打印全文
Processo nº 15/2022 Data: 25.03.2022
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : “Acção de reivindicação”.
Omissão de pronúncia.
Recurso da decisão da matéria de facto.
Poder de cognição do Tribunal de Última Instância.



SUMÁRIO

1. O vício de “omissão de pronúncia” – cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M. – apenas ocorre quando o Tribunal não emite pronúncia em relação a questão que lhe foi (devidamente) colocada e que devesse apreciar e decidir.

2. O Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a livre convicção pelas Instâncias formada quanto à prova (de livre apreciação), podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”.

Com efeito, em recurso cível correspondente a 3° grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, de matéria de direito e não de facto e a sua competência em apreciar a decisão de facto fica limitada, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância quanto à matéria de facto é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.° 2 do art.° 649° do C.P.C.M., isto é, se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

3. A “acção de reivindicação” é uma acção petitória, (declaratória e condenatória), destinada à defesa da propriedade, (estando este tipo de acção prevista na Seção II do Título II, precisamente dedicada à “Defesa da Propriedade”), tratando-se assim do “meio processual próprio” para obter a “restituição da coisa” de que se é proprietário do seu possuidor ou detentor.

Há assim na acção de reivindicação um indivíduo que é o titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é o titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide.

Essencial à caracterização de uma acção como de “reivindicação” é que esta prossiga uma “dupla finalidade” típica da «rei vindicatio»:
- o “reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa”, (imóvel ou móvel); e,
- a consequente “restituição – entrega – da coisa” pelo possuidor ou detentor dela.

4. Reconhecido o “direito de propriedade” do reivindicante sobre a coisa reivindicada, esta, nos termos do n.º 2 do enunciado no art. 1235° do C.C.M., só não lhe será restituída se o reivindicado alegar e provar que é titular de um direito real, (por ex: “servidão”, “usufruto”, etc…), ou de um direito de crédito, (ex: “contrato de arrendamento”), que legitime a sua recusa em restituí-la, pelo que ao reivindicante apenas compete alegar e provar que é “proprietário” da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do reivindicado, cumprindo, por sua vez, ao reivindicado o “ónus de alegar e provar” matéria que extinga, modifique ou impeça o direito do reivindicante em ver-lhe restituída a coisa.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 15/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Vem os (1°, 2ª e 3°) RR. A (甲), B (乙), e C (丙), recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 22.07.2021, (Proc. n.° 306/2021), com o qual se confirmou, na íntegra, a anterior sentença de 22.10.2020, (CV3-18-0047-CAO), pela Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base proferida, e com a qual, (essencialmente), se concedeu provimento à “acção de reivindicação” pela A. D (丁) aí proposta; (cfr., fls. 400 a 405 e 511 a 518-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Ponderando sobre o que decidido foi – pelo Tribunal Judicial de Base e pelo Tribunal de Segunda Instância – e considerando que as “questões” pelos recorrentes colocadas em sede da presente lide recursória, (cfr., as alegações e conclusões apresentadas a fls. 522 a 559), são (fundamentalmente) as mesmas que as antes já suscitadas no anterior recurso, (cfr., fls. 415 a 438), onde em nossa opinião se chegou a uma adequada, fundamentada e correcta solução, (cfr., fls. 511 a 518-v), evidente se nos apresenta a improcedência do presente recurso.

Passa-se a (tentar) expor este nosso ponto de vista, útil se mostrando, desde já, aqui transcrever o teor do que pelo Tribunal de Segunda Instância se consignou no dito Acórdão recorrido, e que é, (fundamentalmente), o seguinte:

“I. RELATÓRIO

D, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
A, B e C, também, todos com os demais sinais dos autos,
Pedindo que:
a) Seja reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre a fracção designada pela letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar “D” do prédio urbano sito [Endereço], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX-VI a folhas XX do Livro BXXM, inscrito na matriz sob o nº XXXXX;
b) Sejam os Réus condenados a restituir de imediato à Autora a referida fracção;
c) Sejam os Réus condenados, ao abrigo do disposto n o artº 333º do CC, a pagar à Autora uma sanção pecuniária compulsória, fixada segundo a equidade, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão do Tribunal.
Proferida sentença, foi a acção intendada pela Autora julgada parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, e em consequência:
- Condenar os réus A, B e C a reconhecerem à autora o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela Letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar D do [EDIFÍCIO] (TORRE F) sito [Endereço], descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX-VI, a folhas XX do Livro BXXM;
- Condenar os mesmos réus a restituir a referida fracção à autora;
- Julgar improcedente o restante pedido da autora.
- Julgar improcedente a reconvenção deduzida pelo 3º réu/reconvinte contra a autora/reconvinda, absolvendo-a do pedido reconvencional.
Custas (incluindo as da reconvenção) pelos réus.
Não se conformando com a decisão proferida vêm os Réus interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Na óptica do Tribunal recorrido, é indirecto o conhecimento da testemunha E (戊) sobre os factos pertinentes, uma vez que só os ouviu da mãe da autora.
2. No entanto, embora a testemunha os tenha ouvido da mãe da autora, é de salientar que esta última (F, mãe do 1º réu e avó do 3º réu) era a interessada. A testemunha pessoalmente ouviu F falar sobre a aquisição do imóvel em causa e o motivo da compra. Não se pode negar que ela tem conhecimento directo só porque não sabia dos pormenores da compra.
3. Na verdade, nem todas as pessoas contarão a terceiro todos os pormenores sobre a aquisição dum bem imóvel e o seu pagamento. Além disso, no caso dos autos, os pais da autora já faleceram.
4. Portanto, o depoimento da referida testemunha devia ter sido analisado em função das regras da experiência e bom senso, juntamente com os demais meios de prova existentes nos autos. Razão pela qual, a desvalorização da referida prova testemunhal violou gravemente as regras da experiência.
5. Quanto à reconvenção do 3º réu, o Tribunal recorrido entende que os réus quando se candidataram à compra de fracção de habitação económica já não se consideravam donos da fracção em causa. Naturalmente, o Tribunal diz isso porque entende que antes do referido requerimento de candidatura os réus pensavam que a fracção lhes pertencia.
6. Por outras palavras, o Tribunal recorrido deu como provado que os réus (particularmente o 3º réu) tinham o animus da posse antes de 1995.
7. De acordo com as respostas aos quesitos 17º a 19º da base instrutória, a partir de 1989, o 3º réu, legalmente representado pelos primeiros dois réus, começou a gerir e exercer o poder sobre a dita fracção, verificando-se deste modo o corpus.
8. O exercício do corpus faz presumir a existência do animus, pelo que o animus do 3º réu também existe. Ou seja, ele começou a exercer a posse sobre a fracção em causa a partir de 1989 (o Tribunal a quo também entende existir a posse antes de 1995).
9. Mesmo que a autora igualmente tivesse entretanto exercido posse sobre a mesma fracção (o que achamos nunca ter acontecido), tal posse já teria sido perdida em virtude da posse pacífica e pública do 3º réu (artigo 1192.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do CC).
10. Atento o depoimento testemunhal acima exposto, pode ter-se quase a certeza de que o 3º réu e os seus pais sabiam, no momento da aquisição da fracção em causa pelos pais da autora, de que o prédio iria ser doado ao 3º réu. É por essa razão que o Tribunal recorrido entendeu existir a posse antes de 1995.
11. Por outro lado, as duas candidaturas à compra de fracção de habitação económica foram respectivamente apresentadas pelo 1º réu e pela 2ª ré. Embora tendo sido estes representantes legais do 3º réu naquele tempo, não há elementos que permitam concluir que as candidaturas foram feitas em nome do 3º réu.
12. O facto de o 3º réu ser um elemento do agregado familiar não é suficiente para provar o seu abandono da posse.
13. Não se verificando nenhuma das situações acima referidas, e tendo o 3º réu vindo a utilizar a fracção em causa até hoje, pode concluir-se que ele nunca perdeu a posse, tendo antes sempre exercido a posse até agora.
14. Considerando que a posse do 3º réu é de boa fé, pacífica e pública, a usucapião deu-se no termo de 15 anos nos termos do artigo 1221 do CC. Portanto, o pedido reconvencional deve proceder.
15. Nestes termos e ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC, pede-se ao Venerando TSI que altere a decisão do Tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, julgando provados os factos descritos nos referidos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A e, em consequência, revogando a sentença recorrida, negando provimento aos pedidos da autora e concedendo procedência ao pedido reconvencional do 3º réu.
16. Mesmo que assim se não entenda, a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por omissão de alguns factos instrumentais essenciais.
17. São também de conhecimento oficioso os factos úteis para a compreensão e análise dos factos principais.
18. No caso dos autos, os pais da autora e do 1º réu já faleceram, pelo que há de recorrer aos outros factos pertinentes para o descobrimento da razão por detrás da aquisição da fracção em nome da autora.
19. Portanto, é preciso indagar alguns factos (incluindo os descritos nos artigos 11.º, 12.º, 16.º, 17.º e 19.º da contestação) para analisar a veracidade da versão fáctica alegada pelos recorrentes na contestação, e ajudar o Tribunal a tomar uma melhor decisão sobre a matéria de facto descrita nos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
