Processo nº 139/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 7 de Abril de 2022
ASSUNTO:
- Impugnação da matéria de facto
- Responsabilidade solidária da concessionária
SUMÁRIO:
- Para que a decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes;
- A responsabilidade solidária da concessionária de jogo de fortuna e azar só existe quando o depósito em causa tem conexão com a promoção da actividade de jogo e azar;
- Não tendo elementos que permitem concluir o depósito tem conexão com a actividade da exploração de jogo, não podemos condenar a concessionária de jogo, a pagar solidariamente a quantia depositada ao abrigo do artº do artº 23º, nº 3 da Lei nº 16/2001, bem como dos artºs 29º e 30º do RA nº 6/2002.
________________
Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 139/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 7 de Abril de 2022
Recorrentes: A
XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada
Recorridos: Os mesmos e YYYY Resorts (Macau) S.A.
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
YYYY Resorts (Macau) S.A. e
XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada,
também com os demais sinais dos autos,
Pedindo a condenação destas a restituírem-lhe solidariamente a importância global de MOP6.185.968,35, acrescida de juros de mora à taxa legal com a sobretaxa dos juros comerciais até integral pagamento.
Foi proferida sentença a condenar a Ré XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada a pagar ao Autor a quantia de HKD6.000.000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal, com a sobretaxa de 2% contados a partir de 21 de Agosto de 2018, até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se a Ré YYYY Resorts (Macau) S.A. do pedido.
Não se conformando com a referida sentença vieram o Autor e Ré XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada interpor recurso da mesma.
Pelo Autor não se conformando com a decisão recorrida quanto à absolvição da Ré YYYY Resorts (Macau) S.A. foram apresentadas as seguintes conclusões de recurso:
1. Na presente acção o Autor pediu a condenação solidária da 1ª e 2ª Rés no pagamento de MOP$6,185,968.35 (seis milhões, cento e oitenta e cinco mil, novecentos e sessenta e oito patacas e trinta e cinco avos), fruto do incumprimento do contrato de depósito irregular, no qual a 2.ª Ré se recusa a restituir a quantia que lhe foi entregue por aquele.
2. Feito o julgamento, veio somente comprovado que o Autor entregou o montante de HKD$6,000.000.00 à 2ª Ré, a qual ficou depositada na conta de jogador aberta pelo Autor, com o n.º ****0173, na sala VIP explorada pela 2ª Ré e ao Autor foi entregue uma quitação com o n.º 009***.
3. O douto tribunal considerando que não estava em causa o cumprimento das normas legais ou regulamentares pelos promotores visto o depósito em causa ser meramente um contrato celebrado entre o Autor e a 2ª Ré que não tem, necessariamente, conexão com o âmbito da actividade explorada pelo promoção de jogo, julgou parcialmente procedente a acção e condenar apenas a Ré XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada pagar ao Autor A uma quantia de HKD$6.000.000.00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, com a sobretaxa de 2% contados a partir de 21 de Agosto de 2018, até integral e efectivo pagamento, absolvendo a Ré YYYY Resorts (Macau) S.A. do pedido formulado pelo Autor.
4. Consequentemente, é relativamente a esta parte da responsabilidade da 1ª Ré que se recorre.
5. As concessionárias do jogo não podem ignorar as actividades que, em benefício dela, são levadas a cabo no seu espaço de exploração de jogos de fortuna e azar. É o que decorre nitidamente do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 (que “regula a actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino”), que estabelece as concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraXXXXs e colaboraXXXXs destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis.
6. Salvo o devido respeito por melhor opinião, a intenção do legislador não foi de excluir a responsabilidade individual, mas sim contemplar a responsabilidade funcional e política da liberalização do jogo, em todos os seus sentidos, em nome do interesse colectivo.
7. A concessionária é obrigada a manter em dia a escrita comercial existente com os promotores de jogo e a enviar mensalmente uma relação dos montantes de imposto retido na fonte e ainda remeter à DICJ uma lista actualizada de todos os promotores de jogo registados e seus administraXXXXs.
8. Ora essa obrigação visa um controlo das actividades desenvolvidas pelos promotores, em nome do interesse público E ficou clara no artigo 29º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
9. Pelo que, tendo sido notório que o acto de recebimento do depósito foi praticado por uma promotora de jogo 2ª Ré, num casino da 1ª Ré, esta tem a obrigação da restituição dessa quantia, (assim como a 2ª Ré), por ser esta concessionária de jogo e nessa qualidade, ter acordado com a 2ª Ré para que esta prestasse actividade de promoção de jogo no seu casino, tendo por isso a 1ª Ré a obrigação de fiscalizar a actividade da 2ª Ré, assumindo igualmente responsabilidade de indemnizar aos terceiros os danos causados pelos actos da 2ª Ré, ao abrigo do disposto do artigo 29º e 31º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
10. Pelo que não se entende em que medida um acto de depósito numa promotora de jogo, havendo um recibo emitido inclusivamente pela própria promotora de jogo, para o demonstrar não poderá ser considerado como integrante na actividade de promoção de jogo.
11. A 1ª Ré enquanto concessionária de um serviço público que celebrou com o Governo da RAEM é responsável solidariamente com os promotores de jogo pela actividade por eles desenvolvida nos casinos, assim como pelos administraXXXXs e colaboraXXXXs destes.
12. Ora, é facto notório que as concessionárias do jogo, como a 1.ª Ré, beneficiam largamente da actividade dos promotores de jogo, como o é a 2ª Ré, nos seus casinos.
13. A quantias que, como supra se demonstrou, foi entregue à 2ª Ré, ficaram depositadas na sua sala VIP sita no casino da 1ª Ré.
14. A 1ª Ré tinha obrigação de saber o que lá se passava e de supervisionar toda a actividade da 2ª Ré no seu espaço de negócio. Mas não o fez. E não o fazendo, foi permitindo que elevadas captações de quantias pecuniárias fossem tomadas pela 2ª Ré (quantias essas que depois eram usadas para o jogo no casino da 1ª Ré), sem que qualquer tipo de garantias ou condições mínimas de segurança para quem depositava fossem observadas.
15. O facto da 1ª Ré nem sequer ter o cuidado de supervisionar a actividade creditícia da 2ª Ré, levada a cabo no seu casino, é notória pelo facto que veio a público no dia 10 de Setembro de 2015 e ficou provado, que a promotora de jogo aqui 2ª Ré havia sido vítima de uma fraude interna através da apropriação e desvio de uma importância global que se situaria entre os HKD$200.000.000,00 e os HKD$2.000.000.000,00, tendo sido tal facto levado ao conhecimento da Polícia.
