ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa de condenação, com processo ordinário (Processo n.º CV2-16-0037-CAO) contra B (1.ª Ré) e C (2.ª Ré), pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento da quantia total de HKD$17.000.000,00, acrescida de juros à taxa legal contados a partir da data da citação das Rés.
Após a contestação das Rés, apresentou o Autor a réplica em resposta à contestação da 1.ª Ré, em que formulou um novo pedido que designou como “alteração/ampliação do pedido”, requerendo que caso não fosse considerado que o Autor emprestou à 1.ª Ré a quantia reclamada, então sempre se teria de considerar que tal quantia foi depositada junto da 1.ª Ré e que, como tal, deveria ser devolvida (fls. 155 a 160v dos autos).
Por despacho constante de fls. 183 e 183v dos autos, o Juiz titular do processo decidiu admitir o pedido apresentado, que o qualificou como “ampliação da causa de pedir”.
Desse despacho recorreu a 2.ª Ré C, impugnando a extensão à 2.ª Ré da ampliação da causa de pedir efectuada pelo Autor na réplica e pretendendo que tal ampliação só operasse relativamente à 1.ª Ré (fls. 221 a 226 dos autos).
Por sentença constante de fls. 415 a 419 dos autos, a Juiz-Presidente do TJB julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu as Rés do pedido formulado pelo Autor.
Dessa sentença recorreu o Autor, insurgindo-se contra a decisão que recaiu sobre a matéria de facto e que, necessariamente, impediu que a sua acção fosse considerada procedente.
Por acórdão proferido no Processo n.º 712/2018, o Tribunal de Segunda Instância decidiu, oficiosamente, anular a sentença e todo o julgamento da matéria de facto, que de novo deveria ser efectuado, com a adição dos artigos da réplica n.ºs 27 a 34, e não conheceu do recurso interlocutório por entender que o mesmo ficava prejudicado com a referida decisão de anulação.
Inconformando, vêm agora as duas Rés recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Do recurso da 1.ª Ré B
1) O acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, e do qual se recorre determinou a anulação da sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância e de todo o julgamento da matéria de facto, com o aditamento dos artigos 27.º a 34.º da réplica.
2) De acordo com o douto acórdão recorrido, o Tribunal de Primeira Instância não fez uma subsunção dos factos à causa de pedir ampliada, resultante da réplica apresentada pelo Autor e, descurou a questão dos depósitos, tratando somente da questão dos empréstimos. Entendimento do qual a ora Recorrente não partilha.
3) Começamos por referir que, em sede de despacho saneador, o Tribunal de Primeira Instância, tendo em mente a ampliação da causa de pedir, refere o seguinte: “Quanto a saber se existe realmente uma relação de empréstimo ou uma relação de depósito entre o Autor e o primeiro Réu, trata-se de uma questão de fundo, que nada tem a ver com a legitimidade do primeiro réu.”
4) O Tribunal de Primeira Instância nunca se distanciou, sequer se abstraiu da questão em discussão nos presentes autos, sendo exemplo disso, o acórdão de resposta aos quesitos, a fls. 408 a 413 dos presentes autos, citando-se algumas passagens para esse efeito: (i) “A isso acresce que nenhuma delas assistiu aos actos de empréstimo / depósito alegados pelo Autor”; (ii) “Portanto, o empréstimo / depósito referido no quesito 6.º, pelas dúvidas assim criadas, não foi dado como provado”; (iii) “Portanto, o empréstimo / depósito referido no quesito 5.º, pelas dúvidas assim criadas, não foi dado como provado”; e (iv) “Relativamente ao empréstimo / depósito referido no quesito 4.º, é verdade que consta da lista de depósitos feitos pelo Autor junto da 1.ª Ré consta um depósito que tudo indica que se trata do depósito em questão. Porém, da mesma lista constata-se que a quantia foi levantada poucas horas depois .... O certo é que as dúvidas acerca da existência dos dois depósitos acima referidos aliado ao facto de a 1.ª Ré ter impugnado também o depósito sub judice não permitiram ao tribunal excluir a hipótese de a 1.ª Ré nunca recebera as quantias indicadas nesses talões e nunca emitira os três talões de depósito até agora analisados. Por isso, não entendeu provada a existência desse depósito.”
5) De referir que a palavra empréstimo reveste uma forma jurídica, melhor presente no artigo 1070.º do Código Civil, assim como, uma forma corrente, quando se entrega um montante, por exemplo.
6) Ora, o Tribunal de Primeira Instância, valorou a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, assim como, a prova documental, estando a sua convicção plasmada no acórdão de resposta aos quesitos e sentença final.
7) Convicção essa que, radicou no facto de que, apenas uma das quatro testemunhas do Autor assistiu a um depósito, que as testemunhas da ora Ré souberam explicar os procedimentos de depósito e, que diferiam e, em muito, do que foi carreado para os autos, referindo-se aos talões de depósito e forma de emissão.
8) Factor de não somenos importância, é que, a par dos presentes autos corria termos uma acção de execução contra D, antiga funcionária da ora Recorrente, com base em três cheques pessoais emitidos por esta, sendo que dois deles diziam respeito a dois talões de depósito com os mesmos montantes, dos presentes autos.
9) Apoiou-se também o Tribunal de Primeira Instância no registo informático da Recorrente, em que se verifica a realização de um depósito e do seu levantamento horas depois.
10) E, à medida que, o Tribunal de Primeira Instância foi respondendo a matéria quesitada nunca perdeu o fiel da presente acção, e fez sempre referência aos empréstimos / depósitos. (sublinhado e negrito nosso)
11) Ora, o acórdão do qual ora se recorre, muito mal andou, com o devido respeito, pois, o Tribunal de Primeira Instância esteve em condições para se pronunciar e, pronunciou-se, relativamente aos empréstimos, que passaram a depósitos, um a um, no acórdão de resposta aos quesitos, transposto depois para a sentença final.
