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Processo nº 3/2022 Data: 02.03.2022
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Direito da Propriedade Industrial.
Marca.
Registo.
Requisitos.
Capacidade distintiva.
Marca enganosa.
“Slogan”.
(“It’s like milk but made for humans”).



SUMÁRIO

1. A “Propriedade Industrial” é a área do Direito que garante a inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto – nos domínios industrial, científico, literário ou artístico – o direito de obter, por um determinado período de tempo, uma recompensa resultante da sua criação ou manifestação intelectual.

2. Não obstante de um ponto de vista “económico”, a uma marca caiba essencialmente desempenhar as funções de “indicação da origem” dos produtos ou serviços, de “garantia de qualidade” e ainda a função “publicitária”, atento ao preceituado no art. 197° do R.J.P.I., é de se concluir que a “função jurídica” da marca é a de identificar a proveniência de um produto ou serviço ao consumidor para, assim, permitir a sua “distinção” de outros produtos ou serviços produzidos ou postos no mercado, devendo assim ser entendida como “um sinal distintivo na concorrência de produtos e serviços”.

3. Podem existir os seguintes tipos de “marcas”:
- nominativas (ou denominativas): compostas apenas por elementos verbais, sejam palavras, letras ou números;
- figurativas: compostas apenas por elementos figurativos, como desenhos ou imagens;
- mistas: compostas por elementos verbais e figurativos; e,
- tridimensionais: compostas pela forma do produto ou da respetiva embalagem; (havendo ainda as “marcas de posição”, de “padrão”, de “cor”, de “movimento”, de “holograma”, assim como as “sonoras”, compostas por sons, e as “olfativas”, compostas pelo odor).

4. Um “slogan” pode o ser registado como “marca” desde que tenha “capacidade distintiva”.

5. Para se aferir de tal “capacidade distintiva” deve-se ponderar se o aludido sinal, (slogan):
- constitui um “jogo de palavras”; e/ou,
- introduz “elementos de intriga ou surpresa conceptual”, (com “duplo sentido”, para que possa ser considerado imaginativo, surpreendente ou inesperado); e/ou,
- tem uma “originalidade ou ressonância particular”; e/ou,
- desencadeia na mente do público relevante um “processo cognitivo”, suscitando a imaginação e exigindo um “esforço de interpretação”; e/ou,
- integra “estruturas ou combinações sintáticas originais/ invulgares”; e/ou,
- utiliza e recorre a “figuras de linguagem”, podendo integrar figuras de “semântica”, de “sintaxe” e de “som/fonética”, como v.g., sucede com o “paradoxo”, a “metáfora”, a “rima”, a “aliteração” e a “assonância”, (ou seja, repetição das mesmas letras ou sílabas numa frase, explorando o som das consoantes ou das vogais para gerar efeitos no texto), etc…

6. Na verdade, se dúvidas não há que uma frase (descritiva), com características “promocionais”, e que se limita a elogiar as qualidades dos produtos ou serviços não é passível de registo, o mesmo já não sucede com “frases” (ou expressões) que contenham as atrás aludidas “características”, e que, ainda que se possam considerar “simples”, não são “comuns”, ao ponto de, à partida, e de imediato, se (poder) excluir qualquer (necessidade de) análise e reflexão ou “esforço de interpretação”, desencadeando, por sua vez, um “processo cognitivo na mente do público” ao qual se dirige, e, sendo, por isso, de “fácil memorização”, o que as torna capaz de “distinguir os produtos a que dizem respeito dos produtos de empresas concorrentes”.

7. O motivo (absoluto) de recusa de registo relacionado com a “marca enganosa” constitui um fundamento de recusa de “ordem pública”, para defesa de diversos valores e interesses da sociedade como um todo.

8. Para determinar se um sinal pode provocar um risco de engano devem conjugar-se dois critérios básicos: o primeiro, consiste em relacionar o sinal solicitado como marca com os produtos ou serviços para as quais se haja apresentado a correspondente solicitação; o segundo, consiste em fixar a plataforma subjectiva, (ou público), a partir da qual se deverá apreciar se um sinal é enganoso.

O conceito de “público” tem contornos muito amplos que devem ser adaptados para cada caso concreto” de acordo com a “espécie de produtos ou serviços para os quais se solicita a marca.

O relator,

José Maria Dias Azedo
Processo nº 3/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A”, sociedade com sede em Malmo, Suécia, recorreu para o Tribunal Judicial de Base do despacho do Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia, (D.S.E.), que lhe recusou o registo da marca N/159515; (cfr., fls. 4 a 24-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Por sentença de 26.03.2021, (CV3-21-0001-CRJ), foi o recurso julgado improcedente; (cfr., fls. 82 a 85).

*

Inconformada com o decidido, a dita sociedade recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 23.09.2021, (Proc. n.° 537/2021), confirmou a sentença recorrida; (cfr., fls. 130 a 134-v).

*

Traz agora a mesma sociedade o presente recurso, pedindo a revogação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância com o consequente registo da sua pretendida marca.

