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Processo n.º 128/2019
Recurso Jurisdicional
Recorrentes: A e B
Recorridos: Serviços de Saúde e C
Data da conferência: 22 de Abril de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Legitimidade passiva
- Poderes de cognição do Tribunal de Última Instância
- Matéria de facto

SUMÁRIO
1. A legitimidade determina-se de acordo com a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor na petição inicial.
2. Sendo a relação jurídica controvertida estabelecida entre os Autores e os dois Réus, conforme a configuração apresentada por aqueles, e não decorrendo dos autos quaisquer elementos que apontem para a existência ou indícios de conduta ilícita por parte de outros membros da equipa médica que prestou assistência ao filho dos recorrentes para sustentar a tese sustentada por estes, que imponham o conhecimento oficioso de outros intervenientes como partes passivas na acção intentada, é de concluir que não merece censura a posição defendida pelo Tribunal recorrido, no sentido de considerar os dois Réus (e tão só) como partes legítimas passivas.
3. A competência do Tribunal de Última Instância em apreciar a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto fica delimitada no n.º 2 do art.º 649.º do Código de Processo Civil de Macau, subsidiariamente aplicável por força do disposto no art.º 1.º do CPAC, segundo o qual “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
4. O Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de fato. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A e B, melhor identificados nos autos, intentou no Tribunal Administrativo uma acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual contra os Serviços de Saúde (1.º Réu) e C (2.º Réu), pedindo que a acção fosse julgada procedente, com condenação dos Réus no pagamento solidário de indemnização na quantia global de MOP$2.800.000,00, a título de danos sofridos pela morte do filho D, de juros de mora sobre tal quantia, à taxa legal, desde a citação até ao integral pagamento e de custas de parte, selos e procuradoria condigna.
Por sentença proferida a fls. 1800 a 1806 dos autos, o Exmo. Juiz Titular do Processo julgou a acção improcedente e em consequência decidiu absolver os Réus dos pedidos formulados pelos Autores.
Inconformados com a decisão, recorreram os Autores para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida (fls. 2209 a 2232 dos autos).
Desse acórdão vêm os Autores recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
1. Com efeito, compete ao Douto Tribunal, face à prova documental e testemunhal produzida e constante dos autos, determinar quais os factos provados e não provados.
2. Para tanto, não basta ao Douto Tribunal alegar que os factos estão ou não provados.
3. Tem o dever de o fundamentar.
4. E, nesta matéria não tem livre arbitrío.
5. Antes pelo contrário, tem que fundamentar o porquê de tal facto estar ou não estar provado.
6. Tal não acorreu nos presentes autos.
7. Mas não só, ao não fundamentar a matéria provada e não provada, o Tribunal arrisca-se a cometer erro na apreciação da prova, tal como ocorre nos presentes autos, e
8. A entrar em notória contradição entre a prova produzida nos autos, a sua interpretação e a subsunção dos factos ao direito, incorrendo em erro notório e contradições insanáveis geradoras de nulidade.
9. Os Venerandos Juízes do TSI vieram pronunciar-se sobre a matéria recorrida, partindo da premissa errada que consta na factualidade provada na 1.ª instância.
10. Verificando-se assim, a continuidade do erro entre a prova produzida nos autos e a dada como provada a final.
11. Com efeito, a questão prévia da alegada ilegitimidade das partes na acção, porquanto intervieram como partes apenas os ora RR. quando deviam ter intervindo todos os médicos e enfermeiros que estiveram em contacto com o bebé, conforme o principio do inquisitório e da oficiosidade positivado.
12. Com efeito, sempre que em autoria ou oficiosamente, o Tribunal verifique que os seus agentes, pessoas singulares ou colectivas, agiram ilicíta e culposamente, devem os mesmo ser demandados com a entidade pública, quer a título individual, quer em litisconsórcio necessário.
13. Por outro lado, não se entende porque é que nenhum dos médicos que observou o menor, quer no âmbito dos cuidados primários de saúde, quer nos hospitalares e até no especialista, sabendo que o bebé tinha uma análise hospitalar efectuada aquando do seu nascimento, dizendo que o mesmo tinha uma doença congénita, não se tenha lembrado de lhe fazer uma simples ecografia ou uma biopsia.
14. Curiosamente, o único médico a falar nisso nos autos foi o médico que fez a autopsia e que viu a criança já “de cujus”.
15. Por outro lado, não passa pela cabeça de médico algum, ou não devia passar, receitar a uma criança com uma doença cardíaca congénita, medicação contra indicada a doentes com esta patologia.
16. Tal receituário só podia agravar o já debil estado de saúde do menor.
17. Obviamente, o 2º R. perante uma situação de saúde que lhe foi descrita como crítica, com o historial conhecido de problemáticas congénitas e com a sintomatologia gravíssima relatada telefónicamente, mormente os vómitos há 4 dias, a rejeição da comida, as extremidades a atingir o estado mórbido, o Ph de alto risco, não podia recusar-se a observar de imediato a criança e a manter-se a seu lado até que esta melhorasse.