12) Sentença essa que não se deixou ater em grandes considerações, tendo em conta o plasmado no acórdão de resposta aos quesitos, mas a qual não padece de qualquer falta de fundamentação ou contradição com as respostas e a fundamentação constante das mesmas, conforme melhor se alcança pelo supra melhor exposto.
13) No seguimento do já expendido e, tratando agora da questão da anulação da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e repetição de julgamento com aditamento dos quesitos 27.º a 34.º da réplica, cumpre dizer o seguinte.
14) Do acórdão de resposta aos quesitos e sentença final resulta que, o tribunal não se convenceu pela teoria dos empréstimos que tinham sido depositados pelo Autor, tanto pelo interesse directo que as testemunhas do Autor tinham na causa, por terem processos da mesma natureza intentados contra a ora Recorrente e 2.ª Ré, corno pelo facto, de não se ter demonstrado cabalmente que os montantes tivessem sido depositados. Também pelo facto de existir uma certidão de uma acção executiva que demanda não a ora Recorrente, mas D, antiga funcionária da ora Recorrente. Assim corno, os montantes depositados titulados pelos talões de depósito apresentarem incongruências várias e não condizentes com os procedimentos da Ré, ora Recorrente.
15) E, como já expendido, o único montante depositado, foi levantado poucas horas depois, conforme consta do registo informático da ora Recorrente.
16) Ora, o aditamento dos referidos quesitos não traz nada de novo nem de relevante para os presentes autos, nem vai, assim, poder eventualmente provar a pretensão do Autor, i.e., montantes depositados junto da Ré, ora Recorrente.
17) Isto porque a introdução dos referidos quesitos pretendida pelo Autor, ora Recorrido e confirmada pelo douto acórdão do qual se recorre, foi alvo de resposta cabal pelo acórdão de resposta aos quesitos, e também pela sentença, como já amplamente demonstrado.
18) Não se pode pretender que seja dada outra resposta que não a dada pelo Tribunal de Primeira Instância, por já ter havido pronúncia e, muito bem, a nosso ver, muito menos com base num argumento débil de que a matéria da réplica apresentada pelo Autor não foi atendida, quando tal não foi o que sucedeu.
19) Tanto assim é que, através de uma leitura atenta do acórdão de resposta aos quesitos, assim como da sentença final, ainda que de forma mais sucinta mas sem nunca entrar em contradição nem pecar por falta de fundamentação, retira-se que a matéria dos depósitos foi devidamente atendida e objecto de resposta.
20) Voltar a repetir o julgamento com base no aditamento conforme determinado pelo acórdão ora recorrido, é, com o devido respeito, inútil e resultará numa redundância, pois, tal exercício já foi realizado e, muito bem, pelo Tribunal de Primeira Instância.
21) Pelo que, entendemos que a decisão do douto acórdão ora recorrido deverá ser revogada. Deste modo, não deverá ser tida em conta a anulação oficiosa da decisão do Tribunal de Primeira Instância determinada no douto acórdão ora recorrido nem deverá ser admitida o aditamento à base instrutória dos quesitos 27.º a 34.º da réplica para efeitos de repetição de julgamento.
- Do recurso da 2.ª Ré C
(i) O Tribunal de Segunda Instância reconheceu um recurso interlocutório interposto pela Recorrente, mas não o apreciou, fundando-se na não apreciação do mérito do recurso da decisão final, com o qual aqueloutro houvera subido;
(ii) Em abstracto, a apreciação de um recurso interlocutório que suba em diferido com o primeiro, posterior a ele, que haja de subir imediatamente não depende da decisão deste último, devendo ter lugar mesmo que, por qualquer razão, o tribunal ad quem não chegue a conhecer do segundo recurso;
(iii) Em concreto, o não conhecimento do recurso da sentença em virtude de se ter anulado o julgamento da matéria de facto e, por consequência, a sentença e decidido a repetição da audiência de discussão e julgamento, não prejudicou a apreciação do recurso interlocutório porque se impunha ao Tribunal de Segunda Instância resolver a questão ali apresentada, como única via de obstar a que a Recorrente tivesse de sofrer a prova e diligenciar a contraprova de factos que, conforme sustentou justamente no referido recurso interlocutório, não tinha de contraditar;
(iv) Daqui se retira que o recurso interlocutório mantinha toda a sua utilidade;
(v) Por conseguinte, o não conhecimento do recurso interlocutório constitui uma omissão de pronúncia, causadora de nulidade, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, d), do CPC, o que é fundamento de recurso por força do disposto no artigo 639.º in fine;
(vi) Caso se entenda que houve pronúncia porque, apesar de não se decidir, não se ignorou a matéria do recurso interlocutório, o Tribunal de Segunda Instância terá então feito errada aplicação do preceituado no artigo 563.º, n.º 2, do CPC, ao identificar uma relação de prejudicialidade onde ela não existe, com isso não decidindo esse recurso.