Em sede das suas alegações, produz, a final, as conclusões seguintes:

“a. Foi o recurso interposto pela Recorrente julgado improcedente e decidido manter o despacho do DSEDT que recusou o registo da marca N/159515, na classe 25.
b. O Tribunal a quo manteve a decisão de recusa por entender que a marca registanda "IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS" não goza de capacidade distintiva, é constituída por um slogan que contém expressões que se tornaram usuais na linguagem corrente do comércio, e é susceptível de induzir o público em erro quanto à natureza e utilidade dos produtos que distingue.
c. No entender da Recorrente, a marca registanda não é, no seu todo, uma marca descritiva, nem induz em erro sobre as características dos produtos que visa distinguir.
d. Parecendo que apenas recusou a marca registanda por entender (erradamente) que se verificam tais fundamentos de recusa, sem oferecer qualquer justificação sólida do motivo porque entende que a marca não é distintiva.
e. Como é sabido, o registo de frases publicitárias, ou "slogans" como marca não é, assim, proibido por lei, devendo a sua aferição da distintividade ser feita nos mesmos termos exigidos para sinais.
f. Como é sabido, é um princípio comum em propriedade industrial que a distintividade de uma marca tem de ser aferida no contexto dos bens e serviços que visa distinguir.
g. A avaliação do carácter distintivo inerente do sinal e, neste caso, de um slogan, depende da marca em si e do contexto dos produtos e serviços que distingue.
h. Ora, o artigo 199.º, n.º 1, al. b) do RJPI apenas deverá ser aplicado quando o conteúdo descritivo da marca é imediato, claro e inconfundivelmente óbvio.
i. O registo apenas deverá ser recusado se a marca tiver um significado descritivo que seja imediatamente óbvio para o consumidor médio, sendo que marcas sugestivas ou alusivas são passíveis de registo.
j. Efectivamente, a marca só é efectivamente descritiva se, como referimos, for exclusiva e directamente descritiva.
k. Tal como refere o Tribunal de Segunda Instância de Macau "(…), é na marca, como um todo, que há-de afirmar-se ou negar-se o carácter distintivo ou a adequação para distinguir a origem comercial dos bens que se destina marcar".
l. O fundamental é que a análise da distintividade da marca seja feita relativamente aos produtos que visa distinguir.
m. Verificando que a marca registanda "IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS" solicita registo para produtos na classe 25, de vestuário, conclui-se que a marca registanda não é um sinal que descreva qualquer qualidade ou indicie estes produtos.
n. Por outro lado, também não se pode concluir que a marca "IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS" pode ser considerada como um sinal usual na medida em que não se tornou um sinal para identificar exclusivamente os seus produtos, isto é, roupas, sapatos chapéus…
o. O fundamento de recusa previsto no artigo 199.º, n.º 1, al. c) do RJPI apenas deverá ser aplicado quando a marca é composta por vocábulos ou figuras comumente utilizados no mercado, como expressões como "bica", "prego", "galão", "carioca", "fino" e "imperial".
p. O registo apenas deverá ser negado apenas quando os sinais ou indicações de que a marca for exclusivamente composta se tiverem efectivamente tornado usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio em relação aos produtos ou serviços para que tiver sido requerido o registo da referida marca, podendo ser concedido se não existir essa relação".
q. A distintividade da marca deverá ser novamente realizada com referência aos produtos que a marca assinada.
r. Assim, não é verdade que "IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS" é comummente utilizada no mercado para distinguir produtos de vestuário.
s. Também é infundado que a marca registanda induz o consumidor em erro.
t. De acordo com LUÍS COUTO GONÇALVES "à luz da actual disposição, o que é decisivo é a marca em si (e não o uso que dela se faz), em relação com os produtos ou serviços a que se destina, no seu conjunto, ou num dos seus elementos relevantes, ser susceptível de enganar o público (…)".
u. Ora, neste sentido, marcas enganosas seriam, por exemplo, a marca "Rum Negrita" para indicar produtos alcoólicos inteiramente diferentes do rum; a marca "Cristalis" destinada a artigos de vidro para uso doméstico por sugerir que se trata de cristal; ou a marca "Nuts" para chocolates e gelados à base de água, recusada em virtude de deles não fazerem parte quaisquer nozes ou frutos secos.
v. Ora, a marca "IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS" não se inclui nestas situações para os produtos de vestuário que assinala.
w. Com efeito, o consumidor não irá olhar para uma camisola, camisa ou t-shirt e julgar que se trata de produtos relacionados com leite.
x. Assim, é evidente que a marca registanda não induz o consumidor em erro e é, no entendimento da Recorrente, distintiva, devendo ser registada em Macau, uma vez que não se verificam os fundamentos de recusa previstos no art. 214°, n.° 2 al. a) e art. 199° n.° 1 al. b) e c), todos do RJPI”; (cfr., fls. 142 a 156).