16. Afigura-se portanto que há condições para que esse Venerando Tribunal ad quem considere que a lª Ré deverá ser condenada solidariamente com a 2ª Ré, nos termos do art.º 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
Pela Ré YYYY Resorts (Macau) S.A. contra-alegando foram apresentadas as seguintes conclusões:
I. Vem o recurso sub judice da sentença de fls. 309 e ss., na parte em que absolveu a 1.ª Ré do pedido;
II. O Recorrente-Autor alegou e invocou como causa de pedir, a solicitação, pela 2.ª Ré, de um investimento na sala VIP desta, na sequência do que viria a ser celebrado um acordo em que aquele entregou à 2.ª Ré o montante de HKD$6,000.000,00, contra o pagamento de juros mensais de 2%;
III. Não tendo o Recorrente-Autor logrado provar in totum a causa petendi, não pode, em sede recursória, “dar o dito por não dito”, querendo que a factualidade que não conseguiu provar (i.e., investimento contra remuneração) se transforme, a contrario, numa presunção jurídica, inexistente, de “depósito para jogo”;
IV. Tal conduta processual consubstancia um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, de conhecimento oficioso, ofendendo o princípio da confiança enquanto princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia, e está presente, desde logo, na norma do artigo 326.º do Código Civil de Macau;
V. «A responsabilidade solidária da concessionária de jogo de fortuna e azar só existe quando o depósito em causa tem conexão com a promoção da actividade de jogo e azar»;
VI. Tendo o autor configurado a causa de pedir num depósito remunerado, com juros, cuja finalidade não logrou provar, não se pode daí extrair, a contrario, a ilação judicial de que o depósito foi realizado em conexão com a actividade de promoção de jogo;
VII. Tal significaria admitir uma causa de pedir diferente da alegada pelo próprio Recorrente-Autor, não obstante tal alegação não se encontrar comprovada, o que viola os princípios do dispositivo e da estabilidade da instância, estatuídos nos artigos 5.º e 212.º do CPCM;
VIII. Não tendo o Recorrente-Autor provado que o depósito realizado junto do promotor de jogo tem conexão com a actividade da exploração de jogos de fortuna e azar, não é exigível à respectiva concessionária responder solidariamente nos termos do artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002;
IX. Atentos os factos alegados e a configuração da causa de pedir, tal qual apresentada pelo Recorrente-Autor, a responsabilidade da 1.ª Ré tem fonte exclusivamente extracontratual;
X. A responsabilidade solidária dos concessionários da exploração de jogos de fortuna e azar, prevista no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, assume natureza extracontratual;
XI. Sendo aquela responsabilidade de índole extracontratual, incumbe ao lesado fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, nos termos dos artigos 335.º a 337.º do Código Civil de Macau, não beneficiando este de qualquer presunção legal de culpa da “concessionária de jogo”, atento o disposto no n.º 2 do artigo 477.º, aplicável ex vi do artigo 492.º, ambos daquele Código.
No recurso interposto da sentença pela Ré XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada foram apresentadas as seguintes conclusões:
1) O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto, no que se refere às respostas dadas aos quesitos 7.º e 12.º da base instrutória e sobre a douta sentença que deu provimento ao pedido formulado pelo Autor contra a ora Recorrente, ao pagamento do montante de HKD$6,000,000.00, acrescido de juros de mora à taxa legal, sobretaxa de 2%, a contar de 21 de Agosto de 2018.
2) A açcão que deu origem ao presente recurso, fundou-se num -alegadoinvestimento, em que Autor e 2.ª Ré acordaram, entre ambas, que o Autor se obrigava a disponibilizar o montante de HKD$6,000,000.00.
3) De forma a provar que os quesitos 7.º e 12.º da base instrut6ria deveriam ter sido dados como não provado e provado, respectivamente, a Recorrente lançou mão da prova testemunhal produzida pelas testemunhas do Autor e da prova documental constante dos autos, i.e., os documentos apresentados como talão de depósito e a informação constante do sistema informático, documentos n.ºs 6 e 7 da contestação da ora Recorrente.
4) Os quesitos 7.º e 12.º da base instrutória foram quesitados da seguinte maneira:
7. “A quantia correspondente ficou depositada na sala VIP explorada pela 2.ª Ré no casino da 1.ª Ré, sito no Nape?”
12. “No dia 12 de Junho de 2014 o A. levantou da conta ****0173 HKD6,000,000.00?”.
5) Tendo sido a resposta dada aos quesitos da seguinte forma, o quesito 7.º foi dado como provado e o quesito 12.º como não provado.
6) A convicção do tribunal baseou-se depoimento baseou-se no depoimento da testemunha B que também depositou dinheiro na XXXX e dispunha de um talão idêntico, na testemunha C, responsável pela investigação criminal em que vários ofendidos se queixaram da recusa da restituição de quantias entregues, e, por fim, o tribunal entende que, pelo facto de a ora Ré dispor do original do mesmo talão de depósito, que tal confirma a existência do depósito junto da Ré.
7) Salvo melhor entendimento, a ora Recorrente, entende que face à prova constante dos presentes autos, solução diversa deveria ter tido o presente litígio, devendo, pois, a ora Recorrente ter sido absolvida do pedido de condenação ao pagamento da quantia peticionada pelo Autor, por tal quantia não se encontrar no poder da ora Recorrente.
8) Como já referido, a acção foi configurada como um - alegado- investimento, em que Autor e 2.ª Ré acordaram, entre ambas, que o Autor se obrigava a disponibilizar o montante de HKD$6,000,000.00.
9) Sucede que, não só este acordo de investimento não foi celebrado, como também a quantia demandada nos presentes autos não se encontra depositada com a ora Recorrente.
10) A isto acresce, e, salvo o devido respeito, que os documentos em que o tribunal a quo se apoiou são suficientes e, assim, não podem confirmar a permanência de qualquer montante depositado junto da ora Recorrente.
11) Ora, de modo a sustentar o supra melhor referido, i.e., o quesito 7.º da base instrutória, deveriam ter sido dado como não provado no sentido da quantia reclamada não permanecer depositada junto da ora Recorrente, e dar como provado o quesito 12.º da base instrutória, no sentido de que tal quantia foi levantada, a Recorrente lança mão da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, em contraposição com a prova documental constante dos autos, documentos n.º 6 e 7 juntos com a contestação da ora Recorrente.
12) A 1.ª testemunha quando questionada se conhecia o Autor responde de forma negativa, Recorded 18 May 2021, Translator 1, 15.31.53, aos 37minutos e 41segundos e se tinha algum conhecimento sobre este caso, a testemunha também responde de forma negativa, e Recorded 18 May 2021, Translator 1, 15.31.53, aos 37minutos e 47segundos.
13) A 2.ª testemunha do Autor, agente da Polícia Judiciária, confirma que não lidou directamente com o caso do Autor, conforme passagens Recorded 18 May 2021, Translator 1, 15.31.53, aos 43minutos e 55 segundos e Recorded 18 May 2021, Translator 1, 16.16.21, aos 04minutos e 49segundos.
14) Já relativamente ao presenciamento do depósito, a 3.ª testemunha refere que não assistiu, conforme passagem Recorded 18 May 2021, Translator 1, 16.32.37, aos 00minutos e 01segundos.
15) A 4.º testemunha, por seu turno, refere que o seu talão tem uma cor diferente do Autor, que o dele era azul, contrariamente ao cor-de-rosa apresentado a juízo, Recorded 17 June 2021, Translator 1, 10.45.39, aos 00minutos e 21segundos e 17 June 2021, Translator 1, 10.45.39, aos 00minutos e 30segundos.