Sem prejuízo,
(vii) O Tribunal de Segunda Instância aponta à sentença do Tribunal Judicial de Base o não ter atendido à modificação da causa de pedir pelo Autor, articulada na réplica e admitida pelo Tribunal Judicial de Base, o que não é correcto, pois que
(viii) a primeira instância apreciou a causa de pedir na dupla perspectiva da sua configuração original (a versão “contrato de empréstimo”) e da sua alteração por ampliação na réplica (a versão “contrato de depósito”);
(ix) O Tribunal Judicial de Base concluiu que não houve empréstimos do Autor à B (causa de pedir original) porque não se convenceu (fundamentadamente) de terem sequer existido depósitos, entendidos estes no sentido corrente do termo, ou seja, como entregas físicas de dinheiro (causa de pedir ampliada pelo Autor);
(x) A sentença da primeira instância não contém uma referência expressa a depósitos, mas
- adquiriu e incorporou o acórdão sobre a matéria de facto objecto de discussão e julgamento, em que inequivocamente o tribunal colectivo viu a questão do depósito no aludido sentido comum, concluindo pela falta de prova da sua efectivação, e
- foi proferida pelo Mmo. Juiz que presidiu ao colectivo que exarou o supra referido acórdão;
(xi) A falta de prova do depósito em sentido corrente é, pois, fundamento de facto da sentença da primeira instância;
(xii) Entender o contrário importaria uma divergência fundamental entre a sentença e o acórdão sobre a matéria de facto, o que não tem qualquer apoio no texto da sentença;
(xiii) Por conseguinte, o julgamento da matéria de facto, o acórdão que sobre esta recaiu e a sentença final não enfermam de vício, não devendo ser anulados;
(xiv) Decidindo, com invocação do artigo 629.º, n.º 4, do CPC, que a sentença era nula e mandando repetir o julgamento da matéria de facto, com a adição de novos quesitos à Base Instrutória, o Tribunal de Segunda Instância fez errada aplicação daquela norma da lei adjectiva.
2. Os Factos
O Tribunal Judicial de Base deu por provada a seguinte factualidade:
“- A 1.ª Ré é uma sociedade por quotas unipessoal que tem por objecto a promoção de jogos de fortuna e azar em casinos (alínea A) dos factos assentes).
- Sendo titular da licença de promotor de jogo – pessoa colectiva n.º E089, emitida pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos em 18 de Agosto de 2006, com validade pelo menos até à data de 16 de Novembro de 2015, em que opera junto à concessionária C, aqui 2.ª Ré (alínea B) dos factos assentes).
- A 2.ª Ré é uma sociedade anónima que se dedica à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos e é concessionária de jogo (alínea C) dos factos assentes).
- Segundo o pedido n.º AP.91/28052014 apresentado junto da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, através da acta de reunião datada de 14 de Março de 2014, E, na qualidade de sócio único da B, foi nomeado como único Administrador da sociedade (alínea D) dos factos assentes).
- No princípio de Setembro de 2015, o Autor dirigiu-se à sala VIP da 1.ª Ré que opera no Casino da 2ª Ré, com o propósito de receber a quantia que alega ter depositado na sua conta aberta na sala VIP (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- A 1.ª Ré não entregou a quantia referida na resposta ao quesito 10º (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- Apesar de solicitada para o fazer, no dia 4 e 10 de Novembro de 2015 por força dos documentos a fls. 39 a 46 dos autos, a 1.ª Ré não entregou a quantia referida na resposta ao quesito 10º (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- As receitas de jogo apuradas nas salas VIP das promotoras de jogo, entre as quais a 1.ª Ré, pertencem às concessionárias (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- D era reconhecida pelas Rés como responsável pela contabilidade da 1.ª Ré, e era encarada e reconhecida por terceiros, nomeadamente, pelos utentes das salas de jogo da 1.ª Ré que com ela actuavam, e na convicção de se ser uma empregada de topo da 1.ª Ré, ali exercendo funções de responsabilidade (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- As 1.ª e 2.ª Rés acordaram, em 15 de Agosto de 2008, na sua cláusula 4. (Release) do contrato de autorização para a concessão de crédito para jogo, o seguinte (resposta ao quesito 16º da base instrutória):
“4 (Desoneração): Na execução deste contrato, o PROMOTOR DE JOGO actua como um outorgante independente e não como agente, empregado ou representante legal da C. O PROMOTOR DE JOGO terá o controlo exclusivo dos meios e métodos que use e empregue para conceder facilidades de crédito e para satisfazer as obrigações do PROMOTOR DE JOGO aqui estabelecidas, em todos os seus aspectos e detalhes. O PROMOTOR DE JOGO não está autorizado a fazer negócios em nome da C para de alguma forma vincular a C, por conseguinte o PROMOTOR DE JOGO concederá crédito em seu próprio nome e por seu próprio risco. (...) ESTE CONTRATO não poderá ser interpretado como de alguma forma estabelecendo uma parceria ou outro empreendimento ou iniciativa empresarial conjunta entre as partes, e nenhuma delas responde pelas asseverações, actos ou omissões da outra.”.
- D era directora-supervisora da tesouraria do [VIP Club] da 1.ª Ré, cujas funções era contactar e atender clientes, supervisionar o funcionamento da tesouraria da sala [VIP Club], conferir e verificar as contas, coordenar e executar o funcionamento diário da sala [VIP Club] (resposta ao quesito 18º da base instrutória).
- D era encarada tanto pelo autor como por todos os utentes da sala de jogo da 1.ª Ré como uma pessoa que, pelos poderes que exibia perante terceiros, merecia toda a credibilidade porque estavam convencidos que ela era plenamente responsável pelos actos da 1.ª Ré enquanto empregada de topo da 1.ª Ré e que agia em representação desta (resposta ao quesito 22º da base instrutória).
- A D era encarada pelos utentes da sala de jogos como uma pessoa que agia em nome e em representação da contestante e que detinha plenos poderes de representação da sua entidade patronal, a 1.ª Ré (resposta ao quesito 25º da base instrutória).”
3. O Direito
No acórdão ora recorrido, oficiosamente o TSI decidiu “anular a sentença da 1.ª instância, nos termos do art. 629º, nº 4, do CPC, a fim de que se proceda a novo julgamento de toda a matéria, à qual deverá ser acrescentada a dos referidos arts. 27º a 34º da réplica”, porque “não obstante a matéria dos ‘empréstimos’ ter sido dada como não provada, haveria que analisar a sorte da acção no que concerne aos “contratos de depósito” alegados na réplica e à não devolução do dinheiro depositado contido na conta do autor”, sobre o qual a sentença foi totalmente omissa.