*

Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, cumpre apreciar e decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base (e Tribunal de Segunda Instância) foram considerados como provados os factos seguintes:

“A. Em 17 de Setembro de 2019, a recorrente apresentou à Direcção dos Serviços de Economia o pedido de registo da marca n.º N/159515, com exemplar de IT’S LIKE MILK BUT MADE FOR HUMANS (imagem), na classe 25 de produtos de vestuário, sapatos (calçados nos pés), boné, chapéu, fato-macaco, camisa, camisa para mulheres, casaco (vestuário), roupa de banho, calças, banda de vestuário (roupas), calções, roupas de aquecimento, calças de desporto, camisa de manga comprida para desporto, jeans, terno, vestido de noite, vestido de noiva, casaco desportivo, vestido de malha, gravata, cachecol, xaile, meias, vestuário apertado, chapéu (na cabeça), casaco, casaco, colete, camisola de lã, vestido, saia, T – shirt, roupa para praia, capa de chuva, capa, colete sem mangas, colete para feminino, roupa para tênis, saia para tênis, sapatos para tênis, boné para golfe, calças para golfe, casaco para golfe, sapatos para golfe, vestuário para ciclismo, vestuário para corrida, sapatos desportivos, botas, chinelas, meias, luvas (vestuário), lingerie, pijama, calções, vestuário interior, roupa de banho, Pijama de malha, vestuário interior para mulheres, calcinhas.
B. O referido pedido foi publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 47, II Série, de 20 de Novembro de 2019.
C. Por despacho de 30 de Outubro de 2020 do Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual, cujo teor se encontra transcrito no processo administrativo e se dá por reproduzido, foi indeferido o pedido de registo da marca da recorrente.
D. A decisão de recusa foi publicada no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 47, II Série, de 18 de Novembro de 2020”; (cfr., fls. 82-v a 83, 130-v e 5 a 6 do Apenso).

Do direito

3. Vem interposto recurso do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 26.03.2021, (Proc. n.° 537/2021), que negou provimento ao recurso que a ora recorrente interpôs da sentença do Tribunal Judicial de Base com a qual se confirmou o despacho que recusou o registo da (atrás referida) marca N/159515 pela mesma requerido junto da Direcção dos Serviços de Economia.

Como resulta das suas alegações e conclusões, bate-se a mesma recorrente pelo pretendido registo, afirmando, em síntese, que “a marca registanda não induz o consumidor em erro e é distintiva, devendo ser registada em Macau, uma vez que não se verificam os fundamentos de recusa previstos no art. 214°, n.° 2 al. a) e art. 199° n.° 1 al. b) e c), todos do RJPI”; (cfr., concl. x).

Vejamos então se lhe assiste razão.

No Acórdão agora recorrido, o Tribunal de Segunda Instância, acolhendo (e reproduzindo) o teor da decisão do Tribunal Judicial de Base, consignou o que segue (na parte que agora interessa):

“(…)
Como acima disse, está em crise se a marca registanda tem capacidade distintiva suficiente para ser objecto de protecção.
No caso, a marca IT’S LIKE MILK BUT MADE FOR HUMANS (imagem) que pretende registar é composta puramente por letras.
O sentido da marca registanda pode ser interpretado como “parece o leite produzido para os homens”, tem inclinação forte de propaganda, esperando transmitir aos consumidores as vantagens dos produtos e serviços fornecidos pela marca.
Pelo que, a marca registanda inclina-se mais a constituir um slogan.
De facto, a lei não proíbe a possibilidade de ter slogan como marca, mas é relevante se o slogan tem ou não a capacidade distintiva que uma marca deve ter.
Após analisada a composição da marca registanda, a mensagem que os consumidores comuns recebem através da respectiva marca não passa de ser que “parece o leite produzido para os homens”, não é diferente dos outros slogans como “leite bem produzido”, “leite produzido exclusivamente para os homens”, são expressões extremamente comuns, que são possivelmente usadas na promoção dos produtos e serviços pelas empresas.
Deste modo, salvo o devido respeito, o slogan da marca registanda não é suficientemente especial, de modo que se proporcione distinguir os produtos e serviços duma empresa dos duma outra, pelo que, como entende a entidade recorrida, a marca registanda é composta puramente pelas expressões usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio, verifica-se assim a situação prevista pelo art.º 199.º n.º 1 alínea c) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, portanto, não deve ser objecto de protecção.
Quanto à questão da possibilidade de um slogan ser uma marca, Luís M. Couto Gonçalves, estudioso português, apoia que, uma marca se considera desprovida de capacidade distintiva quando, junto do público, seria apreendida mais como um slogan publicitário do que como uma marca.1
Além disso, no recurso n.º 116/2002, ao apreciar se podia registar “Best Foods” como uma marca, o TSI indicou que as letras constituíam um slogan e não tenham capacidade distintiva para ser uma marca.
O presente caso é semelhante a “Best Foods”, são usadas expressões usuais da linguagem corrente.
A marca registanda é composta puramente pelas expressões usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio, verifica-se assim a situação prevista pelo art.º 199.º n.º 1 alínea c) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, portanto, deve-se recusar o registo da marca, ao abrigo do art.º 9.º n.º 1 e 214.º n.º 1 alínea a).
E mais, a marca registanda também constitui um sinal que é susceptível de induzir em erro o público, previsto pelo art.º 214.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, uma vez que, a marca em causa destina-se ao fornecimento de produtos de vestuário na classe 25, os quais não têm nada a ver com a parte principal da marca em causa “IT’S LIKE MILK BUT MADE FOR HUMANS”, que é susceptível de fazer considerar que a marca em causa se destina ao fornecimento de leite e lacticínios, por isso, não se deve conceder o registo dessa marca.
A recorrente acrescenta que, a entidade recorrida deve seguir os exemplos anteriores e o princípio da igualdade, conceder o registo da marca da recorrente conforme os processos do passado em que se autorizou o registo de slogan como marca, porém, o Tribunal não concorda com essa opinião, porque em recurso relacionado a marcas, o tribunal tem jurisdição plena, a decisão do tribunal inclui mas não exclusivamente a pura revogação da decisão do tribunal recorrido, até tem o poder de conceder directamente o registo de marca, pelo que, os exemplos anteriores da Administração não vinculam o tribunal, a decisão dum tribunal sobre marcas iguais ou semelhantes num determinado processo até não deve produzir força obrigatória ao processo dum outro tribunal, por isso, o entendimento da recorrente não procede.
No fim, após analisadas a decisão e os fundamentos da entidade recorrida, o Tribunal não descobre a falta de fundamentação.
(…)”; (cfr., fls. 131 a 132 e 8 a 11 do Apenso).