16) De realçar que do depoimento da última testemunha do Autor, que também intentou um processo da mesma natureza contra as Rés, é afirmado que o documento que lhe tinham entregue era de cor azul, o que equivale a um talão original.
17) Ora, do depoimento das testemunhas do Autor, salvo melhor entendimento, nenhuma revelou especial interesse para a decisão da causa, isto porque, ou bem que não conheciam o Autor, ou não tinham conhecimento directo dos factos, por não terem assistido ao depósito, sendo este último factor comum a todas as testemunhas.
18) E, se duma banda temos testemunhas com conhecimento indirecto dos factos, ou quase inexistente, do outro lado temos prova documental que, consubstancia, que este depósito a ter sido realizado, que o montante peticionado pelo Autor também não se encontra com a Recorrente, conforme decorre do registo informático junto aos autos conforme documento n.º 7 da contestação.
19) Face à existência de prova no sentido de a Recorrente não dispor da quantia peticionada, que consta do seu sistema informático e que demonstra que tal quantia já foi levantada, a par da pública-forma do talão de depósito que foi junto aos autos pela Recorrente, entendemos, salvo o devido respeito, que outra solução não restaria que não, dar como não provado o quesito 7.º da base instrutória e como provado o quesito 12.º da base instrutória.
20) Pelo que, ao dar como provado o quesito 7.º da base instrutória e como não provado o quesito 12.º da base instrutória nos termos em que o fez, o acórdão de matéria de facto e sentença final, incorreram em erro de julgamento, por a decisão ter incorrido no vício de contradição, deficiência, falta de fundamentação tudo nos termos dos artigos 370.º e 386.º e ss do Código Civil e do n.º 5 do artigo 556.º do Código de Processo Civil.
21) Termos em que, deverá ser revogado o acórdão proferido sobre a matéria de facto por violação dos artigos 370.º e 386.º e ss do Código Civil e do n.º 5 do artigo 566.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, com base nos meios de prova supra melhor mencionados, os quesitos 7.º e 12.º da base instrutória sejam dados como não provado e provado, respectivamente, ou, subsidiariamente, caso não se entenda pela solução dada aos quesitos em questão, deverá ser anulada a sentença no que a estes quesitos concerne e ordenado um novo julgamento da matéria de facto.
22) Com o devido respeito, mal andou o tribunal a quo, ao condenar a ora Recorrente, pois, a relação de depósito pressupõe que haja uma obrigação de entrega e uma obrigação de restituição, tudo nos termos do artigo 1111.º do Código Civil.
23) A ora Recorrente, não pode devolver aquilo que não se encontra consigo, sob pena de estarmos perante uma situação de enriquecimento sem causa.
24) Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de Fevereiro de 2010, reza o seguinte: “- O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.
II - A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado,”.
25) A ora Recorrente não se encontra numa situação de enriquecimento sem causa, por não se encontrarem preenchidos cumulativamente os quatro requisitos, i.e., não há um enriquecimento, sem razão atendível, à custa do empobrecimento de outrém, e quanto à questão de outro mecanismo da lei, facto é que não se pode indemnizar/restituir algo que não está na sua esfera.
26) Com isto queremos dizer, é virtualmente impossível, que a ora Recorrente possa devolver um montante duas vezes, sob repetição do indevido.
27) Salvo melhor entendimento, a ora Recorrente não pode ser onerada por esta não devolução, pois, de acordo com a informação de que dispõe, o montante peticionado não se encontra com a ora Recorrente.
28) A isto acresce que, as promotoras de jogo exercem a sua actividade na Região Administrativa Especial de Macau e, de acordo com o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, artigo 23.º “Após a atribuição de uma licença de promotor de jogo, o promotor de jogo só pode exercer a sua actividade se estiver registado junto de uma concessionária”, autorização que decorre através de contrato celebrado com a concessionária, tudo nos termos do artigo seguinte do referido Regulamento Administrativo.
29) E, nos termos gerais da Lei 16/2001, artigo 5.º “A exploração de jogos de fortuna ou azar em casino é confinada aos locais e recintos autorizados pelo Governo”.
30) Não nos podemos bastar com “… o dinheiro do Autor foi depositado na sua conta de jogador aberto na sala VIP explorada pela 2.ª Ré, tendo esta emitido uma quitação .... assim, essa relação entre Autor e 2.ª Ré deverá consubstanciar-se no contrato de depósito, presumido de gratuito, por força do disposto no art. 1112.º e 1084.º do CC”.
31) Decaindo a obrigação de restituição terá, também, que decair a responsabilização que impende sobre a ora Recorrente, pois, não estão reunidas as condições do ponto de vista legal para que a obrigação de restituição opere.
32) À cautela e sem prescindir, o que por mera cautela de patrocínio se aventa, cumpre dizer o seguinte.
33) A relação entre o Autor e a 2.ª Ré, ora Recorrente, foi qualificada como uma situação de depósito, - sem se verificarem o preenchimento dos requisitos do contrato de depósito e a que título-, havia sido realizado.
34) A entrega de fundos pode ter várias explicações, sendo as mais comuns o empréstimo e o depósito, assim como a associação em participação.
35) O Autor aventou a tese de investimento, que não vingou, e o tribunal a quo deu por provado o depósito da quantia e classificou a situação de depósito irregular.
36) Sucede que, desconhecendo-se quem beneficiava desta entrega de fundos, qual o destino prosseguido com esta entrega, não se pode fazer uma qualificação segura. (sublinhado e negrito nosso)
37) Fosse um contrato de contrato de depósito, o interesse prosseguido seria a guarda dos valores, e caso não fosse gratuito, o depositante, o Autor, teria que pagar pelo serviço prestado pelo depositário, à 2.ª Ré, nos termos conjugados dos artigos n.º 1112.º e 1084.º do Código Civil, contudo, a informação, quanto à vontade das partes, é omissa nos presentes autos.
38) Salvo melhor entendimento, a consequência é de que estaríamos perante um contrato de depósito gratuito.
39) Mesmo que a 2.ª Ré prestasse o serviço de custódia de forma gratuita, facto é que enquanto sociedade comercial carece de capacidade jurídica para a prática de tais actos, pois, está delimitada pelo princípio da prossecução do fim lucrativo, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 177.º do Código Comercial, prossecução que repugna os actos gratuitos, e, por isso, a lei os proscreve, salvo as limitações previstas na própria lei, conforme o preceituado no n.º 2 do mesmo preceito legal, que no caso não se verificam.
40) Sendo a consequência, o depósito ser declarado nulo, por não comportado pela capacidade jurídica da 2.ª Ré, nos termos do artigo 177.º do Código Comercial.
41) Mesmo que o interesse fosse do accipiens, i.e., da 2.ª Ré, que se financiaria junto do Autor que retribuía, conforme afirmado com o pagamento de uma taxa de juros mensal de 2%, tal situação seria entendida como um empréstimo e qualificada como mútuo, com o devido respeito, situação que não mereceu especial cuidado pelo tribunal a quo.