E não conheceu da matéria do recurso interlocutório por entender que o mesmo ficava prejudicado com a decisão de anulação acima referida.
Pondo em causa a referida decisão de anulação, recorreram ambas as Rés.
Alega a 1.ª Ré (1.ª recorrente) que o TJB nunca perdeu de vista a questão da ampliação da causa de pedir e andou muito bem em julgar a acção improcedente por não provada, por não se terem provado os “empréstimos/depósitos”, e contrariamente ao referido no acórdão do TJB, não houve omissão da análise da “sorte da acção no que concerne aos alegados contratos de depósito”, sendo certo que o aditamento dos artigos 27 a 34 da réplica conforme determinado pelo TSI em nada releva para os presentes autos, por já ter sido alvo de resposta pelo acórdão de resposta aos quesitos do TJB, não havendo lugar à anulação da sentença do TJB e consequente desnecessidade de repetição de julgamento de toda a matéria com o aditamento dos quesitos mencionados.
Na óptica da 2.ª Ré, o acórdão recorrido fez errada aplicação do art.º 629.º, n.º 4 do CPC.
Para além de imputar o vício de nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, questiona-se ainda a decisão que não conheceu da matéria do recurso interlocutório, pedindo subsidiariamente que, caso não mereça provimento a questão relativa ao suposto erro de interpretação e aplicação do art.º 629.º, n.º 4 do CPC, então sempre teria o TSI de conhecer do recurso interlocutório apresentado.
Vejamos.
3.1. Da anulação da sentença e de todo o julgamento da matéria de facto
A decisão em causa foi proferida nos termos do art.º 629.º, n.º 4 do CPC, segundo o qual “Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão”.
Desde logo, é de lembrar que já por várias vezes este Tribunal de Última Instância se pronunciou quanto aos seus poderes de cognição em relação ao uso que o TSI faz da norma do n.º 4 do art.º 629.º do CPC (por exemplo, nos Processos que correram termos sob os n.ºs 5/2001, 51/2012 e 56/2013, entre outras decisões que ali também são citadas).
Com especial relevo para o presente caso, no acórdão de 23 de Maio de 2001 proferido pelo TUI no Processo n.º 5/2001 faz-se consignar o seguinte:
“(…) a primeira questão que importa solucionar consiste em saber se o Tribunal de Última Instância pode censurar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação (oficiosa ou não) de despacho saneador-sentença, por este Tribunal ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou a anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil. (…)
Ora, apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui, manifestamente, matéria de direito e não de facto.
Neste sentido se pronunciaram, por exemplo, ALBERTO DOS REIS1 e A. ANSELMO DE CASTRO2.
Também ANTUNES VARELA3 se pronunciou, não só sobre este ponto, mas sobre a questão mais vasta, a de saber se o tribunal supremo pode conhecer «dos casos em que a Relação considera indispensável a formulação de outros quesitos, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do mesmo Código.
E esta indispensabilidade da formulação de novos quesitos mede-se por uma regra de direito importantíssima – por um preceito que é uma das regras de ouro da organização do questionário.
Essa regra, que o Código de 1961 explicitamente fixou, baseada na formulação de MANUEL ANDRADE, através da nova redacção do n.º 1 do artigo 511.º do Código de Processo Civil (correspondente ao art.º 515.º do Código de 39), é a de que o questionário deve ser elaborado, tendo em vista, não apenas a solução que o organizador da peça considera a boa decisão da causa, mas todas as soluções plausíveis das questões de direito debatidas na causa. (…)
A necessidade da inclusão de novos quesitos não se medirá apenas em função da solução que o juiz da causa (ou o próprio presidente do colectivo, ao usar da faculdade conferida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) julgue na altura ser a boa decisão jurídica do litígio, mas em face também das outras soluções plausíveis das questões de direito debatidas na acção».
Pelo contrário, em regra, a decisão do Tribunal de Segunda Instância que anule a decisão de primeira instância por reputar deficiente, obscura ou contraditória a mesma decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, é matéria de facto, insindicável, em princípio, pelo Tribunal de Última Instância4.
E dizemos, em princípio, porque tal decisão do Tribunal de Segunda Instância já estará sujeita a censura do Tribunal de Última Instância, quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou quando o tribunal recorrido violar qualquer norma legal, na utilização dos seus poderes.
Conclui-se, assim, que este Tribunal pode apreciar a questão de saber se o Tribunal de Segunda Instância agiu correctamente ao anular a decisão de primeira instância, por as alegadas vendas judiciais terem relevância jurídica para a decisão da lide, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.”
Daí que não existe obstáculo a que este TUI conheça da questão relacionada com a suposta insuficiência da matéria de facto para uma resposta perante todas as soluções plausíveis de direito que venham colocadas com o processo.
Como também se disse no acórdão de 19 de Fevereiro de 2014 proferido pelo TUI no Processo n.º 56/2013, “a necessidade de ampliação da matéria de facto verifica-se quando o tribunal de 1.ª instância não investigou os factos essenciais, de entre os quais constantes do art. 5.º do CPC, designadamente, quando não levou à base instrutória os factos necessários (independentemente se houve reclamação e qualquer que fosse a decisão sobre a reclamação) e quando, na audiência de julgamento, o presidente do tribunal não providenciou pela ampliação da base instrutória, nos termos do art.º 55.º n.º 2, al. f) do CPC”.
Posto isto, é de voltar ao caso dos autos.