18. Como não podia retirar-lhe a única possibilidade técnica de a manter a respirar, ainda que artificialmente, sendo certo que o contrário, como veio a acontecer, foi condição sine qua non para o óbito ocorrido.
19. Acresce que toda esta actuação do médico C encontra-se provados nos autos, até para efeitos de procedimento disciplinar condenatório.
20. E acresce, ainda, que está provado que este médico alterou o Relatório Clínico para omitir a sua notória culpa nesta matéria.
21. Dúvidas não há nos autos na responsabilidade civil extracontratual dos médicos e enfermeiros que estiveram em contacto com o menor.
22. Obviamente, com notória responsabilidade do Dr. C que actuou de forma culposa e dolosa, sabendo que com a sua acção estava a pôr em risco de vida o menor e, no entanto, embora sabendo-o, agiu na mesma.
23. Assim, ao não fazer intervir oficiosamente nos autos todos os profissionais de saúde que, de uma forma ou de outra, observaram e estiveram em contacto com o bebé e ao absolver os ora 1º e 2º RR., a sentença foi ilegal e injusta, incorrendo em erro de julgamento.
24. Por outro lado é por demais óbvio e notório que existiu erro na apreciação da matéria de facto, porquanto a apreciação da prova produzida nos autos está em perfeita desconformidade com a verdade.
25. Determina o artigo 571.º n.º 1 do CPC que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; bem como quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão; e ainda quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Contra-alegaram os Réus, ambos pugnando pela improcedência do recurso, com manutenção do acórdão ora recorrido.
O Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Nos autos foi dada como provada a seguinte factualidade:
Os AA. eram os pais do D, portador do BIR n.º XXXXXXX(X) (alínea A) dos factos assentes).
O D nasceu em Macau no dia X de Setembro de 2014 (alínea B) dos factos assentes).
Vindo a falecer, no Centro Hospitalar Conde São Januário (C.H.C.S.J.), em XX/02/2015, pelas 19H45 (alínea C) dos factos assentes).
O D era o titular do cartão dos Serviços de Saúde com o n.º XXXXXXXX.X (alínea D) dos factos assentes).
O 2.º R., C, começou a exercer funções nos Serviços de Saúde, em XX/11/1989, como interno geral, e como médico no Serviço de Pediatria desde Julho de 1995 (alínea E) dos factos assentes).
No âmbito do processo disciplinar n.º PD-7/2014 autuado pelos Serviços de Saúde, foi aplicada ao 2.º R. a pena de demissão, com efeitos a partir de XX/04/2015 (alínea F) dos factos assentes).
No âmbito do processo disciplinar n.º PD-3/2015 autuado pelos Serviços de Saúde, foi aplicada ao 2.º R. a pena de suspensão de 150 dias (alínea G) dos factos assentes).
Foi realizada a autópsia ao falecido menor, cujo relatório consta a fls. 101 a 105v dos autos que aqui se dá por integralmente transcrito (alínea H) dos factos assentes).
Em XX/02/2015, o 2.º R. estava de escala, no regime de presença física das 8H30 às 8H30 da manhã seguinte, para prestar apoio ao Serviço de Urgência Pediátrica (alínea I) dos factos assentes).
Desde o nascimento, o D deslocou-se ao Centro de Saúde da Areia Preta para consulta na Saúde Infantil, em 22/9/2014, 6/10/2014, 10/11/2014 e 12/1/2015, onde foi examinado pela Dra. E nas primeiras três vezes e pelo Dr. F na última vez (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
Nas consultas acima referidas, o menor apresentou um crescimento dentro dos parâmetros considerados normais (resposta ao quesito 2.º da base instrutória).
Por força dos dados clínicos disponíveis em 17 de Setembro de 2014 que indicavam que o menor padecia de doenças cardíacas congénitas, o mesmo foi submetido a acompanhamento na especialidade de Cardiologia Pediátrica (resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
Em 15/10/2014, 26/11/2014 e 4/2/2015, o menor deslocou-se ao C.H.C.S.J. para consulta na Cardiologia Pediátrica, onde foi examinado pelo Dr. G (resposta ao quesito 4.º da base instrutória).
Ao detectar que a situação do menor era estável, marcou nova consulta para 18 de Novembro de 2015 com realização de ecografias em Setembro de 2015 (resposta ao quesito 5.º da base instrutória).
Até o dia 19 de Fevereiro de 2015, o menor apresentava um crescimento dentro dos parâmetros considerados normais (resposta ao quesito 6.º da base instrutória).
Pelas 05H17 de 19/02/2015, o menor deu entrada na Urgência Pediátrica do C.H.C.S.J., onde foi examinado pelo Dr. H (resposta ao quesito 7.º da base instrutória).
