Processo n.º 438/2021 Data do acórdão: 2022-4-21
Assuntos:
– Instituto de Habitação
– pedido de atribuição de habitação social
– declaração escrita falsa sobre o património
– crime de falsificação de documento
– art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
S U M Á R I O
Quem, na qualidade de requerente de atribuição da habitação social, prestar declaração escrita, mas falsa, sobre o património para efeitos desse pedido dirigido ao Instituto de Habitação comete crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 438/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido: Arguido A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 128 a 140 do Processo Comum Singular n.o CR4-20-0391-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvido o arguido A da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), por que vinha acusado pelo Ministério Público.
Inconformada, veio recorrer a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, e peticionando o seguinte, na motivação apresentada a fls. 149 a 152v dos presentes autos correspondentes:
– o documento em causa nos autos, consistente na declaração sobre os rendimentos totais e o património líquido do agregado familiar feita pelo arguido no formulário, por ele preenchido, assinado e entregue ao Instituto de Habitação (IH), de pedido de atribuição de habitação social (cfr. o teor desse formulário preenchido, a que aludem as fls. 14 a 15v dos presentes autos), é, contrariamente ao entendido pelo Tribunal recorrido, um documento para os efeitos a relevar do disposto no art.o 243.o, alínea a), do CP, atento o disposto no art.o 7.o do então Regulamento Administrativo n.o 25/2009;
– pelo que deve ser directamente condenado o arguido no dito crime, com respectiva medida da pena.
Respondeu o arguido a fls. 156 a 162 dos presentes autos, a defender a manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 171 a 173, opinando pela procedência do recurso, com devida condenação do arguido no crime em causa.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora impugnada pelo Ministério Público ficou proferida a fls. 128 a 140.
2. De acordo com a matéria de facto aí dada por provada:
– segundo o disposto no Regulamento Administrativo n.o 25/2009 e no Despacho do Chefe do Executivo n.o 296/2009, o requerente da atribuição da habitação social tem que satifazer as exigências relativas ao rendimento mensal e ao limite máximo do valor do património do agregado familiar, e de acordo com o estatuído na tabela II do número 1 do Despacho do Chefe do Executivo n.o 23/2013, o limite máximo do valor do património total líquido do agregado familiar de duas pessoas é de MOP$263.740,00;
– em 31 de Maio de 2013, o arguido, sob a forma de agregado familiar de duas pessoas, entregou ao Instituto de Habitação (IH) o formulário de pedido de atribuição de habitação social, tendo declarado MOP$15.000,00 como o valor do património total líquido (incluindo neste os depósitos bancários à ordem e a prazo e o dinheiro (inclindo moeda estrangeira) em numerário disponível) (cfr. o teor de fls. 14 a 15v dos autos, dado por reproduzido inteiramente);
– em 7 de Setembro de 2016, o arguido, aquando da entrega de declaração ao IH sobre o valor do património líquido para efeitos de habitação social, declarou MOP$155.787,46 como o valor do património total líquido do agregado familiar em 14 de Agosto de 2016 (incluindo os depósitos bancários à ordem e a prazo e o dinheiro (incluindo moeda estrangeira) em numerário disponível) (cfr. o teor de fl. 23 a 27v dos autos, dado por reproduzido inteiramente);
– de acordo com a resposta do Banco ICBC e do Banco da China, no dia anterior à data de 31 de Maio de 2013 em que o arguido entregou ao IH o formulário do pedido de atribuição de habitação social, os saldos de depósitos bancários totalizavam MOP$146.340,15, e em 14 de Agosto de 2016 totalizavam MOP376.647,02 (cfr. o teor de fls. 34 a 36 dos autos, dado por reproduzido inteiramente);
– o arguido sabia claramente das exigências no preenhimento de declarações acima referidas, sabendo claramente que os dados preenchidos tinham que ser verdadeiros, mas aquando da feitura das declarações, apesar de ser ciente de que o valor do património total líquido do agregado familiar já tinha excedido o limite máximo, agiu com o intuito de ocultar a situação real do patrimínio, tendo feito constar factos juridicamente falsos em documentos e tendo entregue os mesmos documentos com dados falsos ao IH;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de praticar a conduta acima referida, com intenção de enganar outrem e o Governo de Macau;
– a conduta do arguido também tinha por intuito afectar a fé pública daquele tipo de documentos, e a segurança e confiança objecto de transmissão por esses documentos em relações gerais, com prejuízo aos interesses da Região Administrativa Especial de Macau e de terceiros;
– o arguido sabia claramente da ilegalidade e da punibilidade da sua conduta referida;
– o arguido não tem antecedentes criminais;
– o arguido possui a instrução primária como habilitações académicas, é desempregado sem rendimentos, tem a sua subsistência dependente dos subsídios do Governo, e não precisa de suportar a vida de qualquer pessoa.
