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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A (甲), melhor identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário (Processo n.º CV1-17-0103-CAO) contra B (1.ª Ré) e C (2.ª Ré), pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de HKD$2.500.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal contados a partir da data da citação até ao integral pagamento da quantia.
Por sentença constante de fls. 221 a 228 dos autos, o Tribunal julgou a acção procedente e, em consequência, condenou solidariamente as Rés a devolver à Autora a quantia peticionada.
Dessa sentença recorreram as Rés para o Tribunal de Segunda Instância, que por acórdão proferido no Processo n.º 168/2020 julgou improcedentes ambos os recursos, mantendo na íntegra a sentença recorrida (fls. 309 a 324v dos autos).
Vêm agora as duas Rés recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Do recurso da 1.ª Ré B
1) O acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, e do qual se recorre negou provimento ao recurso da ora Recorrente, confirmando a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
2) O Tribunal a quo, entendeu que a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância não merecia censura, no que dizia respeito à apreciação de prova e que, assim sendo, o conhecimento da matéria de direito se encontrava prejudicado.
3) Ora, com o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo.
4) Nos presentes autos, o ora Recorrido pediu a condenação da 1.a Ré, ora Recorrente e da 2.a Ré, no montante de HKD$2,500,000.00 (dois milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong), equivalente a MOP$2,575,000.00 (dois milhões quinhentos e setenta e cinco mil patacas), acrescido dos respectivos juros moratórios.
5) Quantia essa titulada por um talão de depósito datado de 19 de Agosto de 2015, com o no.º DAXXXXXX.
6) Nos presentes autos está em crise a relação de depósito existente entre 1.ª Recorrente e a Recorrida e responsabilização da Recorrente.
7) Ora, de modo a que a responsabilização se efective, cumpre aferir dos requisitos dessa relação de depósito e os seus pressupostos se mantêm.
8) Inexiste nos autos qualquer informação que corrobore o depósito conforme alegado pela Recorrida, ou seja, inexiste qualquer registo de depósito da quantia demandada nos autos.
9) A isto acresce que, os documentos apresentados pela Autora, a fls. 60 e 200, referidos como “originais”, correspondem, antes a um duplicado, que pertencia a um conjunto de um original e três duplicados.
10) O que até pela sua cor se pode aferir, pois, cor-de-rosa não é a cor de um talão original de depósito, mas azul.
11) A isto acresce que, dos dois documentos juntos pela ora Ré, consta uma conta aberta pela Ré com o n.º XXXXX e um registo relativamente a uma conta com o n.º XXXXXXXXA.
12) E no talão de depósito, consta o n.º de conta XXXXXXX.
13) Com isto queremos dizer, que existe, sim, uma discrepância entre o número de conta em que alegadamente foi realizado o depósito do montante demandado pela Recorrida, e pelas informações apresentadas pela Recorrente. E tal, releva para aferir da relação de depósito.
14) Nos presentes autos, está em crise a relação de depósito existente entre 1.ª Recorrente e a Recorrida e responsabilização da primeira, regulada nos termos do artigo 1111.º do Código Civil e ss, tendo sido o entendimento do Tribunal de Primeira Instância e do Tribunal de Segunda Instância que existiu uma entrega da Recorrida à ora Recorrente, e que cabia à Recorrente ter procedido à devolução dos montantes em questão nos presentes autos.
15) Como já referido, inexistem nos autos quaisquer elementos que nos possam levar a concluir por um depósito da quantia demandada nos autos.
16) E face a esta ausência, naturalmente seria de entender que não se estabeleceu uma relação de depósito entre Recorrente e Recorrida.
17) A ora Recorrente mesmo que concedesse, (que não concede) que tivesse havido lugar à realização de qualquer depósito, desonera-se se provar que não houve qualquer culpa nesse desaparecimento ou extravio.
18) Ora, a aceitar-se um depósito (que não se pode aceitar), facto é que a Recorrente encontra-se desonerada, na medida em que, por razões alheias à sua vontade, viu-se privada de inúmeros documentos e informações atinentes ao funcionamento enquanto sociedade promotora de jogos de fortuna e de azar.
