem realmente procedeu ao levantamento. Uma vez que não foi capaz de demonstrar quem procedeu ao levantamento, não se pode concluir “a contrario” que quem fez foi o autor.”
13) Ora, se de uma banda o documento interno a fls. 165 a 166 regista um depósito e um levantamento da quantia em questão, de outro, o tribunal entende que a Recorrente teria em seu poder meios que permitissem apurar quem procedeu ao levantamento.
14) Contudo, e como já dito, a informação de que a Recorrente dispõe é somente a que consta dos autos.
15) Como dito pela testemunha da Recorrente necessário é que se apresente um talão original para que se possa devolver qualquer montante que haja sido depositado, se tiver sido depositado junto da Recorrente.
16) Ora, se há uma obrigação de zelo por parte da Recorrente enquanto depositária, tal obrigação também é extensível ao Recorrido, depositante.
17) Consequentemente, não dispondo o Recorrido do talão original de depósito, e, por a Recorrente ter sido alvo de um desfalque na sua tesouraria, assim, como da dissipação de documentos internos, tal constitui uma razão de desoneração da Recorrente perante o Recorrido, contrariando, assim, com devido respeito, a tribunal assumida pelo tribunal recorrido (sic).
18) Acresce que, na medida em que, face ao supra exposto, a ora Recorrente se encontra desonerada da obrigação de restituição, também não poderão ser devidos quaisquer montantes a título de juros.
- Do recurso da 2.ª Ré C
(i) O Tribunal Judicial de Base condenou a B no pedido em sede de responsabilidade meramente contratual;
(ii) O Acórdão recorrido confirmou essa decisão sem reservas;
(iii) O Acórdão recorrido condenou a Recorrente com base no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 por entender que (a) este enuncia um princípio de responsabilidade das concessionárias de jogo perante terceiros por actos dos promotores de jogo; (b) o depósito em numerário realizado pelo Recorrido junto da B subsumia-se no segmento da previsão normativa do artigo 29.º que se refere à actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, não tendo o Acórdão considerado preenchido qualquer outro segmento da previsão normativa;
(iv) O Regulamento Administrativo n.º 6/2002 é um regulamento complementar;
(v) O seu artigo 29.º regulamenta o n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo, por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação;
(vi) A interpretação do referido artigo 29.º professada no Acórdão recorrido importa que as concessionárias respondam objectivamente perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo, por estes contraídas no exercício da própria empresa, como se aquelas fossem suas fiadoras ope legis;
(vii) Isso representaria um risco extremo e injustificado, não explicado por qualquer circunstância especial da relação que se estabelece entre concessionárias e promotores;
(viii) Os promotores de jogo são entidades autónomas, actuam em concorrência virtual com as concessionárias e estão sujeitos a licenciamento, exames à escrita e auditorias do regulador, corporizado na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
(ix) Por conseguinte, o artigo 29.º não responsabiliza as concessionárias perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores, contraídas no exercício da própria empresa;
(x) Se o legislador tivesse querido instilar-lhe esse sentido, tê-lo-ia expressado em termos inequívocos;
(xi) O Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva ao interpretar o referido artigo 29.º e aplicá-lo na condenação da Recorrente, nos moldes supra descritos;
(xii) O Acórdão recorrido fundamenta ainda a condenação da Recorrente na norma contida na alínea 5) do artigo 30.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, o que se afigura incorrecto porque a mesma só poderia ser aplicada com apoio em matéria de facto que não se provou;
(xiii) Aliás, a especificação de um regime de solidariedade na condenação da Recorrente sempre afastaria necessariamente a possibilidade de esta se alicerçar na aludida alínea 5) do artigo 30.º;
(xiv) Por cautela de patrocínio, sempre se dirá que o Tribunal a quo teria então (a) violado lei substantiva por considerar que a quebra do dever imposto pela norma gera responsabilidade perante o público, e não apenas perante o regulador, e, (b) à luz do artigo 575.º do Código de Processo Civil, ofendido a força do caso julgado formal do acórdão do tribunal colectivo que em primeira instância, julgando a matéria de facto, não encontrou qualquer violação do dever de fiscalização, e (c) nos termos do artigo 562.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, desprezado a função dos factos provados como premissa da decisão, incorrendo assim, em ambos os casos, em violação da lei de processo.

Contra-alegando, aponta o Autor para sentido de negar provimento aos recursos, mantendo-se o acórdão ora recorrido.
Foram corridos vistos.
Cumpre decidir.