42) Atentas as implicações que qualquer uma das qualificações jurídicas acarreta, vai contra as regras da experiência comum que um montante tão avultado ficasse depositado, parado junto de um promotor de jogo, sem mais, a menos que existisse algum tipo de retribuição, que, neste caso, seriam os juros mensais de 2%! (sublinhado e negrito nosso)
43) Com o devido respeito, a sentença final não olhou à realidade material e não retratou - e classificou a situação jurídica condignamente, corno -se- retira do supra exposto.
44) Pelo exposto, o acórdão recorrido padece do vício de aplicação errada da lei, por não ter classificado o negócio que estava em causa e as respectivas consequências jurídicas, nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil, devendo o douto acórdão ser revogado.
45) No que concerne ao pagamento de juros de mora e sobretaxa de 2%, decaindo a obrigação de restituição, terá que decair a responsabilização da Recorrente, não podendo a ora Recorrente ser condenada ao pagamento de juros, acrescidos da sobretaxa de 2%, contados a partir de 21 de Agosto de 2018 até efectivo e integral pagamento.
Respondendo a este recurso, pelo Autor foram apresentadas as seguintes contra-alegações:
1. Vem o recurso interposto pela 2ª Ré do douto acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, que julgou parcialmente procedente a acção intentada e em consequência decidiu condenar a Ré XXXX Entretenimento Sociedade Unipessoal Limitada a pagar ao Autor A uma quantia de HKD$6.000.000 (Seis milhões de dólares de Hong Kong) acrescida de juros de mora, à taxa legal, com a sobretaxa de 2% contados a partir de 21 de Agosto de 2018, até integral pagamento.
2. Nas suas alegações a 2ª Ré impugna a decisão proferida pelo Tribunal Colectivo, por entender que os meios de prova constantes do processo impunham uma decisão diferente da que foi proferida, incidindo sobre as respostas dadas pelo Tribunal Colectivo ao quesito 7º da Base Instrutória que foi dado como provado e que na óptica da 2ª Ré deveria ser dada como não provado e ainda o quesito 12ª da Base Instrutória que foi dado como não provado contra a 2ª Ré, sendo que a 2ª Ré considera que deveria ser dado como provado.
3. Quanto ao quesito 7ª da Base Instrutória, a convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas e nos documentos juntos aos autos de fls. 17 a 70, 109, a 116 e 130 a 131, com incisão no documento de fls. 38 que consiste num talão de depósito em duplicado passado pela 2ª Ré, sendo que a testemunha B deu conta que ele também depositou dinheiro na tesouraria da XXXX, e também foi entregue um talão de depósito semelhante. Por um lado, ao apresentar o documento o documento de fls. 115 e 116, uma coisa é certa a 2ª Ré não coloca em causa o depósito, mas tão só o facto do depósito permanecer na conta ****0173, por alegadamente ter sido levantado.
4. Quanto ao quesito 122 da Base Instrutória, quanto ao facto do levantamento, é curioso que a forma como a Recorrente impugna o facto desse montante de HKD6.000.000,00 não permanecer na tesouraria da XXXX (Quesito n.º 7 da Base Instrutória) e ter sido levantado no dia 4 de Julho de 2014 da conta ****0173 (Quesito n.º 12 da Base Instrutória) é através da exibição de um talão que: (i) Não é o original, mas sim uma pública forma; (ii) Tem um carimbo com a menção “CANCELADO”; (iii) Não existe qualquer explicação sobre as circunstâncias com que o mesmo foi supostamente carimbado, por quem, e se foi com o consentimento do titular da conta. (iv) Não tem qualquer aposição da assinatura da pessoa que supostamente levantou o montante do depósito.
5. É apenas apresentado um registo interno da 2ª Ré que não atesta qualquer levantamento efectivo do depósito e que ao mesmo tempo contrapõe ao original do talão de depósito exibido pelo Autor e à não justificação do carimbo de cancelado num documento exibido pela 2ª Ré.
6. Para além de que do depoimento das testemunhas nenhuma justificou esse carimbo, pelo contrário, a testemunha C, agente da Polícia Judiciária, que, conforme o acórdão de resposta à matéria de facto, era responsável pela investigação criminal sobre o caso da XXXX, a instâncias do Tribunal sobre os recibos e talões de depósito, disse inclusive que testemunhou que vários clientes da XXXX queixaram-se da recusa da restituição da quantia entregue à XXXX e nunca viu nenhum caso de recibos com o carimbo “CANCELADO”, mas essa parte não foi referida pela 2ª Ré, que omitiu e seleccionou apenas a parte que lhe apraz. O que no mínimo é dúbio, pois para aceitar um depósito a XXXX exige uma assinatura de depositante, mas para proceder ao levantamento exibe um documento com o carimbo “cancelado” e não se requer qualquer assinatura, não apresentando qualquer outro meio de prova que o ateste, nem mesmo a própria testemunha C.
7. Pelo que não existem suporte para se dar como provado esse levantamento, até porque o Autor juntou aos autos comprovativo de que não estava em Macau nesse dia em que supostamente ocorreu esse levantamento mencionado no registo interno da 2ª Ré.
8. Assim, dúvidas não podem existir quanto às respostas aos quesitos n.ºs 7 e 12º da Base Instrutória.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
São vários os recursos interpostos, a saber:
- Recurso interposto pelo Autor contra a decisão de absolvição do pedido da Ré YYYY;
- Recurso da Ré XXXX quanto à matéria de facto e consequente impugnação da decisão de condenação.
Dado que o recurso interposto pela Ré XXXX incide sobre a decisão da matéria de facto, e uma vez que o recurso interposto pelo Autor pressupõe que a matéria de facto dada por assente se mantenha, entendemos que devemos conhecer primeiro do recurso interposto pela Ré XXXX e só após, daquele que foi interposto pelo Autor.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a. Dos factos
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- A 1ª Ré é uma sociedade anónima que se dedica, nomeadamente, à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos, tudo conforme doc. 1 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea A) dos factos assentes)
- A 2ª Ré é uma sociedade por unipessoal Ldª que tem por objecto a promoção de jogos de fortuna e azar em casinos, tudo conforme doc. 2 junto com a p.i. cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea B) dos factos assentes)
- No dia 10 de Setembro de 2015, veio a público que a promotora de jogo (junket), aqui 2ª Ré, havia sido vítima de uma fraude interna através da apropriação e desvio de uma importância global que se situaria entre os HKD$200.000.000,00 e os HKD$2.000.000.000,00. (alínea C) dos factos assentes)
- Havendo a 2ª Ré emitido no dia seguinte, 11 de Setembro de 2015, um comunicado do seguinte teor: “Declaramos para todos os efeitos que D (NOTA DO AUTORA: em cantonense D1 e em língua chinesa D2), autoridade para se envolver em actividades sem autorização da Companhia. Dada a gravidade da situação e o envolvimento de fraude, os interesses e a reputação da Companhia foram severamente afectados. A empresa está profundamente preocupada e levou o caso ao conhecimento da Polícia” (doc. 4 junto com a p.i.). (alínea D) dos factos assentes)
- E emitido ainda um segundo comunicado do mesmo teor, no dia seguinte, 12 de Setembro de 2015 (doc. 5 junto com a p.i.). (alínea E) dos factos assentes)
- No dia 14 de Junho de 2018 o Autor promoveu a notificação judicial avulsa junta a fls. 50 e ss. e cujo teor aqui se reproduz para os legais, notificação esta recebida pela 2ª Ré no dia 21 de Julho de 2018. (alínea F) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- O Autor é cliente da promotora de jogo 2ª Ré. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- No dia 9 de Junho de 2014 foi entregue pelo Autor à 2ª Ré o montante HKD$6.000.000,00 em numerário. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Tendo sido entregue ao Autor a respectiva quitação, com o número 009***. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- A quantia correspondente ficou depositada na sala VIP explorada pela 2ª Ré no casino da 1ª Ré, sito no NAPE. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Na conta de jogador aberta para o efeito pelo Autor, com o número ****0173. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
b. Do recurso interposto da matéria de facto.