20. A testemunha dos réus esclareceu bem claramente a situação de então, bem como a razão e finalidade por detrás da aquisição do imóvel em causa. A veracidade do seu depoimento pode ser comprovada pelo teor da carta (documento 2) junta à contestação e teor da carta (documento 6) anexa à réplica da autora.
21. Por conseguinte, o TSI deve ter condições para, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, considerar provados os atrás mencionados factos e proferir uma decisão diversa da já tomada.
22. Mesmo que se esteja contra a alteração imediata da decisão sobre a matéria de facto, pede-se que se decida, nos termos do artigo 629.º, n.º 4 do CPC, e com fundamento na errada decisão da matéria de facto por existência de grave deficiência, anular a decisão recorrida, ampliar a base instrutória e ordenar o reenvio dos autos à primeira instância para novo julgamento.
23. De resto, o Tribunal recorrido ao elaborar o despacho saneador omitiu os factos instrumentais relevantes para a valoração do referido depoimento testemunhal e para a apreciação do conjunto das circunstâncias factuais. O que levou à uma fundamentação demasiado superficial e manifestamente insuficiente.
24. A análise crítica do Tribunal vai além do mero significado das palavras dos depoentes, evidenciando a importância do modo como eles depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento; devendo o julgador fazer as observações que se impõem para que tal se torne transparente na audição da gravação feita, só, porém, a fundamentação revelará a medida em que tal terá sido decisivo para o convencimento do julgador.
25. Na apreciação da matéria de facto, o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.
26. A decisão recorrida demonstra a manifesta insuficiência da fundamentação, uma vez que o Tribunal a quo não só não considerou as reacções apresentadas pela única testemunha dos réus e as detalhes das suas respostas às perguntas do Tribunal, como ainda omitiu analisar a prova documental submetida pelos réus, a relação entre as partes e a razão por que levou tanto tempo até a autora instaurar a acção.
27. Portanto, deve ordenar-se o reenvio dos autos à primeira instância para a explicitação detalhada dos fundamentos decisivos e relevantes para as respostas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
Face ao exposto, pede-se que se julgue procedente o presente recurso e, em consequência:
A. Se revogue a sentença recorrida, julgando-se provados os factos descritos nos referidos quesitos 9º a 16º, 25º-B e 30º a 33º-A, negando-se provimento aos pedidos da autora e concedendo-se procedência ao pedido reconvencional do 3º réu.
Caso assim se não entenda,
B. Se anule a sentença recorrida, ampliando-se a base instrutória (devendo ser também incluídos, em particular, os factos descritos nos artigos 11.º, 12.º, 16.º, 17.º e 19.º da contestação e a demais factualidade que se julgue relevante) e ordenando-se o reenvio dos autos à primeira instância para novo julgamento.
Caso assim se não entenda,
C. Se ordene o reenvio dos autos à primeira instância para a explicitação detalhada dos fundamentos decisivos e relevantes para as respostas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B e 30º a 33º-A da base instrutória.
Assim se fazendo a habitual justiça!
Contra-alegando veio a Recorrida dizer o seguinte:
1. Salvo o devido respeito, não têm razão os RR., ora recorrentes, nas alegações de recurso e conclusões que formulam.
2. Os RR. recorrentes entendem que o Tribunal a quo julgou mal, tendo cometido erro na apreciação da prova, erro de apreciação de facto, tendo considerado matéria de facto insuficiente para emitir a sua decisão, e tendo justificado inadequadamente a sua decisão quanto à matéria de facto.
3. Contudo, o que se retira das alegações e conclusões dos RR. é que os mesmos, pura e simplesmente, não concordam com a apreciação da prova pelo Tribunal a quo. Os RR. não apontam nenhuma razão objectiva que possa colocar em causa a boa decisão do Tribunal a quo. Preferiam apenas que a decisão lhes tivesse sido favorável.
No entanto,
4. O Tribunal a quo apreciou livremente as provas, e formou a sua prudente convicção sobre os factos alegados pelas partes.
5. Relativamente ao peticionado pela A., ora recorrida, os RR. recorrentes não apresentaram qualquer prova que pudesse refutar as provas da A.. Tanto os documentos juntos ao processo como as testemunhas ouvidas em audiência demonstraram que a fracção em causa nos autos foi adquirida pela A., com o seu dinheiro. O contrato­promessa, a escritura, o registo, os documentos comprovativos do pagamento do preço da compra, a concessão de empréstimo bancário para aquisição da fracção, o pagamento das amortizações mensais, o pagamento das rendas e contribuições da fracção, está tudo em nome da A. e foi efectuado pela A.. Não podem, por isso, restar dúvidas de que a fracção é, desde o início e sempre foi, da A.!
Mais,
6. Relativamente ao peticionado pelos RR. em reconvenção - usucapião -, também os RR. não fizeram qualquer prova da sua posição, ou pelo menos prova minimamente atendível. Fizeram apenas prova de ter suportado algumas despesas relativas ao apartamento. Ora isso é normal, pois eram eles que lá moravam e foram eles que fizeram os consumos. Dado que viviam no apartamento por mera tolerância da A., sem lhe pagar nada, nada mais justo que suportassem algumas das despesas. Além de que os próprios vizinhos sabiam que o apartamento não era deles - e assim foi confirmado em audiência de julgamento. Nada disso faz supor que os RR. agissem como proprietários - situação que foi correctamente apreciada pelo Tribunal a quo.
7. Ou seja, os RR. não fizeram qualquer prova de que utilizavam o apartamento em nome próprio - aliás porque sempre souberam que a proprietária é a A., em nome de quem sempre possuíram o apartamento.
Acresce que,
8. Os RR. nunca inverteram o título da posse contra a A. – nem fizeram qualquer prova disso.
9. Pelo que, esteve bem o Tribunal a quo ao considerar procedente o pedido da A. e improcedente o pedido reconvencional dos RR.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