Na réplica por si apresentada e sob a secção “III-Alteração/Ampliação do Pedido”, veio o Autor aproveitar a ocasião “para ampliar o seu pedido, acrescentando novos factos à causa de pedir, …, para o caso de o tribunal entender que os depósitos efectuados não consubstanciam a prestação de um empréstimo, os quais passa a transcrever” (artigo 26.º da réplica, fls. 158v dos autos).
Terminando por requerer que “nos termos do art. 217.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, se digne reconhecer a ampliação do pedido formulado na petição inicial, acrescentando-lhe o conhecimento de um pedido subsidiário, de condenação das rés a restituir os montantes depositados na conta do autor junto da 1.ª ré” (artigo 39.º da réplica, fls. 160 dos autos).
Nota-se que, apesar de o Autor se referir, por vezes confusamente, à “Alteração do pedido”, certo é que, no despacho de fls. 182v a 183v dos autos, o TJB considerou que o Autor não ampliou o pedido, que se mantinha inalterado, e “os novos factos referidos na réplica constituem ampliação da causa de pedir”, tendo admitido a ampliação da causa de pedir.
No presente recurso, sustenta a 1.ª Recorrente que o TJB nunca se distanciou nem se abstraiu da questão em discussão nos autos, invocando para tal o acórdão de resposta aos quesitos de fls. 408 a 413 dos autos, em que se encontra não só a expressão “empréstimo” mas também “depósito” (alínea 4 das Conclusões) e “fez sempre referência aos empréstimos/depósitos” (alínea 10 das Conclusões).
De forma semelhante, defende a 2.ª Recorrente que o TJB “apreciou a causa de pedir na dupla perspectiva da sua configuração original (a versão “contrato de empréstimo”) e da sua alteração por ampliação na réplica (a versão “contrato de depósito”)” (alínea viii das Conclusões).
E alega ainda que o TJB concluiu que não houve empréstimos porque não se convenceu sequer da existência de entregas físicas de dinheiro, “independentemente da sua qualificação jurídica como contratos de depósito ou de mútuo”, sendo que “A falta de prova do depósito em sentido corrente é, pois, fundamento de facto da sentença da primeira instância” (alíneas ix e xi das Conclusões e ponto 35 das alegações de recurso).
Há assim de analisar a questão de saber se o TJB apreciou ou não a causa de pedir, admitida pelo Tribunal, relativamente aos contratos de depósito celebrados entre o Autor e a 1.ª Ré/Recorrente.
Convém transcrever aqui os seguintes quesitos da Base Instrutória com relevância para resolução da questão:
“2.º - Foram solicitados ao Autor pela 1ª Ré, na pessoa dos seus responsáveis e colaboradores, e efectivamente concedidos pelo Autor, quatro empréstimos em numerário, retribuídos com uma taxa de juros de 2% ao mês?
3.º - O primeiro empréstimo foi concedido pelo Autor em 25 de Fevereiro de 2014, no valor de HKD$5,000,000.00, correspondentes a MOP$5,150,078.90?
4.º - O segundo teve lugar no dia 25 de Julho de 2014, no valor de HKD$5,000,000.00, correspondentes a MOP$5,150,078.90 (cinco milhões cento e cinquenta mil e setenta e oito patacas e noventa avos)?
5.º - O terceiro empréstimo foi concedido no dia 25 de Maio de 2015, no valor de HKD$5,000,000.00, correspondentes a MOP$5,150,078.90 (cinco milhões cento e cinquenta mil e setenta e oito patacas e noventa avos)?
6.º - E o quarto teve lugar no dia 24 de Junho de 2015, no valor de HKD$2,000,000.00, correspondentes a MOP$2,060,031.60 (dois milhões sessenta mil e trinta e uma patacas e sessenta avos)?
7.º - Os Recibos de Depósito, juntos a fls. 37 e 38 dos autos, que titulam o depósito em dinheiro por parte do Autor dos montantes deles constantes em benefício da 1.ª Ré, foram emitidos pela 1ª Ré, neles se mostrando aposto o carimbo da 1ª Ré?
8.º - Os Recibos de Depósito foram subscritos por um empregado da tesouraria da 1ª Ré e por uma testemunha da sala?
9.º - O Autor depositou os montantes referidos nos Recibos de Depósito na conta de cliente do Autor n.º XXXXXXXX, junto da 1ª Ré?
10.º - No princípio de Setembro de 2015, o Autor dirigiu-se à sala VIP da 1.ª Ré que opera no Casino da 2ª Ré, com o propósito de levantar o numerário dos empréstimos?
11.º - Foi o Autor impedido de levantar os montantes dos empréstimos por parte da 1ª Ré?
12.º - Apesar de devidamente interpelada para o fazer, no dia 4 e 10 de Novembro de 2015 por força dos documentos a fls. 39 a 46 dos autos, a 1ª Ré não restituiu o dinheiro emprestado até à presente data?
13.º - A 1ª Ré recorreu a empréstimos de terceiros, entre os quais o Autor, que, por sua vez, lhe permitiram a concessão de crédito aos jogadores?
17.º - A 1ª Ré nunca recebeu do Autor, por si próprio ou através de terceiro, os montantes referidos nos documentos constantes a fls. 37 e 38 dos autos?”
Dos quesitos supra expostos, apenas ficou provada a seguinte matéria:
“No princípio de Setembro de 2015, o Autor dirigiu-se à sala VIP da 1ª Ré que opera no Casino da 2ª Ré, com o propósito de receber a quantia que alega ter depositado na sua conta aberta na sala VIP (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
A 1ª Ré não entregou a quantia referida na resposta ao quesito 10º (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
Apesar de solicitada para o fazer, no dia 4 e 10 de Novembro de 2015 por força dos documentos a fls. 39 a 46 dos autos, a 1ª Ré não entregou a quantia referida na resposta ao quesito 10º (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).”