3. O Tribunal recorrido decidiu em absolver o arguido da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento por que vinha acusado pelo Ministério Público, por entender, no essencial, que:
– as declarações então feitas pelo arguido por via escrita sobre a situação do património líquido, como não devem ser consideradas idóneas para provar a situação do património, não podem servir, aos olhos da comunidade social em geral e mesmo do IH, como prova adequada da situação do património, pois são, materialmente, alegação feita por ele próprio, e como tal devem ser consideradas como um mero requerimento apresentado às Autoridades competentes; ademais, caso estas declarações feitas pela pessoa requerente possam fazer crer que a mesma possua o património como tal declarado, então qual será a necessidade de fazer verificar o património dela junto de instituições bancárias? Na possibilidade de averiguação, junto de instituições bancárias, sobre o património do arguido, o Tribunal não acha que as declarações feitas pelo próprio arguido consigam fazer facilmente crer da sua situação do património;
– daí que por falta do carácter da idoneidade para provar o facto declarado, as declarações escritas do arguido não podem ser consideradas como documento na definição do art.o 243.o do CP;
– razões por que deve ser absolvido o arguido do acusado crime de falsificação de documento.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No caso dos autos, da leitura da fundamentação fáctica e jurídica da decisão absolutória penal ora recorrida pelo Ministério Público, vê-se que o Tribunal recorrido, em sede de subsunção dos factos provados ao Direito, julgou que as declarações escritas então feitas pelo arguido sobre a situação do património e apresentadas ao IH para efeitos de pedido de atribuição de habitação social não devem ser consideradas documentos na acepção de “documento” constante do art.o 243.o do CP.
O art.o 243.o do CP faz a seguinte definição do que é “documento” para efeitos do disposto do próprio Código:
Considera-se documento <<(1) A declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e (2) O sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta>> (com sublinhado aqui posto para efeitos de ênfase).
A chave para a decisão do recurso está na própria norma do art.o 7.o do Regulamento Administrativo n.o 25/2009, de 10 de Agosto, sob cuja alçada foram apresentadas, sucessivamente, as declarações escritas em causa pelo arguido ao IH sobre a situação do património líquido total do seu agregado familiar, para efeitos de pedido de atribuição de habitação social.
É que este Regulamento Administrativo, tendo por objecto regular a atribuição, arrendamento e administração de habitação social, previa, no seu art.o 7.o (com a epígrafe de “Candidatura”), o seguinte:
– <<1. A candidatura à atribuição de habitação é feita mediante a entrega no IH do boletim de candidatura e da declaração de rendimentos e património líquido, devidamente preenchidos e assinados.
2. O IH pode confirmar, a todo o tempo, as informações prestadas pelos candidatos no preenchimento do boletim de candidatura, junto de qualquer entidade pública ou privada, sendo as falsas declarações sancionadas nos termos da lei.
3. A forma de candidatura e os critérios de classificação, ordenamento e selecção das respectivas habitações, bem como a declaração de rendimentos e de património líquido dos elementos do agregado familiar, constam de regulamento a aprovar por despacho do Chefe do Executivo, a publicar em Boletim Oficial da RAEM>>.
Ou seja, é o estatuído na parte final do n.o 2 desse art.o 7.o que alerta que as falsas declarações feitas pela parte requerente ou pelo candidato – nos termos do n.o 1 deste artigo, mediante preenchimento e assinatura do boletim de candidatura à atribuição de habitação social – inclusivamente em matéria de declaração de rendimentos e património líquido do seu agregado familiar ficam sujeitas às sanções legais. E da letra desse mesmo n.o 2, resulta nítido que a possibilidade de o IH confirmar, a todo o tempo, as informações prestadas pelo candidato no preenchimento do boletim de candidatura, junto de qualquer entidade pública ou privada, não isenta o candidato da sanção legal por falsas declarações prestadas.
Assim sendo, e sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, é de passar a condenar directamente, em face da matéria de facto dada por provada em primeira instância (a qual integra já cabal e realmente o tipo de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP), o arguido pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime continuado de falsificação de documento do mesmo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP (por ser de considerar que as declarações escritas por ele prestadas e apresentadas ao IH em 7 de Setembro de 2016 sobre a situação do património total líquido do seu agregado familiar foram actualização das declarações então prestadas, em 31 de Maio de 2013, nesta matéria, no requerimento inicial de pedido de atribuição de habitação social, e daí a aplicabilidade da figura de crime continuado do art.o 29.o, n.o 2, do CP, com todas as consequências legais daí advenientes).
Cabe agora decidir da medida da pena.
O crime de falsificação de documento em causa é punível com prisão até três anos ou com pena de multa. Consideradas as prementes necessidades da prevenção geral deste tipo de conduta delitual penal, não se pode optar pela pena de multa em detrimento da pena de prisão (cfr. o critério material plasmado no art.o 64.o do CP). Dentro da moldura penal de um mês a três anos de prisão (cfr. também o disposto no art.o 41.o, n.o 1, do CP), e vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas e descritas na fundamentação fáctica da sentença recorrida, é de aplicar ao arguido nove meses de prisão, aos critérios dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, pena esta que, ponderada mormente a falta de antecedentes criminais dele em Macau, pode ser suspensa, nos termos permitidos pelos art.os 48.o, n.os 1, 2 e 5, e 49.o, n.o 1, alínea c), do CP, pelo período de um ano e seis meses, sob condição da prestação, no prazo de seis meses contados da data do trânsito em julgado do presente acórdão de recurso, de seis mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, passando, por conseguinte, a condenar directamente o arguido A como autor material de um crime consumado continuado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e seis meses, sob condição de prestação, no prazo de seis meses contado do trânsito em julgado da presente decisão, de seis mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Custas do processo em ambas as duas Instâncias pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça na Primeira Instância, e duas UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância, sendo certo que a quantia de MOP$2.100,00 de honorários de defesa oficiosa fixada na sentença recorrida passa a ficar a cargo do arguido, o qual precisa de pagar também mil patacas de honorários a favor da sua mesma Ex.ma Defensora Oficiosa por causa da defesa dele na presente lide recursória.
Comunique o presente acórdão (com cópia da sentença recorrida) ao Instituto de Habitação.
Macau, 21 de Abril de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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