a) Factos

Na decisão sob recurso foi apurada a seguinte factualidade:

Facto assente:
- A A. é proprietária registada no registo predial da fracção designada pela letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar D do prédio urbano sito em [Endereço], descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX-VI a folhas XX do Livro BXXM, inscrito na matriz sob o n.º XXXXX. (alínea A) do facto assente)
Base instrutória:
- Dada a saúde precária do irmão da A. e a existência de um filho menor, C, e tendo em consideração as dificuldades financeiras delas, a A. foi sempre permitindo que o seu irmão A (1º Réu), a sua cunhada B (2ª Ré) e o seu sobrinho C (3º Réu) permanecessem na fracção. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- A A. tentou por diversas vezes que os RR. lhe entregassem de volta a fracção. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A A. enviou aos RR. as cartas registadas com aviso de recepção, em 20 de Março de 2018, a interpelá-los para entregarem a fracção, no prazo de 30 dias. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Cartas essas que, apesar de avisados, os RR. não levantaram. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- O 1º Réu é casado com a 2ª Ré. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Antes de se casar, o 1º Réu habitava em Macau, com os seus pais, G e F. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Em 1987, a 2ª ré deu à luz o 3º réu (filho dela e do 1º réu) no interior da China, onde vivia com o filho. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- A partir da celebração do contrato-promessa de compra e venda, o 1º réu passou a residir na fracção autónoma em causa juntamente com os pais. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- O pai do 1º Réu faleceu. Nos anos 90s a 2ª Ré e o 3º Réu fixaram residência em Macau. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Desde então, o 1º Réu passou a coabitar com a sua mãe F, 2ª Ré e seu filho, 3º Réu na fracção autónoma referida em A) dos factos assentes. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- A autora celebrou a escritura de compra e venda da referida fracção autónoma em 29 de Setembro de 1993. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- A mãe do 1º Réu faleceu. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- Os Réus responsabilizaram-se pelas despesas diárias e pelas necessárias obras referentes à fracção autónoma. (resposta aos quesitos 26º a 29º da base instrutória)

b) Do Direito

Nas suas alegações e conclusões de recurso vêm os Réus invocar que o tribunal “a quo” haveria de ter dado como provado os quesitos da base instrutória 9º a 16º, 25ºB e 30º a 33ºA (conclusão 15º), ou nas alegações 9º a 16º, 22º a 25ºB e 30º a 33ºA.
Para o efeito invocam que se havia de ter dado credibilidade ao depoimento da testemunha E, reproduzindo a parte que do respectivo depoimento que entendem sustentar a sua posição e indicando a parte da respectiva gravação a que a mesma respeita em obediência ao disposto no nº 2 do artº 599º do CPC.
Relativamente a esta matéria a fundamentação constante do Acórdão sobre as respostas dadas à base instrutória é a seguinte:
«A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 6 a 36, 85 a 163, 206 a 278, 315 a 317, 321 a 324, 340 a 383 e 388 a 391 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
Em particular, sobre os factos se a fracção autónoma foi adquirida pelos seus pais e pelo 1º Réu mas registada em nome da Autora, por parte dos Réus, tem somente o depoimento da única testemunha, sendo o seu conhecimento indirecto, ouvindo dizer da mãe da Autora, sem conhecimento concreto e detalhado as circunstâncias fácticas em que foram efectuados os pagamentos para a aquisição da fracção, para além disso, conforme os documentos constantes de fls. 340 a 383, o agregado familiar dos Réus requereram, em 1995 a aquisição da casa económica junto do Instituto de Habitação, a conduta dos Réus ilustra que, na altura, eles já não se acharam a fracção ser da sua pertença. Ao contrário, por parte da Autora, para além do depoimento das testemunhas, foram apresentadas pela Autora documentos inerentes à aquisição da fracção autónoma, tais como o contrato-promessa, os documentos comprovativos de pagamento do preço da compra, da concessão de empréstimo bancário em nome dela para a aquisição da fracção, assim como da pagamento das amortizações mensais, de pagamento das rendas e contribuições prediais da fracção autónoma, perante essas provas sólidas em contrário, não merce acolhimento do Tribunal a versão dos Réus quanto à fracção autónoma ter sido adquirida com o dinheiro do 1º Réu e seus pais para ser, posteriormente, transmitida ao 3º Réu. Nestes termos, não se deram por provados os factos dos quesitos 9º a 16º, 22º a 25º-B, 30º a 33º-A.
As duas testemunhas da Autora deram conta de que a Autora deixou os seus pais, assim como os Réus a residir na fracção autónoma, conforme a certidão da sentença de fls. 387 a 390, e das cartas escritas pela 2ª Ré de fls. 235 a 240, o 1º Réu tem sofrido problema mental e que os 2ª Ré e 3º Réu só imigraram do interior da China para Macau nos anos 90s, não tendo condições económicas para auto-sustento, como a Autora é titular da fracção autónoma e irmã do 1º Réu, sendo natural que lhes deu acolhimento, pelo que convencemos pelos factos qua a Autora deixou os Réus a residir na fracção por causa dessa relação de parentesco, assim, deram-se por provados os factos dos quesito 1º, 7º e 17º a 19º.».
De realçar que das cartas a fls. 235 a 240 também referidas na fundamentação supra reproduzida, endereçadas pela 2ª Ré à Autora, aquela pede a esta dinheiro para pagarem a alguém que lhes irá conseguir a autorização de virem viver para Macau, o que terá acontecido nos anos 1990/91, o que, é bastante para desacreditar toda a versão apresentada nos quesitos 9 º a 16º, uma vez que, se em 1990 e 1991 os Réus não tinham dinheiro – e pelos vistos os pais do 1º Réu e da Autora também não, caso contrário segundo a tão invocada regra da experiência seria a estes (pais e sogros) que pediam e não à Autora – para pagar vinte ou trinta mil a quem lhes arranjasse uma autorização legal para passarem a viver em Macau, pelo que, menos dinheiro teriam para comprar uma fracção autónoma em Macau.
O que resulta da fundamentação referida é que a testemunha E é a única a vir contar que “ouviu” da mãe da Autora e do 1º Réu que tinha sido esta a pagar a aquisição da fracção autónoma a qual seria para passar para nome do neto quando este fizesse 18 anos e que até lá ficava em nome da filha porque o filho teria problemas mentais e tinha medo que a nora se apoderasse dela.
Para além deste “ouvir dizer” nada traz esta testemunha que afaste a prova documental e também testemunhal apresentada pela Autora e também referida na fundamentação da decisão da matéria de facto.
A aquisição e transmissão de imóveis tem de ser feita através de documentos autênticos lavrados por oficiais (públicos ou privados) com competência legalmente reconhecida para o efeito.
O que os Réus pretendem é que o tribunal com base num depoimento testemunhal de “ouvir dizer” a alguém que por acaso até já morreu e não pode confirmar as declarações, sem prova documental alguma que confirme aquelas declarações se acredite por uma versão perfeitamente contrária ao que consta de documentos autênticos e demais prova documental junta aos autos.
Mal andariam os tribunais se os depoimentos de ouvir dizer a uma senhora que às vezes ia a casa da mãe tomar o pequeno almoço valessem mais que declarações prestadas perante oficial com competência para as receber, entender e explicar o alcance das mesmas.
Atente-se que tal como tem vindo a ser entendido unanimemente por este tribunal no que concerne à convicção do tribunal a lei consagra o princípio da livre apreciação da prova, salvo nos casos em que a lei atribua o valor de prova plena.
Destarte, porque resulta da imediação, este tribunal só poderá sindicar a convicção formada pelo tribunal “a quo” se tiverem sido violadas regras de prova tarifada ou vinculada, se se mostrar manifestamente contrária às regras da experiência da vida e da lógica – cf. Acórdão deste Tribunal de 13.05.2021 processo 228/2020 -, ou quando a fundamentação seja inexistente.
No mesmo sentido veja-se Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3ª Ed., pág. 523 e seguintes.
Pelo que, considerando que o depoimento testemunhal cabe no âmbito da livre apreciação do tribunal, que o tribunal “a quo” beneficiou da imediação quando o depoimento foi prestado o que permite um percepção em nada comparável à leitura ou audição de depoimentos gravados, e que, concluiu não ser o mesmo bastante, para em face da prova documental existente nos autos comprovar a versão apresentada pelos Réus nos indicados quesitos, não só não há reparo algum a fazer à fundamentação apresentada, como, pelo contrário, segundo as regras da experiência e de acordo com o valor da prova apresentada, se nos apresenta a decisão tomada como a única possível.
Pelo que, improcede o recurso no que concerne à impugnação das respostas dadas aos quesitos 9º a 16º, 22º a 25ºB e 30º a 33ºA da Base Instrutória.