Aqui chegados, analisados os autos, e em resultado da nossa reflexão sobre as “razões” aduzidas na(s) decisão(ões) do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância que confirmaram a recusa do pela recorrente pretendido registo da já identificada marca, (e em causa estando tão só uma pura “questão de direito”), “quid iuris”?

Como – recentemente, v.g., no Acórdão de 28.01.2022, Proc. n.° 159/2021 – já teve esta Instância oportunidade de considerar:

“(…) por um bom número de vezes foi esta Instância chamada a decidir “questões análogas” à agora colocada (relacionada com o “direito de registo de uma marca”), e, como já tivemos oportunidade de considerar, em causa estando uma questão de “Direito da Propriedade Industrial” (em grande parte) regulada pelo D.L. n.° 97/99/M que aprovou o “Regime Jurídico da Propriedade Industrial”, (R.J.P.I.), útil se mostra de atentar que em sede do seu preâmbulo se consignou que:
“A propriedade industrial é assumida, no mundo contemporâneo, como um factor fundamental de promoção do desenvolvimento económico.
Efectivamente, ela contribui de forma decisiva para o estímulo da actividade inventiva, uma vez que, face à considerável mobilização de recursos que a investigação tecnológica implica, só a protecção assegurada pelo sistema da propriedade industrial tende a garantir a compensação económica adequada aos investimentos efectuados na busca de novos produtos e de novos processos.
Por outro lado, a propriedade industrial constitui um factor favorável à transferência de tecnologia, na medida em que os detentores de conhecimentos tecnológicos, no exterior, estarão muito mais abertos a efectuar essa transferência se existir em Macau um adequado sistema de protecção dos seus direitos de exclusividade sobre essa tecnologia.
(…)
Quanto às marcas e outros sinais distintivos, a sua importância também não pode ser contestada: elas tendem a garantir a identificação do produto com o produtor, significando essa identificação uma determinada garantia de qualidade ou de origem e, consequentemente, criam a segurança na manutenção das qualidades e características do produto. Estes sinais distintivos contêm em si, portanto, um factor muito relevante de estímulo à diferenciação das empresas pela qualidade e uma fonte de segurança dos consumidores.
(…)”.
Por sua vez, importa ter presente que nos termos do art. 1° deste referido R.J.P.I.:
“O presente diploma regula a atribuição de direitos de propriedade industrial sobre as invenções e sobre as demais criações e os sinais distintivos nele previstos, tendo em vista, designadamente, assegurar a protecção da criatividade e do desenvolvimento tecnológicos, da lealdade da concorrência e dos interesses dos consumidores”.
Daí que se diga que a “Propriedade Industrial” seja a área do Direito que garante a inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto – nos domínios industrial, científico, literário ou artístico – o direito de obter, por um determinado período de tempo, uma recompensa resultante da sua criação ou manifestação intelectual.
Cabendo-nos agora apreciar de um reclamado (direito de) “registo de uma marca” e decidir se acertada foi a sua “recusa”, vejamos que solução adoptar.
Nos termos do art. 197° do aludido R.J.P.I.: “Só podem ser objecto de protecção ao abrigo do presente diploma, mediante um título de marca, o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.
E, assim, não obstante de um ponto de vista “económico”, a uma marca caiba essencialmente desempenhar as funções de “indicação da origem” dos produtos ou serviços, de “garantia de qualidade” e ainda a função “publicitária”, (cfr., v.g., Luís M. Couto Gonçalves in, “Direitos de Marcas”, pág. 15), atento ao preceituado no referido art. 197° é de se concluir que a “função jurídica” da marca é a de identificar a proveniência de um produto ou serviço ao consumidor para, assim, permitir a sua distinção de outros produtos ou serviços produzidos ou postos no mercado, devendo assim ser entendida como “um sinal distintivo na concorrência de produtos e serviços”; (cfr., v.g., O. Ascensão in, “Direito Comercial”, Vol. II, “Direito Industrial”, pág. 139, assim como, entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 18.11.2020, Proc. n.° 174/2020 e de 21.04.2021, Proc. n.° 42/2021).
Por sua vez, (em face da “natureza” da questão a tratar), importa aqui atentar, especialmente, no estatuído no art. 214° do dito R.J.P.I., onde se preceitua que:
“1. O registo de marca é recusado quando:
a) Se verifique qualquer dos fundamentos gerais de recusa da concessão de direitos de propriedade industrial previstos no n.º 1 do artigo 9.º;
b) A marca constitua, no todo em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória;
c) A marca, ainda que destinada a produtos ou serviços sem afinidade, constitua reprodução, imitação ou tradução de uma marca anterior que goze de prestígio em Macau, e sempre que a utilização da marca posterior procure tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou possa prejudicá-los.
2. O pedido de registo também é recusado sempre que a marca ou algum dos seus elementos contenha:
a) Sinais que sejam susceptíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina;
b) Reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem, para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor, ou que compreenda o risco de associação com a marca registada;
c) Medalhas de fantasia ou desenhos susceptíveis de confusão com as condecorações oficiais ou com as medalhas e recompensas concedidas em concursos e exposições oficiais;
d) Brasões ou insígnias heráldicas, medalhas, condecorações, apelidos, títulos e distinções honoríficas a que o requerente não tenha direito, ou, quando o tenha, se daí resultar o desrespeito e o desprestígio de semelhante sinal;
e) A firma, nome ou insígnia de estabelecimento, ou apenas parte característica dos mesmos, que não pertençam ao requerente ou que o mesmo não esteja autorizado a utilizar, se for susceptível de induzir o consumidor em erro ou confusão;
f) Sinais que constituam infracção de direitos de autor ou de propriedade industrial.
3. O facto de a marca ser constituída exclusivamente por sinais ou indicações referidos nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 199.º não constitui fundamento de recusa se aquela tiver adquirido carácter distintivo.
4. O interessado na recusa do registo da marca a que se refere a alínea b) do n.º 1 só pode intervir no respectivo processo quando prove já ter requerido em Macau o respectivo registo ou o faça simultaneamente com o pedido de recusa.
5. O interessado na recusa do registo da marca a que se refere a alínea c) do n.º 1 só pode intervir no respectivo processo quando prove já ter requerido em Macau o respectivo registo para os produtos ou serviços que lhe deram grande prestígio, ou o faça simultaneamente com a reclamação”.
E pronunciando-se sobre “questão idêntica” à ora em apreciação, igualmente já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar (nomeadamente) que:
“(…)
A marca é um dos direitos de propriedade industrial.
O direito de propriedade industrial confere ao respectivo titular a plena e exclusiva fruição, utilização e disposição das invenções, criações e sinais distintivos, dentro dos limites, condições e restrições fixados na lei [artigo 5.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial (RJPI)].
(…)
A marca destina-se a distinguir produtos ou serviços. Sendo ela “… um sinal distintivo de coisas, há-de ela ser dotada, para o bom desempenho da sua função, de eficácia ou capacidade distintiva, isto é, há-de ser apropriada para diferenciar o produto marcada de outros idênticos ou semelhantes”2.
Como se sabe, vigora em matéria de marcas o princípio da especialidade, segundo o qual a marca há-de ser constituída por forma a que não se confunda com outra anteriormente adoptada para o mesmo produto ou semelhante.
(…)
Como explica FERRER CORREIA3 “A marca não pode, portanto, ser igual ou semelhante a outra já anteriormente registada. O grau de semelhança que a marca não deve ter com outra registada anteriormente é definido por este elemento: possibilidade de confusão de uma com outra no mercado. Mas não pode haver confusão entre a marca adoptada para certo produto e a marca adoptada para outro que daquele seja completamente distinto. Por isso a lei restringe o princípio da especialidade da marca aos produtos da mesma espécie ou afins, nessa conformidade tendo substituído ao sistema do registo por classes o sistema de registo por produtos”.
(…)
Na lição de FERRER CORREIA4 “… a imitação de uma marca por outra existirá, obviamente, quando, postas em confronto, elas se confundam. Mas existirá ainda, convém sublinhá-lo, quando, tendo-se à vista apenas a marca a constituir, se deva concluir que ela é susceptível de ser tomada por outra de que se tenha conhecimento. Este processo de aferição da novidade é o que melhor tutela o interesse que a lei visa proteger – o interesse em que se não confundam, através da marca, mercadorias idênticas ou afins pertencentes a empresários diversos. Com efeito, o consumidor, quando compra determinado produto marcado com um sinal semelhante a outro que já conhecia, não tem à vista (em regra) as duas marcas, para fazer delas um exame comparativo. Compra o produto por se ter convencido de que a marca que o assinala é aquela que retinha na memória”.
Relembra CARLOS OLAVO5 que, da constatação de que a comparação das marcas não é simultânea, mas sucessiva, decorrem os seguintes corolários, “Se dois sinais são comparados um perante o outro, são as diferenças que ressaltam.
Mas quando dois sinais são vistos sucessivamente, é a memória do primeiro que existe quando o segundo aparece, pelo que, nesse momento, apenas as semelhanças ressaltam”.
Por isso, é por intuição sintética e não por dissecação analítica que deve
proceder-se à comparação das marcas6”; (cfr., v.g., os Acórdãos de 20.05.2015, Proc. n.° 19/2015, de 23.10.2015, Proc. n.° 64/2015, de 07.02.2017, Proc. n.° 77/2016, de 27.09.2018, Proc. n.° 36/2018, de 19.06.2019, Proc. n.° 130/2014, de 19.07.2019, Proc. n.° 42/2015, de 18.09.2019, Proc. n.° 84/2016, e, mais recentemente, de 31.07.2020, Proc. n.° 9/2018 e de 09.09.2020, Proc. n.° 64/2019)”.

