Processo n.º 585/2021 Data do acórdão: 2022-4-21
Assuntos:
– Instituto de Habitação
– pedido de atribuição de habitação social
– declaração escrita falsa sobre o património
– crime de falsificação de documento
– art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
S U M Á R I O
Quem, na qualidade de requerente de atribuição da habitação social, prestar declaração escrita, mas falsa, sobre o património para efeitos desse pedido dirigido ao Instituto de Habitação comete crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 585/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: 1.a Arguida A
2.o Arguido B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 240 a 255v do Processo Comum Singular n.o CR4-20-0401-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram absolvidos a 1.a arguida A e o 2.o arguido B da prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), por que apenas vinham inicialmente acusados pelo Ministério Público, e entretanto oficiosamente condenados, com base nos factos acusados e finalmente dados por provados, como autores materiais de um crime tentado de burla, p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 2, do CP, em quatro meses de prisão, suspensa na execução por um ano e seis meses.
Inconformada, veio recorrer a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, e peticionando o seguinte, na motivação apresentada a fls. 263 a 266v dos presentes autos correspondentes:
– em face da comprovação já dos factos acusados aos dois arguidos, estes dois não deveriam ser condenados pela prática do crime tentado de burla, mas sim pela prática do crime de falsificação de documento como vinham inicialmente acusados;
– as declarações então feitas pelos dois arguidos sobre o património líquido do agregado familiar no formulário, por eles preenchidos, assinados e entregues ao Instituto de Habitação (IH), de pedido de atribuição de habitação social constituem, contrariamente ao entendido pelo Tribunal recorrido, documento para os efeitos a relevar do disposto no art.o 243.o, alínea a), do CP, atento o disposto no art.o 7.o do então Regulamento Administrativo n.o 25/2009;
– pelo que devem ser directamente condenados os dois arguidos no dito crime, com respectiva medida da pena.
Respondeu a 1.a arguida a fls. 269 a 276 dos presentes autos, a defender a manutenção do julgado. E respondeu também o 2.o arguido a fls. 278 a 285 dos autos, no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 295 a 297v, opinando pela procedência do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora impugnada pelo Ministério Público ficou proferida a fls. 240 a 255v, cujo teor (incluindo a respectiva fundamentação fáctica) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O Tribunal recorrido decidiu em absolver os dois arguidos da prática de um crime consumado de falsificação de documento por que apenas vinham acusados pelo Ministério Público, por entender, no essencial, que:
– as declarações então feitas pelos arguidos por via escrita sobre a situação do património, como não devem ser consideradas idóneas para provar a situação do património, não podem servir, aos olhos da comunidade social em geral e mesmo do IH, como prova adequada da situação do património, pois são, materialmente, alegação feita por eles próprios, e como tal devem ser consideradas como um mero requerimento apresentado por eles às Autoridades competentes; ademais, caso estas declarações feitas pelas pessoas requerentes de habitação social possam fazer crer que as mesmas possuam o património como tal declarado, então qual será a necessidade de fazer verificar o património delas junto de instituições bancárias? Na possibilidade de averiguação, junto de instituições bancárias, sobre o património dos arguidos, o Tribunal não acha que as declarações feitas pelos próprios arguidos consigam fazer facilmente crer da sua situação do património;
– daí que por falta do carácter da idoneidade para provar o facto declarado, as declarações escritas dos arguidos não podem ser consideradas como documento na definição do art.o 243.o do CP;
– razões por que devem ser absolvidos os dois arguidos do acusado crime de falsificação de documento.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No caso dos autos, da leitura da fundamentação fáctica e jurídica da decisão absolutória penal ora recorrida pelo Ministério Público, vê-se que o Tribunal recorrido, em sede de subsunção dos factos provados ao Direito, julgou que as declarações escritas então feitas pelos arguidos sobre a situação do património deles e apresentadas ao IH para efeitos de pedido de atribuição de habitação social não devem ser consideradas documentos na acepção de “documento” constante do art.o 243.o do CP.
O art.o 243.o do CP faz a seguinte definição do que é “documento” para efeitos do disposto do próprio Código:
Considera-se documento <<(1) A declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e (2) O sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta>> (com sublinhado aqui posto para efeitos de ênfase).