Mais se invoca nas alegações de recurso que o tribunal “a quo” entendeu que houve posse por banda do 3º Réu antes ou até 1995.
Porém, laboram os Recorrentes em erro de interpretação.
O que se diz na fundamentação da matéria de facto é que a atitude dos Réus em 1995 quando requerem a aquisição de casa económica já ilustra que eles bem sabiam que a fracção onde viviam – a fracção autónoma a que respeitam os autos – não era de sua pertença.
Em momento algum se diz que antes tinham a posse no sentido jurídico do conceito – corpus e animus – como sendo os donos da coisa, nem facto algum se provou nesse sentido.
Sendo certo que, esta argumentação é meramente instrumental daquela outra que resultou em não se aceitar o único – entre muitos outros – depoimento prestado num sentido que convinha à versão dos Réus e que já antes aludimos.

Por fim os factos que os Réus entendem ser instrumentais dos artº 11º, 12º ainda que se provassem não permitem retirar a conclusão alguma, seja pela forma vaga e imprecisa como foram formulados, seja porque à míngua de outra factualidade nunca seriam suficientes para se extrair a conclusão que se pretende, sendo que os factos 16º, 17º e 19º nem instrumentalmente têm interesse algum para a decisão da causa ou esclarecer a factualidade que lhe está subjacente, pelo que, também nesta parte o recurso só pode improceder.
(…)”; (cfr., fls. 511 a 518).

Aqui chegados, vejamos.

–– Começam os ora recorrentes por dizer que “nula” é a decisão do Tribunal de Segunda Instância por padecer de “omissão de pronúncia”.

Fundamentam este entendimento alegando que no seu anterior recurso colocaram 3 questões (ao Tribunal de Segunda Instância), ou seja, a de “erro na apreciação da prova em sede da decisão da matéria de facto (provada)”; a de “insuficiência da decisão da matéria de facto” (com pedido da sua ampliação), e a de “falta de fundamentação”, nada se tendo dito em relação a esta última, e, daí, a assacada invalidade; (cfr., fls. 541 e 541-v e conclusões 1ª e 2ª).

Ora, (sem prejuízo do muito respeito), cremos que o que neste ponto sucede é que os recorrentes “distorcem”, (ou, quiçá, “não captaram”, devidamente), o que sucedeu e se decidiu.

Com efeito, o vício de “omissão de pronúncia” – cfr., art. 571°, n.° 1, al. d) do C.P.C.M. – apenas ocorre quando o Tribunal não emite pronúncia em relação a questão que lhe foi (devidamente) colocada, (e que devesse apreciar e decidir, v.g., por não ter ficado prejudicado o seu conhecimento; sobre a questão, vd., entre outros, os Acs. deste T.U.I. de 19.11.2021, Proc. n.° 88/2021 e de 28.01.2022, Proc. n.° 137/2021).

No caso, como se referiu, a pelos recorrentes (então) suscitada questão da “falta de fundamentação” dizia respeito à decisão da matéria de facto (provada) do Tribunal Judicial de Base; (cfr., as “conclusões n.° 25 a 27” do recurso apresentado ao Tribunal de Segunda Instância e que vem explicitadas no Acórdão agora recorrido).