Constata-se nos quesitos a referência a “empréstimo”, “empréstimos” e “depósito”.
Quanto ao uso de tais termos, é de recordar que há casos em que é admissível a utilização, na descrição dos factos constantes da especificação ou questionário de conceitos jurídicos simples e inequívocos, correntemente utilizados na linguagem vulgar, porque, na descrição corrente dos factos da vida são utilizados conceitos jurídicos vulgarizados, quer porque o envolvimento jurídico da vida social impregna a linguagem corrente de termos jurídicos, que porque a própria norma jurídica surge por imposição de relações sociais que lhe preexistem.5
E “Há certos juízos que contêm subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que são de uso corrente na linguagem, como ‘pagar’, ‘emprestar’, ‘vender’, ‘arrendar’, ‘dar em penhor’ e que são de equiparar a factos.
Poderão figurar na selecção dos factos, mas neste caso quando não constituam o objecto do quesito, quando não constituam questões controversas.
Quer dizer, por exemplo, se é controvertido entre as partes que determinada actividade factual da vida constitua arrendamento, não poderá ser objecto de quesito ‘A arrendou x a B?’.”6
Este Tribunal de Última Instância teve, recentemente, oportunidade de se pronunciar no acórdão proferido em 19 de Fevereiro de 2020 no âmbito do Processo n.º 83/2018, onde se deixou dito que “Embora a palavra ‘posse’ tenha um significado corrente, utilizado pela generalidade das pessoas, não pode ser matéria a incluir na base instrutória nem das respostas do Tribunal, se o que em causa está é precisamente saber se uma das partes tinha a qualidade de ‘possuidor’ para se solucionar a questão jurídica em apreciação.”7
Assim, pode suscitar-se dúvida quanto à utilização da expressão “empréstimo” quando, pelo menos, parte da questão controvertida dos autos está em saber se foi ou não realizado um mútuo pelo Autor à 1ª Ré.
Ainda que fosse de aceitar a utilização de palavras de dois sentidos no questionário, isto é, que se recorra à expressão “empréstimo” nos citados quesitos da base instrutória apesar de tal se reportar a uma das questões controvertidas dos autos (os mútuos do Autor à 1.ª Ré), a verdade é que nesse caso sempre se teria de concluir que a perspectiva de os supostos contratos de depósito celebrados entre as partes não foi apreciada pelo TJB, tal como referiu o TSI.
Não se pode com a expressão “empréstimo”, referida nos quesitos, pretender também abarcar a realidade factual relativa aos contratos de depósito e considerar que o TJB se pronunciou sobre essa questão (tanto de facto como de direito) quando tal não consta da matéria quesitada (procurando retirar tal julgamento da fundamentação da resposta à matéria constante da base instrutória). Aliás, se assim fosse de entender, então careceria de qualquer propósito a ampliação da causa de pedir requerida pelo Autor na Réplica e admitida pelo TJB a fls. 183 e 183v dos autos.
De facto, tal como resulta da base instrutória, o que estava quesitado era claramente se foram ou não solicitados empréstimos ao Autor pela 1.ª Ré e se o Autor concedeu esses empréstimos a uma taxa de juro remuneratório de 2% mensal, pelo que não tendo sido dado como provado que foram realizados empréstimos, não se pode concluir daí que não foram feitas entregas de dinheiro a qualquer título pelo Autor à 1.ª Ré e sustentar que o TJB examinou as questões de facto de uma dupla perspectiva quando a matéria quesitada é bastante clara quanto à realidade em exame (admitindo sempre que seria possível quesitar abertamente a realidade “empréstimo” quando é uma das questões controvertidas nos autos).
Para tanto, bastaria observar os seguintes trechos da sentença proferida pelo TJB, que se passam a transcrever:
“Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pela presente acção, pretende o Autor que as Rés fossem condenadas solidariamente a pagar ao Autor a quantia total de HK$17.000.000,00 acrescida de juros.
Para o efeito, alega que a 1ª Ré, operadora de uma Sala VIP sita no casino C da 2.ª Ré, solicitou ao Autor a concessão de quatro empréstimos em numerário, mediante retribuição de juros à taxa de 2% ao mês, os quais foram concedidos nas seguintes quantias e datas: (…); que, para o efeito, o Autor depositou essas quantias na sua conta com o n.º XXXXXXXX aberta na Sala VIP da 1ª Ré; que a 1ª Ré emitiu os respectivos recibos de depósito titulando os empréstimos feitos; que, em Setembro de 2015, o Autor foi à mesma sala para proceder ao levantamento das quantias depositadas mas deparou com a recusa da 1ª Ré; que, apesar de notificada da sua intenção de pôr termo ao mútuo e interpelada para restituir as quantias ao Autor em 4 e 10 de Novembro de 2015, a 1ª Ré não nada fez até à presente data; e que as receitas de jogo apuradas nas salas de jogo operadas pelas promotoras de jogo pertencem aos concessionários das quais uma percentagem é das promotoras de jogo.
Segundo o Autor, a 1ª Ré deve ser condenada a restituir as quantias por si depositadas porque entre os mesmos foi estabelecido um contrato de mútuo para a concessão de quatro empréstimos por força do qual esta é obrigada a restituir as respectivas quantias àquele 30 dias depois do termo do contrato, ou seja, no dia 4 de Dezembro de 2016. (…)
Flui da breve exposição acima feita que a presente acção radica nos alegados empréstimos feitos pelo Autor à 1ª Ré. Pois, é com base nesses empréstimos que o Autor invoca o direito à restituição das respectivas quantias de que, segundo o mesmo, não apenas a 1ª Ré é devedora mas também a 2ª Ré por força da relação existente entre as Rés ou da omissão imputada à 2ª Ré. (…)
Uma vez que não está demonstrado que o Autor chegou a conceder os empréstimos que alega ter concedido à 1ª Ré, o seu pedido nunca pode proceder independentemente do acerto do entendimento que aquele defende, designadamente, no que diz respeito à responsabilidade da 2ª Ré.”.
