Processo n.º 1074/2020 Data do acórdão: 2022-4-21
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Como da leitura da fundamentação probatória da decisão condenatória penal recorrida, não se vislumbra que o tribunal sentenciador tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, não pode ter ocorrido o vício, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, de erro notório na apreciação da prova assacado pelo arguido na motivação do recurso da mesma decisão judicial.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1074/2020
(Recurso em processo penal)
Recorrente: 2.o arguido A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 429 a 441v do Processo Comum Colectivo n.° CR3-19-0162-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o 2.o arguido A, em co-autoria material com o 1.o arguido B, de um crime consumado de usura para jogo, p. e p. pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, na pena de um ano e três meses de prisão (suspensa na execução por dois anos), com interdição, por três anos, de entrada nos casinos.
Inconformado, veio o 2.o arguido Guo Leilei recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no seu essencial, e peticionando o seguinte, na motivação apresentada a fls. 453 a 461 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão condenatória penal dele ora recorrida padece do erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), com contradição até no julgamento do caso (por ter considerado que não estando ele presente nos actos de retenção do documento da ofendida, não devia ele ser condenado pela retenção do documento, mas já devia ser ele condenado pela usura para jogo, ainda que na realidade não tenha ele estado presente), devendo, assim, ele, um empregado do 1.o arguido, que nem estava presente em cenas fácticas essenciais, por exemplo, de negociação sobre as condições do empréstimo para jogo, de prática de jogo pela ofendida, e de assinatura do documento de dívida de jogo pela mesma ofendida, passar a ser absolvido do crime por que vinha condenado.
Respondeu o Ministério Público a fls. 464 a 466v, no sentido de improcedência da argumentação recursória do 2.o arguido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 480 a 481, pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 429 a 441v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Veio o 2.o arguido sindicar do resultado do julgamento dos factos feito pelo Tribunal sentenciador.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto respeitante à conduta de usura para jogo por que vinha condenado o arguido recorrente em primeira instância.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, no último parágrafo da página 16 e no primeiro parágrafo da página seguinte, do texto decisório recorrido, a fls. 436v a 437 dos autos, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos no concernente à comparticipação do 2.o arguido na prática dos factos de usura para jogo.
Perante essa factualidade provada relativa à usura para jogo, é nítida a comparticipação, em co-autoria material, do 2.o arguido na conduta delitual penal de usura para jogo (cfr o art.o 25.o do Código Penal), sendo a sua tese de não presença (em cenas da usura de jogo) já materialmente contrariada pelos factos provados descritos sob os n.os 2, 5, 7, 9 e 10 (os quais, conjugados, suportam cabalmente a matéria descrita sob os pontos 19, 21 e 22 da fundamentação fáctica do aresto recorrido) e também pelos dois últimos factos não provados (descritos nas linhas 13 e 14 da página 12 do mesmo texto decisório, a fl. 434v dos autos).
De frisar que a comprovada profissão do 2.o arguido como condutor empregado pelo 1.o arguido (cfr. a linha 10 da página 11 do texto do mesmo acórdão, a fl. 434 dos autos) não tem a pretendida virtude de afastar o juízo de valor já razoavelmente formado pelo Tribunal recorrido aquando da livre apreciação da prova sobre os factos atinentes à usura para jogo.
Por último, observa-se que da fundamentação probatória tecida pelo Tribunal recorrido concretamente nas linhas 10 a 16 da página 16 do mesmo texto decisório, a fl. 436v, sobre a conduta de retenção do documento da ofendida pela qual foi condenado o 1.o arguido, não consta qualquer referência à presença, ou não, do 2.o arguido no assunto da retenção do documento, pelo que tem que decair o argumento posto na motivação do recurso segundo o qual o Tribunal recorrido considerou que ele próprio não estava presente nos actos de retenção do documento da ofendida.
O resultado do julgamento de factos no tangente à conduta de usura para jogo a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel (nem tão-pouco contraditório).
Naufraga, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso do 2.o arguido Guo Leilei.
Pagará o recorrente as custas do recurso, com duas UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão (com cópia do acórdão recorrido) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 21 de Abril de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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