Nas suas conclusões de recurso invoca a Ré XXXX erro de julgamento quanto às respostas dadas aos quesitos 7º e 12º os quais haviam de ter sido dados como não provado e provado, contrariamente ao que sucedeu (provado e não provado).
A redacção dos quesitos 7º e 12º é a seguinte:
«- Quesito 7º:
A quantia correspondente ficou depositada na sala VIP explorada pela 2ª Ré no casino da 1ª Ré, sito no NAPE?
Provado.
- Quesito 12º:
No dia 4 de Julho de 2014 o A. levantou da conta ****0173 HKD6.000.000,00?
Não Provado.»
Da fundamentação do tribunal “a quo” quanto à matéria de facto aqui impugnada consta que:
«O Autor tem na sua posse um talão de depósito (em duplicado) passado pela 2ª Ré (cfr. fls. 38), a testemunha B deu conta de que ele também depositou dinheiro na tesouraria da XXXX, a ele foi entregue um talão de depósito semelhante. A testemunha C quem era responsável pela investigação criminal sobre o caso de XXXX, vários ofendidos (os clientes da XXXXs) queixaram-se da recusa da restituição da quantia entregue a XXXX mediante o seu responsável. Está na posse da 2ª Ré o original do mesmo talão de depósito, que foi junto aos autos a fls. 115 e 116), o que permite confirmar, pelo menos, que houve depósito das quantias tituladas no talão na tesouraria da 2ª Ré. Em conjugação dessas provas, deram-se por provados os factos dos quesitos 1°, 5° a 8° nos termos respondidos.
Quanto ao facto de levantamento, na verdade, consta no talão apresentado pela 2ª Ré o carimbo de cancelamento, mas o cancelamento não é igual ao levantamento, também não foi dada explicação sobre as circunstâncias com que o mesmo foi carimbado, por quem e se for com o consentimento do titular da conta. Só com o registo interno da 2ª Ré, sem acompanhado da prova de recebimento pelo titular da conta, não tem pertinência para comprovar o levantamento efectivo do depósito pelo titular da conta. Pelo que não se deu por provado o facto do quesito 12°.».
No que concerne à resposta dada ao item 7º a convicção do tribunal resultou do depoimento da testemunha B – a terceira a ser ouvida – e no talão de depósito que se encontra junto aos autos e que é igual ao que esta testemunha diz ter recebido quando fez o seu depósito. A Recorrente indica uma passagem da gravação em que esta testemunha declara que não assistiu presencialmente ao depósito o que corresponde à verdade. No entanto a testemunha explica que depositou o dinheiro na XXXX a sugestão do aqui Autor o qual lhe disse que havia também depositado o dinheiro (embora inicialmente não tenha dito qual o valor) porque assim era mais conveniente e não precisavam de andar a levar e trazer o dinheiro de Macau para China e o inverso quando vinham jogar. A testemunha também explica que se encontrava em Harbin quando se deu o incidente na XXXX e que foi o Autor que o contactou a informar que não era possível levantar o dinheiro.
Ora, pese embora a testemunha não tenha assistido ao depósito, o certo é que identifica o talão de depósito junto aos autos como sendo igual aos seu, que foi por sugestão do Autor que fez o deposito bem como ficou a saber da impossibilidade de levantamento e a descrição que faz dos factos é idêntica à que se invoca nos autos.
Sobre esta matéria veja-se Acórdão deste Tribunal de 15.10.2021 proferido no processo nº 240/2021:
«Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão aos autores.».
A fundamentação apresentada pelo tribunal “a quo” mostra-se coerente e suficiente para extrair a conclusão a que ali se chegou, não sendo relevante para o efeito que tenha havido uma testemunha presencial da realização do depósito quando o talão recibo do depósito é igual ao que a testemunha recebeu quando fez o seu – depósito -.
Destarte, não resultando da fundamentação do tribunal “a quo” quanto à respostas dada à matéria do item 7º da Base Instrutória, erro grosseiro e manifesto, de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 e nº 2 do artº 599º do CPC, impõe que se negue provimento ao recurso, nesta parte.
O mesmo sucede quanto à resposta dada ao item 12º da Base Instrutória.
A Recorrente invoca que no seu sistema informático não consta a existência do depósito e que no seu talão foi aposto o carimbo de cancelado. Contudo, sem questionar a honestidade da Ré XXXX, desconhece-se o motivo e quem fez desaparecer do sistema informático da Ré a existência do depósito e apôs o carimbo de cancelado no duplicado do depósito, sendo certo que, não é apresentada evidência alguma de que tal tenha resultado de um efectivo levantamento por banda do Autor, uma vez que em momento algum este assina um recibo de recebimento e nada consta quanto ao eventual levantamento no seu talão de depósito contrariamente ao que segundo as regras da experiência em situações congéneres acontece e a própria testemunha já antes referida diz que haveria de ter de apresentar o talão de depósito para fazer o levantamento o que pressupõe que no mínimo o levantamento ali seria averbado se não se desse o caso de ter de ser devolvido à Recorrente. Destarte, também aqui, pelos mesmos fundamentos que a anterior não pode proceder o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
c. Do Direito
No que concerne à condenação da Ré XXXX é o seguinte o teor da decisão recorrida:
«Relação jurídica celebrada entre o Autor e a 2ª Ré
O Autor alegou que celebrou acordo com a 2ª Ré para lhe disponibilizar o montante de HKD$6.000.000,00 contra o pagamento de juros remuneratórios de 2% ao mês, tendo, por isso, entregue e depositado o montante de HKD$6.000.000,00 em numerário na conta de jogador aberta na sala VIP XXXX explorada por essa Ré, tendo esta emitido a quitação com o n°009***.
De acordo com o disposto do art°1070° do C.C., que “mútuo é o contrato pelo qual uma partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada outro tanto do mesmo género e qualidade.”