19) Já para não dizer que, o avultado desvio de fundos nas instalações da Recorrente foi notícia em todos os meios de comunicação de Macau. Pelo que, é um facto notório e conhecido.
20) Ora, se há uma obrigação de zelo por parte da Recorrente enquanto depositária, tal obrigação também é extensível à Recorrida, depositante.
21) Entendemos, pois, não se sabendo que tipo de talão estamos perante, apenas que se trata de um duplicado, sequer em que conta (se) foi depositada a quantia em questão, e, por a Recorrente ter sido alvo de um desfalque na sua tesouraria, e terem desaparecido inúmeros documentos internos, tal constitui uma razão de desoneração da Recorrente perante a Recorrida.
22) Assim sendo, é a ora Recorrente do entendimento que, pelas razões supra melhor expostas, se encontra desonerada da obrigação de restituição à Recorrida.
23) E tal, nos termos e para os efeitos dos artigos 335.º do Código Civil e 437.º do Código de Processo Civil, é um facto, extintivo da obrigação que impende sobre a Recorrente.
24) Acresce que, na medida em que, face ao supra exposto, a ora Recorrente se encontra desonerada da obrigação de restituição, também não poderão ser devidos quaisquer montantes a título de juros.
25) Pelo que, entendemos que a decisão do douto acórdão ora recorrido deverá ser revogado e a Recorrente em consequência deverá ser absolvida.
- Do recurso da 2.ª Ré C
(i) O Acórdão recorrido condenou a B no pedido em sede de responsabilidade meramente contratual;
(ii) O Acórdão recorrido condenou a Recorrente com base no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 por entender que (a) este enuncia um princípio de responsabilidade das concessionárias de jogo perante terceiros por actos dos promotores de jogo; (b) o depósito realizado pelo Recorrido junto da B subsumia-se no segmento da previsão normativa do artigo 29.º que se refere à actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, e (c) a omissão pela Recorrente do seu dever de fiscalização da actividade da B, consagrado no artigo 30.º, alínea 5), do dito Regulamento, é o factor que precipitou a sua responsabilização pelo incumprimento por banda da B do contrato de depósito que celebrara com a Recorrida;
(iii) O Regulamento Administrativo n.º 6/2002 é um regulamento complementar;
(iv) O seu artigo 29.º regulamenta o n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo, por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação;
(v) A interpretação do referido artigo 29.º implicitamente professada no Acórdão recorrido importa que as concessionárias respondam objectivamente perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo, por estes contraídas no exercício da própria empresa, como se aquelas fossem suas fiadoras ope legis;
(vi) Isso representaria um risco extremo e injustificado, não explicado por qualquer circunstância especial da relação que se estabelece entre concessionárias e promotores;
(vii) Os promotores de jogo são entidades autónomas, actuam em concorrência virtual com as concessionárias e estão sujeitos a licenciamento, exames à escrita e auditorias do regulador, corporizado na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
(viii) O artigo 29.º não responsabiliza as concessionárias perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores, contraídas no exercício da própria empresa;
(ix) Se o legislador tivesse querido instilar-lhe esse sentido, tê-lo-ia expressado em termos inequívocos;
(x) O Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva ao interpretar o referido artigo 29.º e aplicá-lo na condenação da Recorrente, nos moldes supra descritos;
(xi) Não há relação de causa/efeito entre a fiscalização pela concessionária ou subconcessionária da actividade do promotor de jogo e o cumprimento por este das suas obrigações contratuais; pode haver fiscalização, seguida de incumprimento, como pode haver falta de fiscalização seguida de cumprimento;
(xii) Daqui resulta que a omissão do dever da concessionária ou subconcessionária, estabelecido pelo artigo 30.º, alínea 5), do Regulamento, de fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais do seu promotor de jogo, não explica, justifica, legitima, confere fundamento ou precipita a responsabilização solidária da concessionária ou subconcessionária com o promotor pelo incumprimento das obrigações contratuais deste;
(xiii) Tendo decidido em contrário, o Acórdão recorrido violou e fez errada aplicação de lei substantiva, a saber, os referidos artigos 29.º e 30.º, alínea 5), do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.