Isto dito, ponderando sobre a “situação” em questão, em causa estando saber se a marca registanda tem “capacidade distintiva”, e reconhecendo que em matérias como a presente intervém, sempre, algum subjetivismo, cremos que tem a recorrente razão.

Passa-se a tentar explicitar este nosso ponto de vista.

Pois bem, exposto que atrás ficou o nosso entendimento sobre a natureza, função e requisitos de uma “marca”, (e até mesmo, atenta a redacção – e expressão “nomeadamente” – do art. 197° do R.J.P.I.), cabe ter presente que podem existir os seguintes tipos de “marcas”:
- nominativas (ou denominativas): compostas apenas por elementos verbais, sejam palavras, letras ou números;
- figurativas: compostas apenas por elementos figurativos, como desenhos ou imagens;
- mistas: compostas por elementos verbais e figurativos; e,
- tridimensionais: compostas pela forma do produto ou da respetiva embalagem; (havendo ainda as “marcas de posição”, de “padrão”, de “cor”, de “movimento”, de “holograma”, assim como as “sonoras”, compostas por sons, e as “olfativas”, compostas pelo odor).

In casu, (como se deixou relatado), a “marca” cujo registo pretende a recorrente é “nominativa”, sendo a seguinte:
- “IT’S LIKE MILK BUT MADE FOR HUMANS”, para produtos de vestuário, sapatos (calçados nos pés), boné, chapéu, fato-macaco, camisa, camisa para mulheres, casaco (vestuário), roupa de banho, calças, banda de vestuário (roupas), calções, roupas de aquecimento, calças de desporto, camisa de manga comprida para desporto, jeans, terno, vestido de noite, vestido de noiva, casaco desportivo, vestido de malha, gravata, cachecol, xaile, meias, vestuário apertado, chapéu (na cabeça), casaco, casaco, colete, camisola de lã, vestido, saia, T-shirt, roupa para praia, capa de chuva, capa, colete sem mangas, colete para feminino, roupa para tênis, saia para tênis, sapatos para tênis, boné para golfe, calças para golfe, casaco para golfe, sapatos para golfe, vestuário para ciclismo, vestuário para corrida, sapatos desportivos, botas, chinelas, meias, luvas (vestuário), lingerie, pijama, calções, vestuário interior, roupa de banho, Pijama de malha, vestuário interior para mulheres, calcinhas; (classe 25ª).

As decisões que negaram o pretendido registo – tanto da Direcção dos Serviços de Economia, do Tribunal Judicial de Base e, a agora recorrida, do Tribunal de Segunda Instância – consideraram, essencialmente, que:
- a dita marca “tem inclinação forte de propaganda” e “inclina-se mais a constituir um slogan”;
- a mesma integra “expressões extremamente comuns, que são possivelmente usadas na promoção dos produtos e serviços pelas empresas”;
- sendo “composta puramente pelas expressões usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio”; sendo, ainda,
- “susceptível de induzir em erro o público”, “uma vez que, a marca em causa destina-se ao fornecimento de produtos de vestuário na classe 25, os quais não têm nada a ver com a parte principal da marca em causa “IT’S LIKE MILK BUT MADE FOR HUMANS”, que é susceptível de fazer considerar que a marca em causa se destina ao fornecimento de leite e lacticínios”; (cfr., excerto da decisão do T.S.I. que atrás se deixou transcrito).

Porém, como se deixou adiantado, outro é o nosso ponto de vista, (afigurando-se-nos que não se terá captado adequadamente a “essência – e especialidade – do sinal” cujo registo como marca pretende a ora recorrente).

Vejamos, (muito não parecendo de aqui consignar para se explicitar a solução que se nos apresenta correcta para a presente lide recursória).

Antes de mais, cabe salientar, (aliás, como o próprio Tribunal recorrido não deixou de reconhecer), que a Lei não proíbe que um “slogan” – que é um vocábulo de origem inglesa, e que, no fundo, é uma expressão original, breve, concisa, impactante e convincente, tendencialmente fácil de assimilar e lembrar, normalmente utilizada em campanhas políticas, de publicidade ou de propaganda para lançar um produto – seja “registado como marca”.

Exige sim, (e como não podia deixar de ser), que o mesmo não constitua, apenas e tão só, um mero “slogan”, ou – como também já tivemos oportunidade de consignar em sede do Ac. de 21.04.2021, Proc. n.° 42/2021, onde em causa estava a marca registanda “PROFESSIONAL FIRST” para serviços de seguros – que constitua uma (mera) “frase promocional”, (ou uma mera “mensagem publicitária comum”), que se limita a realçar, (elogiar), a “qualidade dos produtos ou serviços”, e que, desta forma, não deixará de ser (certamente) percebida como uma “pura fórmula promocional”, (cfr., v.g., L. M. Conto Gonçalves in, “Manual de Direito Industrial”, pág. 180 e 181, onde, a propósito de situações próximas, e com exemplos e referências da jurisprudência sobre a questão, nota que, “Bem vistas as coisas, não são sinais para «descrever» produtos ou serviços, mas para «promover» ou publicitar produtos ou serviços”), não sendo assim apropriável em termos exclusivos, a título de “marca”, devendo, pelo contrário, permanecer na disponibilidade de qualquer operador ou agente económico.