Dispõe-se o art°1111° do C.C., “Depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que o guarde, e a restitua quando for exigida.” Segundo o disposto do art°1131° do C.C., que é irregular o depósito que tem por objecto coisas fungíveis.
Feito o julgamento, não logrou provar o Autor o facto sobre o acordo celebrado com a 2ª Ré quanto à disponibilização do dinheiro a esta nem o pagamento de juros remuneratórios de 2%.
Vem somente comprovado que o Autor entregou o montante de HKD$6.000.000,00 à 2ª Ré, a qual ficou depositada na conta de jogador aberta pelo Autor, com o n°****0173, na sala VIP explorada pela 2ª Ré, e ao Autor foi entregue uma quitação com o número 009***.
Por não ficar comprovado que o montante foi entregue pelo Autor à 2ª Ré com a finalidade de lhe emprestar, a relação entre o Autor e a 2ª Ré não pode ser qualificada como mútuo.
Mas, de facto, o dinheiro do Autor foi depositado na sua conta de jogador aberta na sala VIP explorada pela 2ª Ré, tendo esta emitido uma quitação (talão de depósito) com o n°009***, assim, essa relação entre Autor e a 2ª Ré deverá consubstanciar-se no contrato de depósito, presumido de gratuito, por força do disposto do art° 1112° e 1084° do C.C.. Sendo o Autor depositante e a 2ª Ré depositária, recai sobre esta a obrigação de restituir o dinheiro depositado.
Entretanto, como o objecto de depósito é coisa fungível, tratando-se de depósito irregular. De acordo com o disposto do art°1132° do C.C., ao contrato de depósito é aplicável, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo.
Cumprimento/Incumprimento
Argumentou a 2ª Ré que o dinheiro titulado pelo talão de depósito n°009*** foi levantado pelo Autor em 4 de Julho de 2014.
Porém, feito o julgamento, não logrou essa Ré comprovar esse facto, portanto, não pode considerar que houve cumprimento da obrigação da restituição por essa Ré.
*
Por força do disposto do art°1075°, ex vi, art° 1132° do C.C., a obrigação da restituição por parte do depositário só se vence 30 dias após a exigência do seu cumprimento, se não houve estipulação de prazo.
Não se mostra que foi estipulado algum prazo para a restituição do dinheiro entregue pelo Autor à 2ª Ré, esta só tem a obrigação de restituir o dinheiro depositado 30 dias após a solicitação para a sua devolução.
Conforme os factos assentes, ficou provado que o Autor promoveu a notificação avulsa à 2ª Ré para a restituição da quantia, a qual foi recebida por esta em 21 de Julho de 2018.
Tendo o Autor interpelado à 2ª Ré para a restituição do dinheiro depositado, a obrigação da restituição venceu-se em 21 de Agosto de 2018. Como não se mostra que a 2ª Ré efectuou o pagamento após essa data, a 2ª Ré está em incumprimento da obrigação da restituição.
Pelo que deverá a 2ª Ré ser condenada a restituir o montante de HKD6.000.000,00 ao Autor.
Juros de mora
Para além da quantia depositada, peticiona o Autor ainda os juros moratórios à juros civis e comerciais.
Nos termos do art°793° do C.C., “1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor 2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.”
Como se refere acima, a obrigação da restituição só se venceu em 21 de Agosto de 2018, só a partir daí é que houve incumprimento pela Ré, assim, os juros moratórios só se contam desde essa data.
“A mora é o atraso culposo no cumprimento da obrigação. O devedor incorre em mora, quando, por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível.” (Antunes Varelas, in Das Obrigações em geral, Vol. II. pag. 112)
De acordo com o disposto do n°1 e 2 do art°795° do C.C., conjugado com a ordem executiva n°29/2006 de 6 de Julho de 2006, por se tratar de obrigação pecuniária, a indemnização corresponde ao juros à taxa de 9.75% a contar do dia da constituição em mora.
Em relação à sobretaxa de 2%, foi suscitada pela 1ª Ré a questão da inaplicabilidade do disposto do art°569°, n°2 do Código Comercial ao presente caso ou por o Autor não é comerciante ou por não haver factos demonstrativos da natureza comercial do crédito do Autor.
Preceitua-se o n°2 do art°569° do Código Comercial que “aos créditos de natureza comercial acresce, no caso de mora do devedor, uma sobretaxa de 2% sobre a taxa fixada nos termos do número anterior, sem prejuízo do disposto em lei especial.”
Flui desse preceito que a aplicação da sobretaxa de 2% para os juros moratórios afere-se pela natureza comercial ou civil dos créditos.
No caso em apreço, a 2ª Ré é uma sociedade unipessoal que tem por objecto a promoção de jogos de fortuna e azar, para esse efeito, tendo sido autorizada pela 1ª Ré, sub-concessionária do jogo para explorar a sala VIP XXXX no casino deste.
Se bem que não ficasse apurada a causa do depósito do dinheiro na conta da sala VIP explorada pela 2ª Ré, mas essa Ré é uma sociedade que é estabelecida com a finalidade de exploração da actividade comercial e ela aceitou o depósito do dinheiro na conta aberta na sala VIP explorada por ela.
Nos termos do disposto do art° 3°, n°1ۡ, alínea b) e n°2 do Código Comercial, esse acto é considerado como actos de comércio.
Assim, o crédito resultante desse acto tem natureza comercial.
Pelo que, para além dos juros, é devida ainda a sobretaxa de 2%, a título de juros de mora.
Assim, o Autor tem direito a juros de mora, a taxa legal, com a sobretaxa de 2%, a contar desde 21 de Agosto de 2018.».
Improcedendo o recurso interposto pela Ré XXXX quanto à impugnação da matéria de facto, falece em tudo o mais a argumentação – conclusões de recurso – por esta apresentada quanto ao erro de julgamento quanto à decisão de direito, aderindo-se sem reservas à fundamentação constante da sentença recorrida, estando preenchidos os requisitos do contrato de depósito irregular e consequentemente a obrigação de restituir em que a Ré foi condenada, bem como a obrigação dos juros acrescidos da sobretaxa comercial, nada mais se oferecendo acrescentar ao que daquela consta, sendo de improceder os argumentos de recurso nesta parte.
Vem o Autor interpor recurso da decisão proferida no que concerne à absolvição da Ré YYYY.
É o seguinte o teor da sentença recorrida quanto a esta matéria:
«Responsabilidade da 1ª Ré
Entende o Autor que a 1ª Ré tem igualmente a responsabilidade de lhe indemnizar o montante reclamado por força do disposto do art°29° do Regulamento Administrativo n°6/2002.
Estatui-se o art°29° do R.A. n°6/2002 “As concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraXXXXs e colaboraXXXXs destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normais legais e regulamentares aplicáveis.”
Argumenta a 1ª Ré que as concessionárias não são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo por qualquer obrigação assumidas por estes, sem distinção de ela ter ou não conexão com a actividade de promoção de jogo. O âmbito de aplicação dessa norma deverá restringir-se à actividade tipicamente desenvolvidas pelos promotores de jogo no casino e que mostra violadora da norma jurídica ligada com a promoção de jogo e não a todos aos actos praticados pelos mesmos, assim como a responsabilidade solidária das concessionárias só se restringe às indemnizações perante o Governo e não obrigação perante terceiro.