Contra-alegando, aponta a Autora para sentido de negar provimento aos recursos, mantendo-se o acórdão ora recorrido.
Foram corridos vistos.
Cumpre decidir.

2. Os Factos
Nos autos deu-se como provada a seguinte factualidade:
a) A 1ª Ré, B foi estabelecida em 12 de Julho de 2006 em Macau e registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis em 22 de Agosto de 2006 sob o número de registo: 25221S0; (alínea a) dos factos assentes)
b) A 1ª Ré promove as actividades de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino; (alínea b) dos factos assentes)
c) A partir de 2005, a 1ª Ré tornou-se uma promotora de jogo com o número de E089; (alínea c) dos factos assentes)
d) A 2ª Ré, C foi criada em 17 de Outubro de 2001 e registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis no mesmo dia sob o número de registo: 14917S0M; (alínea d) dos factos assentes)
e) A 2ª Ré explora os jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino; (alínea e) dos factos assentes)
f) Em 24 de Junho de 2002, a 2ª Ré celebrou com a RAEM o “Contrato de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na RAEM”; (alínea f) dos factos assentes)
g) Em 8 de Setembro de 2006, a 2ª Ré celebrou com a RAEM a “Primeira alteração ao contrato de concessão para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau”; (alínea g) dos factos assentes)
h) O contrato referido no item e) começou a produzir efeitos a partir de 27 de Junho de 2002; (alínea h) dos factos assentes)
i) A 1ª Ré foi autorizada pela 2ª Ré a realizar actividades de promotor de jogo e da concessão de créditos; (alínea i) dos factos assentes)
j) A 1ª Ré abriu a [Sala VIP] nas instalações da 2ª Ré; (alínea j) dos factos assentes)
k) A Autora A é cliente da [Sala VIP] explorada pela 1ª Ré; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
l) A Autora abriu uma conta de jogo nº XXXXXXXXA na [Sala VIP]; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
m) A Autora abriu a referida conta de jogo na [Sala VIP] explorada pela 1ª Ré a fim de executar o trabalho de “bate-fichas”; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
n) Em 17 de Julho de 2015, a Autora pediu ao estabelecimento de relógios, jóias e ouro “X X Chong Pio Chu Pou Kam Hong” (XX鐘錶珠寶金行) o empréstimo de quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD500.000,00) em numerário; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória)
o) Em 21 de Julho de 2015, a Autora pediu ao estabelecimento de relógios, jóias e ouro “X X Chong Pio Chu Pou Kam Hong” o empréstimo de trezentos mil dólares de Hong Kong (HKD300.000,00) em numerário; (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
p) No mesmo dia, a Autora pediu novamente ao estabelecimento de relógios, jóias e ouro “X X Chong Pio Chu Pou Kam Hong” o empréstimo de trezentos mil dólares de Hong Kong (HKD300.000,00) em numerário; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
q) Em 19 de Agosto de 2015, a Autora depositou dois milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD2.500.000,00) na [Sala VIP] explorada pela 1ª Ré; (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória)
r) Depositada a referida quantia, a 1ª Ré emitiu à Autora um “recibo de depósito” nº XXXXXX, cujo teor é: “certifica-se que (depositária) A; hora: 18:00; número de cliente: XXXXXXXX; deposita dois milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD2.500.000,00) em numerário”; (resposta ao quesito nº 8 da base instrutória)
s) O referido recibo de depósito foi assinado pelo tesoureiro e pela testemunha da [Sala VIP] para efeitos de confirmação e também assinado pela autora, ou seja, a depositária, de forma a provar que essa quantia foi depositada na conta de jogo aberta pela Autora na [Sala VIP]; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
t) Assim, depois de a Autora ter depositado no dia 19 de Agosto de 2015 os referidos dois milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD2.500.000,00) na [Sala VIP], nunca mais efectuou o seu levantamento. (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória).

3. O Direito
Há que apreciar as questões suscitadas pelas recorrentes/Rés.