Isto é, ainda que seja, (ou tenha contornos) de um “slogan”, pode o “sinal” em questão ser registado como marca desde que tenha “capacidade distintiva”.

E, nesta conformidade, acompanhando o que (mais recentemente) se tem vindo a entender nessa matéria, (e que se nos mostra adequado), afigura-se-nos que para melhor se aferir de tal “capacidade distintiva” se deve ponderar se o aludido sinal, (slogan):
- constitui um “jogo de palavras”; e/ou,
- introduz “elementos de intriga ou surpresa conceptual”, (com “duplo sentido”, para que possa ser considerado imaginativo, surpreendente ou inesperado); e/ou,
- tem uma “originalidade ou ressonância particular”; e/ou,
- desencadeia na mente do público relevante um “processo cognitivo”, suscitando a imaginação e exigindo um “esforço de interpretação”; e/ou,
- integra “estruturas ou combinações sintáticas originais/ invulgares”; e/ou,
- utiliza e recorre a “figuras de linguagem”, podendo integrar figuras de “semântica”, de “sintaxe” e de “som/fonética”, como v.g., sucede com o “paradoxo”, a “metáfora”, a “rima”, a “aliteração” e a “assonância”, (ou seja, repetição das mesmas letras ou sílabas numa frase, explorando o som das consoantes ou das vogais para gerar efeitos no texto), etc…; (neste sentido, cfr., v.g., entre outros, os Acs. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 21.01.2010, Proc. n.° C-398/08P; de 12.07.2012, Proc. n.° C-311/11P; de 13.12.2018, Proc. n.° T-102/18; de 03.04.2019, Proc. n.° T-555/18 e o de 20.01.2021, Proc. n.° T-253/20, in “https://eur-lex.europa.eu”, todos eles tratando de pedidos de registo como marca de “slogans”).

Na verdade, se dúvidas não há que uma frase (descritiva), com características “promocionais”, e que se limita a elogiar as qualidades dos produtos ou serviços não é passível de registo, (como foi o caso da atrás referida “Professional First”, ou, v.g., como podia eventualmente suceder com a expressão “Valores Seguros” para uma empresa de “serviços financeiros” ou de “segurança e transporte de valores”), o mesmo já não sucede com “frases” (ou expressões) que contenham as atrás aludidas “características”, e que, ainda que se possam considerar “simples”, não são “comuns”, ao ponto de, à partida, e de imediato, se (poder) excluir qualquer (necessidade de) análise e reflexão, ou qualquer “esforço de interpretação” por parte do público.

Ora, em face do que até aqui se deixou exposto, e ponderando na “marca registanda” – “IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS” – somos de opinião que a mesma possui (a necessária) “capacidade distintiva”, pois que o “jogo de palavras” que a mesma encerra, com uma (não menos) “intrigante contradição” entre a sua primeira parte, (“IT’S LlKE MILK”, que se pode traduzir por “é como leite”), e a segunda, (“BUT MADE FOR HUMANS”, “mas feito para humanos”), não deixa de colocar em questão a secular e comummente aceite ideia de que o “leite” seja, (ou foi, desde sempre), um (dos) elemento(s) essencial(ais) da dieta humana, acabando por “instigar a reflexão”, desencadeando, por sua vez, um “processo cognitivo na mente do público” ao qual se dirige, e, sendo, por isso, de “fácil memorização”, o que a torna capaz de “distinguir os produtos a que dizem respeito dos produtos de empresas concorrentes”; (veja-se o atrás citado Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 20.01.2021, Proc. n.° T-253/20, com o qual se inverteram anteriores decisões, concedendo-se o registo da marca aqui em questão para os produtos das classes 29ª, 30ª e 32ª).

Nesta conformidade, mostra-se pois de considerar que a dita marca registanda, (também em relação aos produtos da classe 25ª), tem suficiente originalidade, desencadeando no público relevante um “processo cognitivo” e exigindo um “esforço de interpretação”, o que, por si, justifica a sua “capacidade distintiva”; (a este respeito, veja-se a concepção de Paul Mathély apud Américo da Silva Carvalho in, “Direito de Marcas”, Coimbra, pág. 211, e ainda, Pedro Sousa Silva in, “Direito Industrial – Noções Fundamentais”, pág. 152 a 154).

–– Em face do considerado, e aceitando-se que a marca registanda tem capacidade distintiva (não sendo um mero sinal/slogan genérico, usual ou descritivo), cabe então perguntar se, in casu, se verifica o fundamento absoluto de recusa relacionado com a “marca enganosa”, previsto no art. 214°, n.° 2, al. a) do R.J.P.I., como foi subsidiariamente apontado pelas decisões das Instâncias recorridas.

Ora, em causa está um fundamento de recusa de “ordem pública”, “para defesa de diversos valores e interesses do Estado e da sociedade como um todo”; (cfr., Pedro Sousa e Silva, in ob. cit., pág. 157).