Importa determinar qual será a boa interpretação do normativo em crise.
Dispõe-se o art°8°, n° 1do C.C., “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Ora, da letra da lei, refere-se apenas “pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraXXXXs…..”, não havendo qualquer limitação do âmbito da actividade explorada pelo promotor de jogo.
Aliás, conforme o disposto do art°1 do referido regulamento administrativo, este tem por âmbito a regulamentação das condições do acesso ao exercício da actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, isto é, as qualificações dos promotores de jogo e, as obrigações a assumir pelos promotores de jogo.
Entende-se por actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogaXXXXs, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária. (art°2 ° do RA)
Como é consabido, a actividade de promoção de jogo é componente essencial na ecologia de jogo de RAEM, a principal função dos promotores de jogo é angariar clientes para jogar nos casinos duma concessionária, sendo uma das condições do acesso ao exercício da actividade de promoção de jogo o registo junto de uma das concessionárias.
A exploração da actividade de promoção de jogo está condicionada com a autorização das concessionárias ou subconcessionárias. Razão pela qual as concessionárias têm que apresentar uma lista dos promotores de jogo que vão operar no seu casino ao D.I.C.J por cada ano. (art°23°, n°5 da Lei n°16/2001)
Porquê o nosso legislador impende sobre as concessionárias o dever de fiscalização da actividade de promotores de jogo e exige-lhes a responsabilizar solidariamente por actividade desenvolvida por estes no casino.
Parece ser pacífico que não existe entre os promotores de jogo e concessionárias uma relação de dependência, a actividade de promoção de jogo prestada pelos promotores de jogo não está sujeita às ordens ou instruções das concessionárias. A relação entre elas não é considerada como comitente e comissário.
Sendo certo que a actividade prestada pelos promotores de jogo é em benefício das concessionárias, pois todas as facilidades prestadas pelos promotores de jogo aos clientes/jogaXXXXs têm como finalidade única de os atrair para jogar no casino das concessionárias, a partir daí estas poderão obter lucros.
As concessionárias gozam do direito exclusivo de explorar os casinos, os seus proveitos principais provêm dos jogaXXXXs que façam apostas de jogo e azar nos seus casinos. A procura dos jogaXXXXs a jogar no casino é relevante para que as concessionárias obtenham lucros da exploração de jogo.
O legislador não ignora o papel desempenhado pelos promotores de jogo na exploração de jogo de fortuna ou azar, assim, no momento da regulamentação do regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino prevista pela Lei n° 16/2001, tem previsto a figura dos promotores de jogo, permitindo às concessionárias, em vez de angariar por si próprias os clientes para jogar, a serem colaborados por terceiros, por escolha sua. Os promotores de jogo são, sob essa perspectiva, colaboraXXXXs ou auxiliares das concessionárias. É justamente por essa relação especial entre as concessionárias e promotores de jogo, o legislador exige àquelas a responsabilidade solidária pelas actividades desenvolvidas no casino pelos dos promotores jogos.
Julgamos essa opção legislativa baseia-se na ideia semelhante da responsabilidade objectiva.
As concessionárias beneficiam directamente das actividades promovidas pelos promotores de jogo, quanto mais sejam os jogaXXXXs, maior lucro possa obter. Tirando proveito das actividades de promoção de jogo, fará o sentido que arcar a concessionária a responsabilidade derivada da actividade desenvolvida pelos promotores e jogo.
No entanto, sendo o R.A. n° 6/2002 um diploma especificamente reger o acesso ao exercício, o licenciamento dos promotores de jogo e as obrigações dos promotores de jogo, cremos ser mais coerente e conforme com a finalidade do regulamento que a expressão “actividade desenvolvida no casino” a que se refere o art°29° não terá um sentido tão abrangente que abarca toda e qualquer actividade praticada pelos promotores de jogo.
Mas, não se acha certo o entendimento pugnado pela 1ª Ré que limita a responsabilidade das concessionárias às actividades típicas da promoção de jogo.
Como se resulta do disposto do art°2 do R.A. n°6/2002, considera-se de promoção de jogos de fortuna ou azar, as actividades que visam promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, não havendo uma definição determinada quais são essas actividades, as actividades referidas nesse artigo são enumerações exemplificativas e não taxativas. Se o legislador não deu uma definição precisa das actividades típicas da promoção de jogo, por consequência, quanto fala da actividade desenvolvida no casino pelos promotores de jogo no art°29°, não poderia pensar em restringir o seu âmbito às actividades típicas de promoção de jogo.
As actividades a que se refere o art°29°, como sendo actividades desenvolvidas no casino pelos promotores de jogo ou os seus auxiliares, tendo em conta que a função desempenhada pelos promotores de jogo na exploração de jogo, deverão ser entendidas actividades destinadas à promoção de jogo ou com conexão com a promoção de jogo.
Posto isso, é momento para analisar se a matéria apurada no presente caso concreto se enquadra nos pressupostos normativos acima referidos.
Está provado que entre o Autor e a 2ª Ré foi estabelecida uma relação jurídica de depósito irregular em que aquele entregou a esta uma quantia de HK$6.000.000,00 para guardar.
Sabemos que a promoção de jogo é, no fundo, através do fornecimento das facilidades, de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, com o fim de angariar os jogaXXXXs a jogar em casino.
Aliás, não é menos verdade que a 2ª Ré, como entidade autónoma, poderá praticar negócio jurídico com quem quer que seja. Nem se diga que todas as actividades praticadas por esta constituir actividade de promoção de jogo.
Quando o promotor fornecer transporte, alojamento, alimento aos jogaXXXXs, atraindo-os para virem jogar nos casinos das concessionárias, não temos dúvidas de que essas actividades fazem parte da promoção de jogo. Mas se o mesmo promotor, por outras finalidades, fornecer os mesmos serviços ao seu cliente, essas actividades já não poderão ser entendidas como de promoção de jogo.
Por esse raciocínio, não é qualquer indivíduo, seja ou não jogador, que faz algum depósito na sala VIP dum casino torna-se automaticamente esse acto como actividade de promoção de jogo.
Para chegar a conclusão de que estamos perante actividade de promoção de jogo, é necessário indagar em que circunstâncias é que o agente proceder ao depósito.
In casu, cremos que não tem elementos fácticos para determinar se o depósito feito pelo Autor tem ou não conexão com a promoção de jogo.
Para já, alegou o Autor, na p.i., que a 2ª Ré lhe solicitou para fazer investimento na referida sala VIP, o Autor entregou HKD$6.000.000,00 à 2ª Ré com vista a obter juros pagos pela 2ª Ré, em lugar algum que o Autor refere que o depósito tem a ver com o jogo.
Não obstante, os factos alegados pelo Autor não ficaram provados, mas somente ficou provada a entrega da quantia de HKD$6.000.000,00 pelo Autor à 2ª Ré com a emissão e a entrega dum talão de depósito de fichas de jogo como suporte da entrega.