Ora, da sentença do TJB resulta que não foi apreciada a questão relativa à causa de pedir subsidiária alegada pelo Autor, e admitida pelo TJB, não se podendo aceitar que o TJB apreciou a questão de facto da dupla perspectiva do “empréstimo”/“depósito”.
É de salientar que, não obstante a referência a “recibos de depósito” (quesitos 7º e 8º da base instrutória) e “o Autor depositou os montantes” (quesito 9º da base instrutória), certo é que, do contexto em que tais expressões se encontravam inseridas resulta que o termo “depósito” foi empregue em consequência dos contratos de empréstimos alegadamente celebrados entre o Autor e a 1ª Ré.
O mesmo se deve dizer em relação à utilização da expressão “empréstimo/depósito” na fundamentação do acórdão de resposta aos quesitos.
Por outras palavras, com a expressão “depósito” pretendia-se referir à entrega física de dinheiro, mas sempre sem perder de vista que a mesma era feita a título de empréstimo, pois era essa a matéria quesitada, caso contrário a resposta seria excessiva e deveria ter-se por não escrita, aplicando-se analogicamente o art.º 549.º, n.º 4 do CPC8.
Compreende-se a alegação das Recorrentes, no sentido de ficar demonstrado nos autos que não foi feita qualquer entrega de dinheiro, independentemente da qualificação jurídica a atribuir a esses actos, mas não se pode deixar de observar que a matéria quesitada se referia a um “conceito jurídico geralmente conhecido (…) de uso corrente na linguagem” como é o caso do empréstimo, e não a entrega de dinheiro.
Não se pode assim pretender que está em causa uma mera qualificação jurídica dos factos quando é a própria matéria quesitada que inclui um “conceito jurídico geralmente conhecido (…) de uso corrente na linguagem”, sob pena de se ter de considerar que, afinal, a base instrutória a esse respeito constitui matéria de direito em vez de matéria de facto.
Improcede assim o argumento das Recorrentes.
3.2. Da nulidade do acórdão ou da errada aplicação do art.º 563.º, n.º 2 do CPC
Imputa a 2.ª Ré a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia em relação ao recurso interlocutório por si apresentado contra a decisão do TJB que admitiu a ampliação da causa de pedir por parte do Autor e que considerou tal ampliação oponível à 2.ª Ré.
Alega ainda que, caso se entenda que houve pronúncia porque, apesar de não se decidir, não se ignorou a matéria do recurso interlocutório, o TSI terá feito errada aplicação do preceituado no art.º 563.º, n.º 2 do CPC, ao identificar uma relação de prejudicialidade, com isso não decidindo esse recurso.
Vejamos.
3.2.1. Nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do CPC, é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Quanto às questões a resolver na sentença, dispõe o art.º 563.º do CPC o seguinte:
“Artigo 563.º
(Questões a resolver e ordem do julgamento)
1. Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 230.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões que possam conduzir à absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
2. O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
3. O juiz ocupa-se apenas das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Daí decorre que o juiz deve resolver todas as questões suscitadas pelas partes, devendo ocupar-se apenas dessas questões, salvo questões de conhecimento oficioso, sendo certo que só a omissão de pronúncia sobre questões que o juiz tem a obrigação de conhecer determina a nulidade da sua sentença.
“A obrigatoriedade de o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não significa que o juiz tenha, necessariamente, de apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para fundamentarem a resolução de uma questão.”9
E por questões entendem-se “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes”.10
É de reafirmar ainda entendimento uniforme deste TUI que “quando a sentença omite a pronúncia sobre uma questão, sobre a qual se devia pronunciar, explicando a razão para essa omissão, não existe nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.11
Acresce que, nos termos do n.º 2 do art.º 563.º do CPC, o Tribunal não tem obrigação de resolver questões suscitadas pelas partes “cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
No presente caso, constata-se no acórdão recorrido que o TSI afrontou o recurso interposto pela ora Recorrente e explicou porque não conhecia do mesmo, entendendo que “(…) Com a anulação a que oficiosamente se procederá, deverão os autos baixar à primeira instância para os supra indicados efeitos.
Em consequência, fica prejudicado, para já, o conhecimento do recurso interlocutório.”
Daí que não se vê verificado o vício de nulidade por omissão e pronúncia, pois o TSI considerou que o conhecimento do recurso interlocutório ficava prejudicado com a decisão de anulação da sentença do TJB.
3.2.2. Alega ainda a 2.ª Recorrente que o TSI incorreu em erro ao considerar que o conhecimento do recurso interlocutório ficaria prejudicado nos termos do artigo 563.º, n.º 2 do CPC.
Na sua óptica, “a apreciação de um recurso interlocutório que suba em diferido com o primeiro, posterior a ele, que haja de subir imediatamente não depende da decisão deste último, devendo ter lugar mesmo que, por qualquer razão, o tribunal ad quem não chegue a conhecer do segundo recurso.” (alínea ii das conclusões do recurso).
Repetindo-se, prevê a norma mencionada que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Está em causa um recurso interlocutório interposto da decisão do TJB que admitiu a ampliação da causa de pedir requerida pelo Autor e que considerou tal ampliação oponível à 2.ª Recorrente.
É de chamar à colação o disposto no n.º 2 do art.º 628.º do CPC, que regula precisamente a matéria ora em discussão, segundo o qual “Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada”.