3.1. Do recurso da 1.ª Ré B
Tal como se pode constatar nas conclusões por si apresentadas, pondo em causa a matéria de facto considerada provada pelo tribunal, a recorrente defende a sua desoneração da obrigação de restituir à Autora a quantia reclamada, alegando que inexistem nos autos quaisquer elementos que possam leva a concluir por um depósito da quantia e, mais, que ela “encontra-se desonerada, na medida em que, por razões alheias à sua vontade, viu-se privada de inúmeros documentos e informações atinentes ao funcionamento enquanto sociedade promotora de jogos de fortuna e de azar”, sendo um facto notório e conhecido que “o avultado desvio de fundos nas instalações da Recorrente foi notícia em todos os meios de comunicação de Macau”, o que “constitui uma razão de desoneração da Recorrente perante a Recorrida”.
No acórdão ora recorrido e quanto à impugnação feita pela recorrente da matéria de facto, e após a transcrição da fundamentação da convicção formada pelo TBJ e das considerações doutrinais sobre a função do recurso ordinário no processo civil nesta matéria, afirma o TSI que:
“… para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
In casu, nada disso foi alegado em relação à valoração dos depoimentos testemunhais.
Ao passo que, em relação ao exames de documentos, a recorrente insinuou que houve erro na valoração dos documentos a fls. 154 e 155, tendo dito que:
13) O documento apresentado pela Recorrida em sede de audiência de julgamento é cor-de-rosa, e não azul, e a isto acresce que, de acordo com a prova constante dos autos, a fls. 154 e 155, o número de conta em nome da Recorrida é XXXXX e a único registo que têm em nome da Recorrida é numa conta com número XXXXXXXXA.
14) Sucede que, o número de conta constante do recibo cor-de-rosa apresentado pela Autora é XXXXXXXX.
15) A prova documental a que nos referimos foi oferecida aos autos pela Autora, e havendo dúvidas sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, deverá recair sobre quem contra quem aproveita o facto, nos termos do artigo 437.º do Código de Processo Civil.
Todavia, é falsa a alegada discrepância!
Pois tanto o original do recibo de depósito a fls. 200, junto pela Autora na audiência de julgamento, como a pública-forma do mesmo recibo a fls. 60, apresentada pela Autora com a p.i., contém o número de conta da Autora que é XXXXXXXX, que correspondente exactamente ao número mencionado no documento a fls. 155, trazido aos autos pela ora recorrente B!
Tirando a tal alegada discrepância que afinal inexiste, o que fez a recorrente não é mais do que valorar, ela própria, as provas em causa, e formar a sua convicção, diversa da formada pelo Colectivo a quo, sem que tenha sido apontado o erro manifesto na apreciação da prova.
Nestas circunstâncias, nada temos para legitimar este Tribunal de recurso para sindicar a decisão de facto de primeira instância.
Improcede in totum a impugnação da matéria de facto.”
Não se nos afigura merecer censura a decisão do TSI, que fez a ponderação objectiva e correcta dos elementos probatórios.
O que importa é que, face aos elementos probatórios carreados aos autos, se considera provado que a Autora chegou a depositar a quantia reclamada cujo levantamento foi recusado, pelo que improcede o argumento deduzido pela recorrente sobre a desoneração da obrigação de restituição da quantia.
A questão suscitada pela recorrente no presente recurso continua a prender-se com a decisão da matéria de facto.
Desde logo, é de reiterar aqui a posição uniforme deste TUI quanto aos poderes de cognição do TUI sobre a matéria de facto.1
É consabido que, em recurso cível correspondente a 3.º grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, de matéria de direito e não de facto e a sua competência em apreciar a decisão de facto fica limitada, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância quanto à matéria de facto é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC, isto é, se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Por exemplo, “Quando o Tribunal de Segunda Instância considere não provado um facto que esteja provado por meio de prova que constitua prova plena, pode o Tribunal de Última Instância alterar a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 649.º do Código de Processo Civil”.2
No presente caso, tomando em consideração os elementos probatórios indicados pela recorrente, documental e testemunhal, evidentemente não se vê a verificação da situação prevista na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC, que permite a intervenção do TUI na decisão de matéria de facto do TSI.