2. Os Factos
Nos autos deu-se como provada a seguinte factualidade:
“Da Matéria de Facto Assente:
- A 1ª Ré foi criada no dia 12 de Julho de 2006 em Macau e registada na Conservatória de Registo Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o nº 25221(SO). (alínea A) dos factos assentes)
- Esta Sociedade dedica-se à promoção de jogos de fortuna e azar em casino e de outras apostas em jogo. (alínea B) dos factos assentes)
- A 2ª Ré foi criada em 17 de Outubro de 2001 e registada no mesmo dia na Conservatória de Registo Comercial e de Bens Móveis sob o nº 14917(SO) (anexo 3). (alínea C) dos factos assentes)
- Esta Sociedade dedica-se à promoção de jogos de fortuna e azar em casino e de outras apostas em jogo (anexo 3). (alínea D) dos factos assentes)
- No dia 24 de Junho de 2002, a 2ª Ré celebrou com a Região Administrativa Especial de Macau um “Contrato de Concessão para Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar em Casino ou Outros Jogos em Casino com a Região Administrativa Especial de Macau” que começou a produzir efeitos no dia 27 de Junho de 2002. (alínea E) dos factos assentes)
- No dia 8 de Setembro de 2006, a 2ª Ré assinou a “Primeira Alteração ao Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino” celebrado entre a 2ª Ré e a Região Administrativa Especial de Macau (anexo 5). (alínea F) dos factos assentes)
- A partir de 2005, a 1ª Ré é uma promotora de jogo e com a licença nº E089 (anexo 6). (alínea G) dos factos assentes)
- Considerando que a 1ª Ré celebrou com a 2ª Ré o “Contrato de Promotor de Jogo” e o “Acordo de Concessão de Crédito” pelo que a 2ª Ré autorizou a 1ª Ré a exercer a actividade de promotor de jogo e a actividade de concessão de crédito para jogo no seu casino. (alínea H) dos factos assentes)
- A 1ª Ré abriu a [Sala VIP] no casino da 2º Ré. (alínea I) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- O Autor é cliente da [Sala VIP] explorada pela 1ª Ré. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O Autor abriu a conta nº XXXXXXXX em seu nome na [Sala VIP]. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O objectivo do Autor na abertura da conta acima referida era para que este pudesse dedicar-se ao trabalho de bate-fichas no futuro. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- No dia 2 de Abril de 2014, o Autor depositou a quantia de setecentos mil dólares de Hong Kong (HKD$700.000,00) mais o valor de trezentos mil dólares de Hong Kong (HKD$300.000,00) na conta nº XXXXXXXX da [Sala VIP]. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Depois de ter feito o depósito, a 1ª Ré emitiu o “Guia de depósito de fichas” nº XXXXXX ao Autor e que “servia para provar que A (o depositante) depositou às 15:45 a quantia de uma milhão de dólares de Hong Kong (HKD$1.000.000,00) na conata nº XXXXXXXX”. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- No dia 9 de Setembro de 2015, o Autor pediu à 1ª Ré que lhe devolvesse a quantia de um milhão de dólares de Hong Kong. (resposta ao quesito 6 da base instrutória)
- A Ré não deixou ao Autor levantar a referida quantia de um milhão de dólares de Hong Kong (HKD$1.000.000,00) depositada na conta. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Depois o Autor dirigiu-se por diversas vezes à [Sala VIP] a pedir para levantar a quantia de um milhão de dólares de Hong Kong (HKD$1.000.000,00) mas o funcionário da Sala VIP recusou. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)”.