A este propósito, já o Tribunal de Segunda Instância da RAEM referiu que “Geralmente, face ao art. 628º do CPC, os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada (nº 2).
Esta disposição parte do princípio de que o recurso interlocutório (que ‘não incide sobre o mérito da causa’) é interposto pela parte (‘recorrida’) que não recorre da sentença final. Nesse caso, primeiro aprecia-se a sentença e só depois, se a sentença não for confirmada, é que se passa a conhecer do recurso interlocutório. (…)”12
“Com efeito, o que o artigo 628º, nº 1 prevê é o não conhecimento dos recursos interlocutórios (porque subam com o recurso interposto da sentença) se, na hipótese ali configurada, a sentença vier a ser confirmada. E o nº 2 do mesmo artigo apenas admite o conhecimento desses recursos interlocutórios se, independentemente da confirmação, a infracção a que eles respeitarem tiver influído no exame ou decisão da causa ou, quando para lá da decisão do litígio, o provimento possa ter interesse para o recorrente. Isto é, estamos em face de regras processuais concernentes ao conhecimento dos recursos jurisdicionais de decisões que tenham tido subida diferida partindo sempre de um pressuposto em hipótese nenhuma descartável: a existência da sentença que tenha conhecido de mérito.
O problema do conhecimento dos recursos interlocutórios não se desgarra, portanto, da dependência do sentido de uma decisão final de que haja sido interposto recurso jurisdicional, porque, obviamente, se não houve sentença ou se, tendo-a havido, dela não for interposto recurso, a questão é resolvida à luz do art. 602º. Ora, embora tenha havido recurso da decisão do indeferimento do pedido da providência por parte das requerentes, a verdade é que não chegou a ser tomada uma decisão definitiva em sede de recurso, em virtude de ter havido uma decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide com base na atitude da própria reclamante.
Quer dizer, por se não saber se iria haver ou não confirmação da sentença recorrida, nunca se pode dizer que aqueles recursos iriam ser, ou não, conhecidos face ao que dispõe o art. 628º. E se nada disso podemos nós prognosticar, da mesma maneira se nos torna impossível dizer que a apreciação dos recursos sempre iria ficar precludida por causa não imputável à ora reclamante.”13
Afigura-se-nos correcta a lógica acima exposta, pois o conhecimento do recurso interlocutório que não incida sobre o meríto da causa e que tenha sido interposto pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito (que é o nosso caso) depende da não confirmação pelo TSI da sentença, sendo certo que a confirmação, ou não, da sentença recorrida pressupõe a reapreciação da sentença, no seu mérito.
É verdade que, nos presentes autos, a sentença do TJB não foi confirmada, mas sim anulada.
No entanto, há que frisar que a dita anulação da sentença se deveu à insuficiência da matéria de facto e da indispensabilidade da sua ampliação para a decisão de mérito verificada oficiosamente pelo TSI, não foi possível verdadeiramente conhecer do mérito da sentença do TJB, tendo o TSI decidido não proceder “ao conhecimento da bondade jurídica da sentença”.
É que entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência, apenas se podendo avançar na decisão de mérito se a matéria de facto estiver definitivamente fixada. O que não se verifica no caso dos autos.
Não sendo a matéria de facto suficiente para o conhecimento do mérito da decisão recorrida, não faria sentido conhecer de um recurso interlocutório que depende da alteração da decisão de mérito.
Por outras palavras, estando o conhecimento do mérito da decisão recorrida “prejudicado” por insuficiência da matéria de facto que levou o TSI a anular, oficiosamente, a decisão do TSI e ampliar a matéria de facto, fica também prejudicado o conhecimento do recurso interlocutório interposto pela 2.ª Recorrente, pois era recorrida no recurso de decisão sobre o mérito, tudo conforme o disposto no art.º 628.º, n.º 2 do CPC.
Concluindo, não se nos afigura merecer censura o acórdão recorrido, na parte em que decidiu não conhecer do recurso interlocutório.
4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos interpostos.
Custas pelas 1.ª e 2.ª recorrentes, com taxa de justiça que se fixa, respectivamente, em 6 UCs e 8 UCs.
23 de Fevereiro de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 ALBERTO DOS REIS, obra citada, III volume, p. 197 e 198, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 79.º, p. 94 e nas Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, sessão de 23 de Novembro de 1937, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 116, p. 202.
2 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, volume III, p. 279 e 280, que não se acompanha, no entanto, na parte em que considera que todas as questões concernentes à especificação e questionário são questões de direito.
3 ANTUNES VARELA, em anotação a decisão judicial na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125.º, p. 331.
4 ANTUNES VARELA, estudo citado, p. 309, também entende que nestes casos o Supremo não pode conhecer da decisão da Relação, pois que «está-se, efectivamente, numa zona de declarações que, não pertencendo embora ao puro domínio da investigação factual, nem ao puro reino da preceptologia normativa, está mais próxima do alicerce dos factos, porque lhes diz respeito, do que da cimalha das normas jurídicas».
5 J. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 2000, p. 169 a 170.
6 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, 3.ª Edição, 2018, p. 433.
7 No mesmo sentido, cfr. também o acórdão do TUI de 1 de Dezembro de 2004, proferido no Processo n.º 42/2004.
8 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, 3.ª Edição, 2018, p. 522.
9 Viriato de Lima, Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 536.
10 Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, pág. 112.
11 Cfr. Ac.s do TUI, de 29 de Junho de 2009, Proc. n.º 9/2009 e de 19 de Novembro de 2014, Proc. n.º 112/2014.
12 Cfr. Ac. do TSI, de 12 de Junho de 2014, Proc. n.º 479/2010.
13 Cfr. Ac. do TSI, de 18 de Julho de 2013, Proc. n.º 159/2012.
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Processo n.º 109/2019