E, como na nossa perspectiva se mostra evidente, nem a sentença do Tribunal Judicial de Base padecia de qualquer “deficiência”, ou “falta de fundamentação” – sendo, aliás, de referir, que se nos apresenta constituir (também) uma decisão com adequada, justa e correcta fundamentação de facto e de direito – nem tão pouco incorreu o Tribunal de Segunda Instância em qualquer “omissão de pronúncia”, (ou outro vício), bastando, para o constatar, uma mera leitura ao Acórdão recorrido.

Atente-se pois, nomeadamente, que no Acórdão recorrido, e para uma cabal explicitação, até se transcreveu o “excerto mais relevante da fundamentação” pelo Tribunal Judicial de Base exposta para a justificação da sua convicção sobre a matéria de facto levada à base instrutória e para a sua decisão.

É verdade, (e não se nega), que não se consignou, expressamente, que o Tribunal Judicial de Base não tinha incorrido em “falta de fundamentação” – porque esta, efectivamente, existe, (sendo clara e manifestamente suficiente, bastando ver o teor da sentença proferida) – indicando-a, (ou transcrevendo-a), de seguida.

Porém – e embora certamente melhor seria se o tivesse feito – inegável se nos apresenta que não deixou de “demonstrar” e “esclarecer”, cabalmente, o “porque” da convicção e da decisão da matéria de facto pelo Tribunal Judicial de Base prolatada, (tendo, da mesma forma, dado adequada resposta ao pelos recorrentes igualmente imputado vício de “erro na apreciação da prova”, com aquela assacada “falta” relacionado).

Assim, e sendo esta – em bom rigor – a (verdadeira) “razão”, “dúvida”, (ou “inconformismo”) dos ora recorrentes com as ditas “questões” colocadas, adequado (ou razoável) não é dizer-se que “nada se disse”, (ou que ficaram sem resposta ou esclarecimento), e que incorreu o Tribunal de Segunda Instância na imputada nulidade por “omissão de pronúncia”.

Claro nos parecendo o que se consignou, ociosas são mais alongadas considerações sobre o ponto em questão.

–– Insistem, também, os ora recorrentes, (re)afirmando que existe “erro na apreciação da prova em sede da decisão da matéria de facto” e que esta é “insuficiente”, devendo ser ampliada.

Ora, quanto ao “erro”, importa ter presente o estatuído no art. 649° do C.P.C.M. onde se estatui que:

“1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Nesta conformidade, evidente se apresenta que o Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a livre convicção pelas Instâncias formada quanto à prova (de livre apreciação), podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”.

E como também, (e repetidamente), já tivemos oportunidade de afirmar, “em recurso cível correspondente a 3.º grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, de matéria de direito e não de facto e a sua competência em apreciar a decisão de facto fica limitada, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância quanto à matéria de facto é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC, isto é, se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”; (cfr., v.g., entre muitos outros, e para citar dos mais recentes, o Ac. de 16.02.2022, Proc. n.° 82/2020).

In casu, seja como for, e independentemente do demais, basta ler o que se consignou no Acórdão recorrido que, diríamos, de forma concludente (e abundante), afastou qualquer indício que seja do imputado “erro”, mostrando-se-nos de realçar apenas que a “insistência” no “valor”, “qualidade” e “força persuasiva” do depoimento da única testemunha – de “ouvir dizer” – por parte dos RR., ora recorrentes, apresenta-se, no mínimo, como uma muito pouco feliz prática processual, pois que em face das claras e evidentes razões pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância já evidenciadas, é caso de se dizer que o invocado “vício” só existe para quem, a todo o custo, o quer ver, mesmo que para mais ninguém exista…

–– Por fim, e quanto à também assacada “insuficiência” e pretendida “ampliação da matéria de facto”, vejamos.

Nos termos do art. 1232° do C.C.M.:

“Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei”.

Sendo a acção pela A. proposta no Tribunal Judicial de Base uma “acção de reivindicação”, cabe desde já referir e notar que o “direito à reivindicação” – reconhecido ao proprietário há longo tempo, desde os tempos do Direito Romano através do instituto da “rei vindicatio” (que pode ser traduzido como “condenação a restituir”), representa a “expressão mais dinâmica do próprio direito real que tutela”, (cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, Vol. III, pág. 112 e segs.), valendo a pena atentar (também) que, com esta (mesma) epígrafe, prescreve o art. 1235° do C.C.M. que:

“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

Ora, em face do assim estatuído, tem-se (pacificamente) entendido que a “acção de reivindicação” é uma acção petitória, (declaratória e condenatória), destinada à defesa da propriedade, (estando este tipo de acção prevista na Seção II do Título II, precisamente dedicada à “Defesa da Propriedade”), tratando-se assim do “meio processual próprio” para obter a “restituição da coisa” de que se é proprietário do seu possuidor ou detentor; (sobre o tema, cfr., v.g., Correa Teles, que já dizia que “vindicar é tirar o que é nosso da mão de quem injustamente o possui”, in “Doutrina das Acções”, 3ª ed., §68; Coelho da Rocha in, “Instituições de Direito Civil Português”, 4ª ed., Tomo II, pág. 406; Manuel Rodrigues in, “A reivindicação no direito civil português”, na R.L.J., Ano 57, pág. 113 e segs.; Gonçalves Salvador in, “A causa de pedir na acção de reivindicação”, na “Justiça Portuguesa”, Ano 27, pág. 16 e segs.; J. R. Bastos in, “Direito das Coisas, Segundo o Código Civil de 1966”, Vol. I, pág. 138 e segs.; J. O. Ascensão in, “Acção de Reivindicação”; Pires de Lima e Antunes Varela in, ob. cit., pág. 112 e segs.; e Menezes Cordeiro in, “Direitos Reais”).