Assim, nada consta dos factos assentes quaisquer circunstâncias fácticas que levaram o Autor a entregar tal importância à 2ª Ré para à sua guarda.
Com o mero facto de depósito, com a entrega de HKD$6.000.000,00, que nem sequer foi alegado que a entrega fosse feita por fichas de jogo, sem demais circunstâncias, não é suficiente para afirmar que esse negócio jurídico celebrado entre a 2ª Ré e o Autor integra-se no âmbito da actividade de promoção de jogo.
Também não se entende que, no caso, está em causa o cumprimento das normas legais ou regulamentares pelos promotores de jogos.
Pois, o depósito em causa é meramente contrato celebrado entre o Autor e a 2ª Ré que não tem, necessariamente, conexão com as normas relativas à regulamentação da promoção de jogo.
Nestes termos, não achamos que, ao caso em apreço, é aplicável o disposto do art°29° do R.A. n°6/2002, pelo que a 1ª Ré não se poderá responsabilizar, em solidariedade, com a 2ª Ré, pela restituição da quantia entregue por esta ao Autor.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido do Autor em relação à 1ª Ré.».
Sobre esta matéria – responsabilidade solidária da concessionária - tem este Tribunal vindo a entender que é necessário que se demonstre a relação entre o depósito feito no promotor de jogo e a actividade de jogo.
Veja-se a propósito o Acórdão deste Tribunal de 02.12.2021 proferido no Processo nº 770/2021:
«Na óptica da Autora, o Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao absolver a 2ª Ré do pedido.
Pois, para ela, a 2ª Ré deveria ser condenada solidariamente com a 1ª Ré no pagamento da quantia depositada ao abrigo do artº do artº 23º, nº 3 da Lei nº 16/2001, bem como dos artºs 29º e 30º do RA nº 6/2002, por nãoter cumprido o seu dever de fiscalização.
Quid júris?
Dispõe o nº 3 do artº 23º da Lei nº 16/2001 o seguinte:
Artigo 23.º
Promotores de jogo
1. …
2. …
3. Perante o Governo, é sempre uma concessionária a responsável pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administraXXXXs e colaboraXXXXs e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares, devendo para o efeito proceder à supervisão da sua actividade.
4. …
5. …
6. …
7. …
Por sua vez, os artºs 29º e 30º do RA nº 6/2002 têm as seguintes redacções:
Artigo 29.º
Responsabilidade das concessionárias
As concessionárias são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administraXXXXs e colaboraXXXXs destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis.
Artigo 30.º
Obrigações das concessionárias
Sem prejuízo de outras previstas no presente regulamento administrativo e em demais legislação complementar, constituem obrigações das concessionárias:
1. Enviar, até ao dia 10 de cada mês, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, uma relação discriminada relativa ao mês antecedente dosmontantes das comissões ou outras remunerações por si pagas a cada promotor de jogo, bem como dos montantes de imposto retidos na fonte, acompanhada de toda a informação necessária à verificação dos respectivos cálculos;
2. Enviar, em cada ano civil, de 3 em 3 meses, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos a lista referida no n.º 3 do artigo 28.º;
3. Comunicar à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos qualquer facto que possa afectar a solvabilidade dos promotores de jogo;
4. Manter em dia a escrita comercial existente com os promotores de jogo;
5. Fiscalizar a actividade dos promotores de jogo, nomeadamente quanto ao cumprimento das suas obrigações legais, regulamentares e contratuais;
6. Comunicar às autoridades competentes qualquer facto que possa indiciar a prática de actividade criminosa, designadamente de branqueamento de capitais, por parte dos promotores de jogo;
7. Proporcionar um relacionamento são entre os promotores de jogo junto dela registados;
8. Pagar pontualmente as comissões ou outras remunerações acordadas com os promotores de jogo;
9. Cumprir pontualmente as suas obrigações fiscais.
Este Tribunal tem entendido que a responsabilidade solidária da concessionária de jogo de fortuna e azar só existe quando o depósito em causa tem conexão com a promoção da actividade de jogo e azar (Acs. do TSI, Procs. nºs 563/2021 e 820/2019).
No caso em apreço, a Autora alegou na petição inicial que o depósito em causa visa para obter juros à taxa mensal de 1.5% (cfr. artºs 24º a 31º da petição inicial).
Contudo, esta versão do depósito não foi comprovada.
Ficamos assim sem saber a causa do depósito.
Será que a partir do facto de que o depósito foi realizado no Casino, mais concretamente, na Sala de VIP da 1ª Ré, tiramos a ilação judicial de que o mesmo foi realizado com conexão da actividade de jogo?
A resposta, para nós, não deverá ser afirmativa, tendo em conta o circunstancialismo concreto do presente caso – a Autora ter configurado a causa de pedir no depósito com vista a obter juros, e não no depósito para actividade de jogo.
Pois, se tirarmos, por hipótese, a ilação judicial de que o depósito for realizado com conexão da actividade de jogo, estamos a admitir uma causa de pedir diferente da alegada pela própria Autora, não obstante tal alegação não se encontrar comprovada, o que viola os princípios dispositivo e da estabilidade da instância, legalmente previstos nos artºs 5º e 212º do CPCM.
Nesta conformidade e não tendo elementos que permitem concluir o depósito tem conexão com a actividade da exploração de jogo, não podemos condenar a 2ª Ré, na qualidade da concessionária de jogo, a pagar solidariamente a quantia depositada ao abrigo do artº do artº 23º, nº 3 da Lei nº 16/2001, bem como dos artºs 29º e 30º do RA nº 6/2002.
Face ao exposto, é de negar provimento do recurso da Autora com fundamentos algo diversos.».
No caso dos autos está provado que o Autor é cliente da promotora do jogo aqui 2ª Ré e que o numerário foi depositado na sua conta de jogador aberta para o efeito na 2ª Ré.
Contudo, pese embora se haja provado a relação de cliente/jogador do Autor relativamente à 2ª Ré e que o depósito foi feito na conta de jogador, não é inócuo que se invocava que a entrega de dinheiro se havia realizado no âmbito de uma relação não conexa com o jogo mas com eventual investimento ou depósito remunerado, o qual pese embora não se haja provado, mas não se tendo demonstrado outra causa para entrega de numerário, não nos permite concluir que o “depósito irregular em causa” tenha conexão alguma com a actividade de promotor de jogo desenvolvida pela 2ª Ré, tanto mais que, nem sequer é feito em fichas de jogo mas em numerário.
Tendo a decisão recorrida acompanhado aquela que tem vindo a ser a Jurisprudência deste Tribunal, também nesta matéria a acompanhamos, aderindo aos fundamentos que da mesma constam, negando-se provimento ao recurso.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos negando-se provimento aos recursos interpostos, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo Autor e 2ª Ré Recorrente quanto ao recurso por cada um interposto.
Registe e Notifique.
RAEM, 7 de Abril de 2022
(Relator)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
139/2022 CÍVEL 78