3. O Direito
Há que apreciar as questões suscitadas pelas recorrentes/Rés.

3.1. Do recurso da 1.ª Ré B
Tal como se pode constatar nas conclusões por si apresentadas, a 1.ª Ré insiste em defender a sua desoneração da obrigação de restituição ao Autor da quantia por este depositada, alegando que “a admitir a relação de depósito que se fundou numa mera fotocópia de um talão de depósito, também teríamos que aceitar o documento interno admitido pela ora Recorrente”, que supostamente comprovou o levantamento da quantia, e que, “não dispondo o Recorrido do talão original de depósito, e, por a Recorrente ter sido alvo de um desfalque na sua tesouraria, assim, como da dissipação de documentos internos, tal constitui uma razão de desoneração da Recorrente perante o Recorrido”.
Para uma melhor compreensão da tese da recorrente, mostra-se adequado transcrever a decisão do TSI, na parte que interessa para o presente recurso:
«A recorrente “DORE” acha que “muito mal” andou o tribunal “a quo” em dar como provada aquela factualidade.
Isto porque entende que nenhum deles poderia ser dado como provado, pela simples razão de que a quantia depositada pelo A. já tinha sido levantada.
Compreendemos, em parte, a indignação da recorrente, mas a sua justificação para o provimento do recurso deve ser considerada improcedente. Expliquemos.
A recorrente apela ao depoimento da 2ª testemunha D em conjugação com a documentação existente nos autos a fls. 163-166. Em sua opinião o tribunal dispunha de elementos bastantes para dar como não provados aqueles dois artigos da BI ou então dar uma resposta justificativa, que esclarecesse que a DORE não procedeu à restituição do valor do depósito de um milhão de dólares de Hong Kong porque essa quantia já tinha sido levantada.
No entanto, se o depósito está documentado através dos docs. de fls. 163 e 164, os quais serviram para dar por provado o art. 4º da BI, a verdade é que já o doc. de fls. 165 e 166 não passa de um documento interno da própria ré, que não é necessariamente a reprodução fiel dos movimentos efectuados nas relações entre si e o autor. O tribunal “a quo”, no quadro da análise holística que fez dos elementos recolhidos no processo, com relevo para o princípio da imediação e da livre convicção que pôde alcançar, não lhe atribuiu valor probatório e este TSI também não tem melhores motivos para lho conferir.

Ultrapassada a 1ª questão, logo a recorrente se apressa em insurgir-se contra a sua condenação, considerando pela segunda vez ter o tribunal “a quo” andado “muito mal” (sic) na solução que encontrou. Em sua opinião, não pode ser condenada a restituir o que não possui, face ao levantamento da quantia referida.
A verdade é que houve um contrato de depósito (art. 1111º do CC), que, nos termos do art. 1113º, al. c), do CC, obriga o depositário a restituir ao depositante.
A coisa já não existia na sua esfera de poder, por a quantia ter sido levantada?
Essa é uma questão que deveria ter merecido outra atenção e diligência por parte da “DORE”. Com efeito, o desaparecimento, extravio ou dissipação da coisa só desonera o depositário se provar que não houve qualquer culpa nesse desaparecimento, já que contratual e legalmente lhe cabe guardar a coisa com diligência e zelo (em sentido semelhante, em direito comparado, da RC, de 4/04/1995, in BMJ nº 446, pág. 365 e STJ, de 18/04/2006, Proc. nº 06A724, in CJ, 2006, II, pág. 48).
Neste caso concreto, se, tal como afirmou a testemunha da ré ouvida em audiência, D, aquando do levantamento do dinheiro depositado, o interessado tem que apresentar documento de identificação e o original do talão de depósito, então ser-lhe-ia muito fácil através dos registos físicos ou informáticos apurar quem realmente procedeu ao levantamento. Uma vez que não foi capaz de demonstrar quem procedeu ao levantamento, não se pode concluir “a contrario” que quem o fez foi o autor.
E como esta matéria era impeditiva do direito invocado pelo autor, cumpria à “DORE” provar este efectivo levantamento por parte do autor, pois era factualidade claramente exceptiva. Na falta da prova pelo onerado com ela, a dúvida resolve-se contra quem incide o ónus (art. 335º, nº2 do CC e 437º do CPC).
Temos assim que alguém levantou o dinheiro, sem se saber quem o fez. E como o depositário não foi diligente na devolução ao não ter o cuidado de registar a quem a fez, cai por terra a excepção peremptória que sobre si impendia.
Deste modo, não escapa à responsabilidade de devolver aquela soma de dinheiro ao autor.»
Resumindo, no entendimento do TSI a recorrente não conseguiu provar o “efectivo levantamento por parte do autor”, sendo certo que, por ser factualidade claramente exceptiva, cumpria à recorrente prová-la.
A questão suscitada pela recorrente no presente recurso continua a prender-se com a decisão da matéria de facto.
Desde logo, é de reiterar aqui a posição uniforme deste TUI quanto aos poderes de cognição do TUI sobre a matéria de facto.1
É consabido que, em recurso cível correspondente a 3.º grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, de matéria de direito e não de facto e a sua competência em apreciar a decisão de facto fica limitada, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância quanto à matéria de facto é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC, isto é, se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Por exemplo, “Quando o Tribunal de Segunda Instância considere não provado um facto que esteja provado por meio de prova que constitua prova plena, pode o Tribunal de Última Instância alterar a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 649.º do Código de Processo Civil”.2
No presente caso, tomando em consideração os elementos probatórios indicados pela recorrente, documental e testemunhal, evidentemente não se vê a verificação da situação prevista na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC.
E nem a recorrente chegou a indicar qualquer norma legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Não se nos afigura merecer censura a decisão do TSI, que fez a ponderação objectiva e correcta dos elementos probatórios.
O que importa é que, conforme as regras de ónus de prova, compete à recorrente provar o alegado levantamento da quantia pelo Autor, que na perspectiva da recorrente, a desonera da obrigação de restituição (tratando-se assim do facto impeditiva do direito invocado pelo autor), o que não conseguiu fazer. E “na falta da prova pelo onerado com ela, a dúvida resolve-se contra quem incide o ónus (art. 335º, nº 2 do CC e 437º do CPC)”.
Conclui-se pela manifesta improcedência do recurso.