Como (expressivamente) já notava Manuel Rodrigues, “há na acção de reivindicação um indivíduo que é o titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é o titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide”; (in ob. cit., pág. 144).

Na verdade, essencial à caracterização de uma acção como de “reivindicação” – que é, como se referiu, uma manifestação da “sequela”, do próprio conteúdo do direito real – é que esta prossiga uma “dupla finalidade” típica da «rei vindicatio»:
- o “reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa”, (imóvel ou móvel; cfr., aqui o Ac. deste T.U.I. de 30.11.2007, Proc. n.° 10/2006, onde, tratando do tema, considerou que “Só as coisas corpóreas podem ser objecto do direito de propriedade regulado no Livro de Direitos das Coisas do Código Civil”); e,
- a consequente “restituição – entrega – da coisa” pelo possuidor ou detentor dela; (pois que se o autor já estiver na posse da coisa mas pretender obter o “reconhecimento judicial” do seu direito de propriedade porque alguém o colocou em séria dúvida, o meio adequado a prosseguir a sua pretensão já não será a acção de reivindicação, mas sim a “ação de simples apreciação positiva”, o mesmo sucedendo, se alguém pretender a entrega da coisa porque o dono lha emprestou ou alugou, sendo então a acção a intentar, não é a da reivindicação, mas sim a “acção de cumprimento”).

Consequentemente, a acção de reivindicação é integrada e caracterizada por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade, (“pronuntiatio”), e a restituição da coisa (“condemnatio”).

Só através destas duas finalidades se preenche o esquema da “acção da reivindicação”, pondo-se, contudo, em destaque, que se o reivindicante se limitar a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, entende-se que aquele pedido encontra-se implícito no da restituição.

Por outro lado, reconhecido que seja o “direito de propriedade” do reivindicante sobre a coisa reivindicada, esta, nos termos do n.º 2 do enunciado no transcrito art. 1235° do C.C.M., só não lhe será restituída se o reivindicado alegar e provar que é titular de um direito real (por ex: “servidão”, “usufruto”, etc…), ou de um direito de crédito, (ex: “contrato de arrendamento”), que legitime a sua recusa em restituí-la, pelo que ao reivindicante apenas compete alegar e provar que é “proprietário” da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do reivindicado, cumprindo, por sua vez, ao reivindicado o “ónus de alegar e provar” matéria que extinga, modifique ou impeça o direito do reivindicante em ver-lhe restituída a coisa.

Aliás, claro é o teor do dito n.° 2 do art. 1235° do C.C.M. ao prescrever que “Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

In casu, sem embargo do esforço pelos RR., ora recorrentes empreendido, alegando e batendo-se por uma “versão factual” que impedisse o sucesso da pretensão da A., ora recorrida, tal não veio a suceder, valendo a pena recordar que perante a “prova documental” por esta apresentada foi (logo) no despacho-saneador considerado como facto “assente” que:

“- A A. é proprietária registada no registo predial da fracção designada pela letra D14, destinada a habitação, correspondente ao 14º andar D do prédio urbano sito em [Endereço], descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX-VI a folhas XX do Livro BXXM, inscrito na matriz sob o n.º XXXXX. (alínea A) do facto assente)”.

Por sua vez, em resultado do julgamento efectuado, ficou (nomeadamente) “provado” que:

“- Dada a saúde precária do irmão da A. e a existência de um filho menor, C, e tendo em consideração as dificuldades financeiras delas, a A. foi sempre permitindo que o seu irmão A (1º Réu), a sua cunhada B (2ª Ré) e o seu sobrinho C (3º Réu) permanecessem na fracção. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- A A. tentou por diversas vezes que os RR. lhe entregassem de volta a fracção. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A A. enviou aos RR. as cartas registadas com aviso de recepção, em 20 de Março de 2018, a interpelá-los para entregarem a fracção, no prazo de 30 dias. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Cartas essas que, apesar de avisados, os RR. não levantaram. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)”; (cfr., fls. 515).

Por fim, e com particular relevância para a questão, importa ver que (quase) toda a dita “versão” dos RR. resultou “não provada”, ou seja, (e seja-nos perdoada a “repetição”, especialmente), que:

“(…)
9. Por volta do ano de 1989, altura que o 3.° Réu tinha entre 1 a 2 anos de idade, o 1.° Réu e os pais, G e F da Autora adquiriram a fracção autónoma descrita em A) dos factos assentes, tendo ainda utilizado dinheiro das suas poupanças para o pagamento da 1.ª prestação?
10. Uma grande parte da quantia remanescente foi paga pelos pais, G e F, tendo o 1.° Réu pago uma quantia parcial do remanescente?
11. No entanto, relativamente à supracitada fracção autónoma, a Autora não pagou qualquer importância?
12. A Autora e os pais do 1.° Réu, por recearem que, caso a respectiva fracção autónoma fosse registada em nome do 1.° Réu, ele desaproveitaria esse bem ou seria ambicionado e apoderado pela 2.ª Ré?
13. Após ponderação e para evitar que a aludida preocupação se tornasse numa realidade, os pais decidiram que, a Autora passaria a deter a fracção autónoma descrita em A) dos factos assentes e que fosse provisoriamente registada em nome da Autora?
14. Os pais exigiram à Autora que transferisse incondicionalmente a referida fracção em nome do 3.° Réu quando o mesmo atingisse a maioridade, uma vez que, a aquisição dessa fracção era para que o seu neto (3.° Réu) pudesse, no futuro, possuir uma casa própria?
15. A Autora concordou ajudar os seus pais na detenção da respectiva fracção e assinou o contrato-promessa de compra e venda?
16. A Autora concordou e comprometeu aos seus pais e ao 1.° Réu que haveria de transferir incondicionalmente o direito de propriedade da respectiva fracção ao 3.° Réu quando o mesmo atingisse a maioridade?
(…)
22. O Réu sempre entendeu que a intenção de seus pais era a de entregar a respectiva fracção ao 3.° Réu pelo que, a família do Réu, composto por 3 agregados familiares, continuaram a habitar na fracção como sua casa de morada de família?
23. Após o 3.° Réu ter atingido a maioridade, os Réus e demais seus familiares solicitaram, por várias vezes, à Autora para o cumprimento do que fora comprometido e que fosse transferido o direito de propriedade da respectiva fracção ao 3.° Réu, mas a Autora ignorou a situação?
24. A partir de 1989, o 1.° Réu e a 2.ª Ré, na qualidade de representante legal, representaram seu filho, 3.° Réu, ficando à guarda e gestão da fracção autónoma dos presentes autos?
25. Ao longo dos anos, os 3 Réus sempre residiram na aludida fracção autónoma como sua casa de morada de família e comportando-se como seus proprietários, e nunca ninguém manifestou qualquer oposição ou que tenham sidos impedidos de lá ficar?
25-A. De facto, a Autora nunca se intitulou, junto dos Réus, como proprietária, nem lhes exigiu a desocupação?
25-B. A Autora nunca utilizou a aludida fracção autónoma, nem fez nada para a mesma, também não sabe as informações básicas desta fracção?
(…)
30. Quando foi celebrada a escritura de compra e venda da aludida fracção autónoma, a Autora tinha claro conhecimento de que teria que devolver a respectiva fracção autónoma ao 3.° Réu, quando este atingisse a maioridade?
31. Desde tenra idade que o 3.° Réu já sabia que os seus avós lhe tinham deixado a fracção autónoma referida em A) dos factos assentes?
31-A. Para toda a família Cheong (nomeadamente os familiares mais velhos da Autora e do 1.° Réu), os amigos e os vizinhos dos Réus, a partir da data em que os avós do 3.° Réu lhe compraram a fracção autónoma descrita em A) dos factos assentes, ou seja, desde 1989, o 3.° Réu é legítimo proprietário da respectiva fracção autónoma?
32. O 3.° Réu tinha claro conhecimento que a Autora se tinha comprometido transferir-lhe o direito de propriedade da fracção quando o mesmo atingisse a maioridade?
33. O 3.° Réu sempre acreditou que essa sua posse nunca lesionou nem ofendeu os interesses de outrem?
33-A. A Autora nunca apresentou oposição ou reclamação à ocupação do 3.° Réu?”; (cfr., fls. 303-v a 305).

Nesta conformidade, e perante o que se deixou consignado, igualmente evidente é a (total) improcedência desta parte do recurso, (pouco se mostrando de acrescentar).

De facto, que interesse pode ainda ter saber da (eventual) “situação económica da A.”, recorrida, quando efectuou a compra do imóvel dos autos, (para saber se o podia pagar), e, se de acordo com invocados “usos e costumes” e “regras da experiência” plausível é a versão dos RR. ora recorrentes se, como se deixou retratado, (definitivamente) provada ficou a “matéria” dos quesitos 1° a 5°, e, inversamente, não se provou a “restante matéria” atrás transcrita, e que, em boa verdade, materializava a “estratégia de defesa” por estes adoptada para o afastamento da pretensão da A., ora recorrida?

Ora, como se nos apresenta manifesto, e para além do demais, seria como “tentar trocar os azulejos de uma piscina cheia de água”…

Assim, e apresentando-se-nos que a “decisão da matéria de facto” não merece a mais pequena censura, a mesma só podia ser enquadrada como foi, (com a decisão proferida e confirmada pelo Acórdão recorrido), ou seja, mostrando-se levado a registo, a título definitivo, que a A. é a proprietária do imóvel descrito, e não estando impugnado o título respectivo, impunha-se retirar as consequências da presunção, não ilidida, de titularidade do “direito de propriedade” da A. sobre esse imóvel, decidindo-se em conformidade.

Com efeito, não se pode olvidar que nos termos do art. 7° do C.R.P.M.: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

E, como, resulta do art. 343°, n.° 1 do C.C.M.: “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, e certo sendo que “As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”, (cfr., n.° 2), era aos ora recorrentes que incumbia ilidir a dita presunção e não o fizeram.

Dest’arte, e resolvidas todas as questões colocadas, resta decidir como segue.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Pagarão os RR. recorrentes a taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 25 de Março de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 15/2022 Pág. 18

Proc. 15/2022 Pág. 19