E a recorrente nem sequer chegou a indicar qualquer norma legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Quanto ao “avultado desvio de fundos” e desaparecimento de “inúmeros documentos internos”, alegado pela recorrente no presente recurso, é de salientar que tal facto, “notório e conhecido” no seu entendimento, não tinha sido alegado no recurso interposto para o TSI, independentemente de se tratar realmente do facto notório, pelo que não foi apreciado e, em consequência, também não pode ser conhecido pelo TUI.
Conclui-se pela manifesta improcedência do recurso.

3.2. Do recurso da 2.ª Ré C
A recorrente põe em questão a sua condenação solidária no pagamento da quantia reclamada pela Autora.
Imputando a violação e errada aplicação dos art.ºs 29.º e 30.º, al. 5) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, alega a recorrente que, sendo este um regulamento complementar, o seu art.º 29.º regulamenta o n.º 3 do art.º 23.º da Lei n.º 16/2001 e consequentemente só trata da responsabilidade das concessionárias perante o Governo por actos praticados por promotores de jogo com os quais tem relação, e não perante terceiros por obrigações contratuais dos promotores de jogo contraídas no exercício da própria empresa, enquanto a omissão do dever da concessionária ou subconcessionária, estabelecido pelo art.º 30.º, al. 5) do Regulamento, de fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais do seu promotor de jogo, não explica, justifica, legitima, confere fundamento ou precipita a responsabilização solidária da concessionária ou subconcessionária com o promotor pelo incumprimento das obrigações contratuais deste.
Ora, sobre a questão de responsabilidade solidária da concessionária, este Tribunal de Última Instância já foi chamado, por várias vezes, para emitir a pronúncia, em processos onde se discute também a mesma questão suscitada pela ora recorrente.3
É de lembrar que, no acórdão proferido em 19-11-2021 no Processo n.º 45/2019, já transitado em julgado, o TUI fez uma análise profunda sobre a questão e expôs o seu entendimento quanto à interpretação do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e da sua relação para com o art.º 23.º, n.º 3 da Lei n.º 16/2001, tendo concluído pela responsabilidade solidária das concessionária perante terceiros, dado que «o art. 23º da Lei n.º 16/2001 (“Lei do jogo”), e o art. 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, sobre a “actividade de promoção de jogos”, tem sentido e alcance distintos: enquanto no dito art. 23º (da “Lei do jogo”) se prevê uma responsabilidade da concessionária de jogo para com a “entidade concedente”, o art. 29º do referido Regulamento Administrativo impõe àquela uma responsabilidade (solidária) “perante terceiros”» (cfr. sumário do acórdão).
É de manter a posição exposta nesse acórdão, não se vislumbrando razão para a alterar, pelo que remetemos para a fundamentação constante do mesmo acórdão, que se mostra válida e adequada também ao presente caso.
E concluído pela responsabilidade solidária das concessionárias perante terceiros, nos termos do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, independentemente da aplicação da al. 5) do art.º 30.º, não há necessidade de conhecer da questão suscitada pela recorrente e relacionada com a aplicação desta norma.
Acresce que, tal como a própria recorrente fez notar, ela foi condenada pelo acórdão recorrido “com base no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002”.
Improcede o recurso da 2.ª Ré.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos.
Custas pelas recorrentes, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs para cada.
Notifique (enviando-se cópia do acórdão proferido no Processo n.º 45/2019).

                  28 de Janeiro de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
                   
1 Cfr. Ac.s do TUI, de 11-3-2008, Proc. n.º 51/2007, de 4-6-2014, Proc. n.º 12/2013, de 10-6-2020, Proc. n.º 48/2020, de 26-6-2020, Proc. n.º 66/2020, de 10-12-2021, Proc. n.º 21/2020 e de 17-12-2021, Proc. n.º 140/2021, entre outros.
2 Ac. do TUI, de 23-4-2003, Proc. n.º 6/2003.
3 Cfr. Ac.s do TUI, de 19-11-2021, Proc. n.º 45/2019, de 12-1-2022, Procs. n.ºs 50/2020 e 76/2020, e de 19-1-2022, Proc. n.º 121/2020.
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Processo n.º 205/2020