A chave para a decisão do recurso está na própria norma do art.o 7.o do Regulamento Administrativo n.o 25/2009, de 10 de Agosto, sob cuja alçada foram apresentadas as declarações escritas em causa pelos arguidos ao IH sobre a situação do património líquido total do seu agregado familiar, para efeitos de pedido de atribuição de habitação social.
É que este Regulamento Administrativo, tendo por objecto regular a atribuição, arrendamento e administração de habitação social, previa, no seu art.o 7.o (com a epígrafe de “Candidatura”), o seguinte:
– <<1. A candidatura à atribuição de habitação é feita mediante a entrega no IH do boletim de candidatura e da declaração de rendimentos e património líquido, devidamente preenchidos e assinados.
2. O IH pode confirmar, a todo o tempo, as informações prestadas pelos candidatos no preenchimento do boletim de candidatura, junto de qualquer entidade pública ou privada, sendo as falsas declarações sancionadas nos termos da lei.
3. A forma de candidatura e os critérios de classificação, ordenamento e selecção das respectivas habitações, bem como a declaração de rendimentos e de património líquido dos elementos do agregado familiar, constam de regulamento a aprovar por despacho do Chefe do Executivo, a publicar em Boletim Oficial da RAEM>>.
Ou seja, é o estatuído na parte final do n.o 2 desse art.o 7.o que alerta que as falsas declarações feitas pela parte requerente ou pelo candidato – nos termos do n.o 1 deste artigo, mediante preenchimento e assinatura do boletim de candidatura à atribuição de habitação social – inclusivamente em matéria de declaração de rendimentos e património líquido do seu agregado familiar ficam sujeitas às sanções legais. E da letra desse mesmo n.o 2, resulta nítido que a possibilidade de o IH confirmar, a todo o tempo, as informações prestadas pelo candidato no preenchimento do boletim de candidatura, junto de qualquer entidade pública ou privada, não isenta o candidato da sanção legal por falsas declarações prestadas.
Assim sendo, e sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, é de passar a condenar directamente, em face da matéria de facto dada por provada em primeira instância (a qual integra já cabal e realmente, mas apenas, o tipo legal de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP), a 1.a arguida e o 2.o arguido pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo mesmo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, em vez da prática de um crime tentado de burla.
Cabe agora decidir da medida da pena dos dois arguidos.
O crime de falsificação de documento em causa é punível com prisão até três anos ou com pena de multa. Consideradas as prementes necessidades da prevenção geral deste tipo de conduta delitual penal, não se pode optar pela pena de multa em detrimento da pena de prisão (cfr. o critério material plasmado no art.o 64.o do CP).
Dentro da moldura penal de um mês a três anos de prisão (cfr. também o disposto no art.o 41.o, n.o 1, do CP), e vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas na fundamentação fáctica da sentença recorrida, é de aplicar aos dois arguidos igualmente nove meses de prisão, aos critérios dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, pena esta deles que, ponderada mormente a falta de antecedentes criminais deles em Macau, pode ser suspensa, nos termos permitidos pelos art.os 48.o, n.os 1, 2 e 5, e 49.o, n.o 1, alínea c), do CP, pelo período de um ano e seis meses, sob condição da prestação, no prazo de seis meses contados da data do trânsito em julgado do presente acórdão de recurso, de oito mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, passando, por conseguinte, a condenar a 1.a arguida A e o 2.o arguido B como autores materiais de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (em vez da prática do crime tentado de burla pelo qual vinham condenados na sentença recorrida), igualmente na pena de nove meses de prisão, suspensa igualmente na execução por um ano e seis meses, sob condição de prestação, por cada um deles, no prazo de seis meses contado do trânsito em julgado da presente decisão, de oito mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Pará além das custas, taxas de justiça e honorários oficiosos por cujo pagamento já vinham condenados na sentença recorrida, pagarão os dois arguidos as custas do processo nesta Segunda Instância, com duas UC de taxa de justiça individual, e mil patacas de honorários, a cargo de cada um deles, a favor da respectiva Ex.ma Pessoa Defensora Oficiosa.
Comunique o presente acórdão (com cópia da sentença recorrida) ao Instituto de Habitação.
Macau, 21 de Abril de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(Vencida por entendo que o documento em causa não tem idoneidade para fazer a prova de um facto juridicamente relevante, e não estamos perante um documento cuja falsificação seja penalmente relevante, e assim, deveria manter o já decidido pelo Tribunal a quo.)
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