3.2. Do recurso da 2.ª Ré C
A recorrente põe em questão a sua condenação solidária no pagamento da quantia reportada nos autos.
Na óptica da recorrente, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 é um regulamento complementar, sendo certo que o seu art.º 29.º regulamenta o n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação, e não perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo contraídas no exercício da própria empresa.
Imputa ainda os vícios indicados na al. (xiv) das suas conclusões alegando que o acórdão recorrido procedeu incorrectamente ao fundamentar a condenação da recorrente na norma contida na al. 5) do art.º 30.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, porque a mesma só poderia ser aplicada com apoio em matéria de facto que não se provou.
Desde logo, repare-se que, em outros processos e sobre a questão idêntica, também suscitada pela ora recorrente, este Tribunal de Última Instância já foi chamado, por várias vezes, para emitir a pronúncia.3
É de lembrar que, no seu acórdão proferido em 19-11-2021 no Processo n.º 45/2019, já transitado em julgado, o TUI fez uma análise profunda sobre a questão e expôs o seu entendimento quanto à interpretação do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e da sua relação para com o art.º 23.º, n.º 3 da Lei n.º 16/2001, tendo concluído pela responsabilidade solidária das concessionária perante terceiros, dado que «o art. 23º da Lei n.º 16/2001, (“Lei do jogo”), e o art. 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, sobre a “actividade de promoção de jogos”, tem sentido e alcance distintos: enquanto no dito art. 23º (da “Lei do jogo”) se prevê uma responsabilidade da concessionária de jogo para com a “entidade concedente”, o art. 29º do referido Regulamento Administrativo impõe àquela uma responsabilidade (solidária) “perante terceiros”» (cfr. sumário do acórdão).
É de manter a posição exposta nesse acórdão, não se vislumbrando razão para a alterar, pelo que remetemos para a fundamentação constante do mesmo acórdão, que se mostra válida e adequada também ao presente caso.
E concluído pela responsabilidade solidária das concessionárias perante terceiros, nos termos do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, independentemente da aplicação da al. 5) do art.º 30.º, não há necessidade de conhecer da questão suscitada pela recorrente e relacionada com a aplicação desta norma, com imputação dos vícios indicados na al. (xiv) das conclusões, respeitantes à violação da lei substantiva e da lei de processo.
Acresce que, tal como a própria recorrente fez notar, ela foi condenada pelo acórdão recorrido “com base no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002”.
Improcede o recurso da 2.ª Ré.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos.
Custas pelas recorrentes, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs para cada.
Notifique (enviando-se cópia do acórdão proferido no Processo n.º 45/2019).

                  28 de Janeiro de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
                   
1 Cfr. Ac.s do TUI, de 11-3-2008, Proc. n.º 51/2007, de 4-6-2014, Proc. n.º 12/2013, de 10-6-2020, Proc. n.º 48/2020, de 26-6-2020, Proc. n.º 66/2020, de 10-12-2021, Proc. n.º 21/2020 e de 17-12-2021, Proc. n.º 140/2021, entre outros.
2 Ac. do TUI, de 23-4-2003, Proc. n.º 6/2003.
3 Cfr. Ac.s do TUI, de 19-11-2021, Proc. n.º 45/2019, de 12-1-2022, Procs. n.ºs 50/2020 e 76/2020, e de 19-1-2022, Proc. n.º 121/2020.
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Processo n.º 46/2020