A proibição da marca enganosa ou deceptiva decorre, “como já sublinhava Ferrer Correia, da consagração do princípio da verdade da marca, o que introduz um factor de protecção dos interesses dos consumidores. Por exemplo, a marca “CRlSTALEX”, para assinalar produtos em vidro, poderia induzir os consumidores em erro acerca do material utilizado”; (cfr., Pedro Sousa e Silva in, ob. cit., pág. 158).

Como igualmente observa Luís Couto Gonçalves, o que “é decisivo é a marca em si (e não o uso que dela se faz), em relação com os produtos ou serviços a que se destina, no seu conjunto, ou num dos seus elementos relevantes, ser susceptível de enganar o público, incida o erro sobre a natureza, qualidade, proveniência geográfica ou outro aspecto (v.g. composição, destino ou finalidade) do produto ou serviço, signifique isso um sinal falso, isto é, um sinal objectivamente contrário à verdade, signifique isso, simplesmente, um sinal que possa gerar risco de engano no público.
Seguindo o ensinamento de F. Nóvoa para determinar se um sinal pode provocar um risco de engano devem conjugar-se dois critérios básicos:
“o primeiro consiste em relacionar o sinal solicitado como marca com os produtos ou serviços para as quais se haja apresentado a correspondente solicitação;”
“o segundo consiste em fixar a plataforma subjectiva a partir da qual se deverá apreciar se um sinal é enganoso”.
Em relação a este último critério a ala d) do n.° 1 do art. 238.° situa essa plataforma no público. O conceito de “público” tem uns “contornos muito amplos que devem ser adaptados em cada caso concreto” de acordo com a “espécie de produtos ou serviços para os quais se solicita a marca”.
Por outro lado, para que o engano seja possível não é imprescindível que o sinal seja essencialmente descritivo. Basta que possa ser sugestivo, evocando um objecto diferente daquele que identifica.
A ala d) do n.° 1 do art. 238.°, a título exemplificativo, enumera várias hipóteses concretas de sinais enganosos: os que possam induzir o público em erro sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica dos produtos ou serviços”; (in “Manual de Direito Industrial”, 7ª ed., Revista e Actualizada, pág. 241 e 242).

Indicando como exemplo de “marca enganosa” referia P. Sousa e Silva o caso do produtor de queijos quanto ao registo da marca “ESTRELA DA SERRA”, ainda que a produção ocorra no Algarve, podendo levar a que se considere a marca enganosa na medida em que sugere que os queijos provêm da “Serra da Estrela”; (in ob. cit., pág. 158, nota 294).

Outros exemplos fornecidos pela jurisprudência de Portugal quanto a uma falsa indicação da qualidade são:
- a marca “Rum Negrita” recusada para produtos inteiramente diferentes do rum (pertencentes às classes 29.ª a 33.ª da tabela anexa) por significar unicamente aguardente extraída do melaço;
- a marca “Porto Sobreiro” destinada a água, gasosas, limonadas, refrigerantes dada a designação “Porto” ser conhecida pela generalidade das pessoas e associada de imediato ao conhecido Vinho do Porto;
- a marca “King of Beerys” destinada a xaropes e outras preparações para fazer bebidas em virtude da imediata associação com cerveja;
- a marca “Supremecorq” destinada a tampas de plástico para recipientes de líquidos por sugerir tratar-se de tampas de cortiça (cork);
- a marca “Fresh Joghurt” destinada a gelado por parecer designar iogurte; (cfr., v.g., Luís Couto Gonçalves in, ob. cit., pág. 242 e 253, nota 607).

No caso dos presentes autos, considerando que os produtos que (agora) se visam assinalar com a marca “IT’S LlKE MILK BUT MADE FOR HUMANS” se integram na “classe 25ª”, e incluem produtos de “vestuário”, “calçado” e “chapelaria”, claro se nos mostra de considerar que o “consumidor médio”, desse “tipo de produtos”, não assumirá que os mesmos são (produtos) para ser ingeridos como o leite (ou que se assemelhem, de qualquer forma, ao leite), evidente se nos apresentando que para esses consumidores, o dito “sinal” não indica uma “real qualidade” dos produtos em causa.

Dest’arte, e nenhum (outro) obstáculo se nos mostrando existir para se decidir pela recusa do pretendido registo, imperativa é a pronúncia que segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam revogar a decisão recorrida, concedendo-se provimento ao recurso.

Sem custas.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 02 de Março de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Luís M. Couto Gonçalves, «Manual de Direito Industrial, Patentes, Marcas e Concorrência Desleal», 2005, pág. 181.
2 FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, Universidade de Coimbra, Volume I, 1973, p. 323.
3 FERRER CORREIA, Lições …, p. 328 e 329.
4 FERRER CORREIA, Lições …, p. 328 e 329.
5 CARLOS OLAVO, Propriedade Industrial, Volume I, Sinais Distintivos do Comércio, Concorrência Desleal, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 2005, p.101 e 102.
6 CARLOS OLAVO, Propriedade …, p 102. No mesmo sentido, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Coimbra, Almedina, 4.ª edição, 2003, Volume I, p. 375.
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Proc. 3/2022 Pág. 24

Proc. 3/2022 Pág. 25