Tendo-lhe sido dado alta, após observação médica, com a receita médica de Dimetindeno: Sol. Oral 1 mg/ml (20gts=1ml), para tomar oralmente 4 gotas, três vezes ao dia e Domperidona: Susp. Oral 1mg/ml, para tomar oralmente 1,5 ml três vezes ao dia (resposta ao quesito 8.º da base instrutória).
Nesse mesmo dia, pelas 15H16, o menor voltou a dar entrada na Urgência Pediátrica do C.H.C.S.J. (resposta ao quesito 9.º da base instrutória).
Face aos sintomas apresentados pelo menor, o Dr. F, chamou o 2.º Réu, pelas 15H44, através da central telefónica (resposta ao quesito 10.º da base instrutória).
O 2.º R. respondeu à chamada telefónica e o Dr. F transmitiu-lhe a situação clinica do menor (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
Nomeadamente, que se tratava de um menor com 5 meses de idade, com história clínica de “G6PD”, com doença cardíaca congénita, com estenose pulmonar, regurgitação mitral e que estava a ser acompanhado na consulta externa de pediatria (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
Também o informou do exame corporal realizado ao menor, que apresentava T36,7º, SPO2 100%, consciente, respiração um pouco rápida, lábios com cianose ligeira, pele morna (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
De seguida, o 2.º Réu deu instruções ao Dr. F para fazer admissão do menor na sala de observações e proceder à colheita de sangue para análise (resposta ao quesito 14.º da base instrutória).
O 2.º R. não se deslocou à Urgência Pediátrica para observar o menor (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
Pelas 16H31, o Dr. F voltou a chamar telefonicamente o 2.º R. (resposta ao quesito 17.º da base instrutória).
Tendo-o informado que o menor estava com maiores dificuldades respiratórias (resposta ao quesito 18.º da base instrutória).
Depois desse telefonema, o 2.º Réu apareceu na Urgência Pediátrica (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
O 2.º Réu verificou que o menor se encontrava na sala de reanimação da Urgência Pediátrica e estava com taquipneia, cianose nos lábios e nas extremidades das mãos e dos pés e com má circulação (resposta ao quesito 20.º da base instrutória).
Cerca das 16H57, o 2.º R. consultou o relatório dos gases sanguíneos, tendo tomado conhecimento do seguinte: pH 6.719, P02 27 mmHg, BEecf - 26mmol/L (resposta ao quesito 21.º da base instrutória).
Este resultado do pH revelava que o menor estava em estado crítico (resposta ao quesito 22.º da base instrutória).
Perante tais resultados, o 2.º Réu aplicou ao menor a intubação traqueal (ET Tube) às 17h05 (resposta ao quesito 23.º da base instrutória).
Pelas 16H58, o 2.º R. pediu ajuda ao Dr. I, médico especialista pediatra, que nesse mesmo dia, estava de escala para prestar apoio na Enfermaria da Pediatria Geral, na Unidade de Cuidados Especiais a Recém-Nascidos, na Maternidade e Sala de Partos e no Bloco Operatório (resposta ao quesito 24.º da base instrutória).
Às 17H15, foi decidido, pelo 2.º Réu, remover ao menor o tubo traqueal e colocar-lhe uma máscara respiratória (resposta ao quesito 25.º da base instrutória).
Por volta das 17H52, o Dr. I recebeu uma chamada do Bloco Operatório do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia do C.H.C.S.J. para ir prestar apoio na realização de uma cesariana (resposta ao quesito 26.º da base instrutória).
Quando recebeu a chamada para ir dar apoio à cesariana, o Dr. I estava a preparar o estabelecimento do acesso venoso pela veia femoral (resposta ao quesito 27.º da base instrutória).
Cerca de 30 minutos depois, o 2.º R. regressou à sala de reanimação da Urgência Pediátrica, tendo de seguida participado no resgate do menor (resposta ao quesito 29.º da base instrutória).
Pelas 18H25, o Dr. I efectuou, novamente, ao menor, a intubação traqueal (resposta ao quesito 30.º da base instrutória).
O 2.º Réu era médico responsável do D (resposta ao quesito 31.º-A da base instrutória).
O Dr. F era médico interno complementar no 1.º Réu, a exercer funções no dia 19 de Fevereiro de 2015, na Urgência Pediátrica (resposta ao quesito 31.º-B da base instrutória).
Depois de receber a chamada referida na resposta ao quesito 10.º, o 2.º Réu devia ter ido observar o menor (resposta ao quesito 31.º-C da base instrutória).
O 2.º Réu devia ter mantido a intubação traqueal ao menor a qual não devia ter sido substituída pela máscara respiratória (resposta ao quesito 31.º-D da base instrutória).
O 2.º Réu não devia ter saído da sala de reanimação da Urgência Pediátrica (resposta ao quesito 31.º-E da base instrutória).
O menor foi diagnosticado com G6PD – Glucose 6 Phosphate Dehydrogenase Deficiency (“deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase”) no período compreendido entre 17 e 22 de Setembro de 2014 (resposta ao quesito 32.º da base instrutória).
Quando deu entrada na Urgência Pediátrica do C.H.C.S.J. pela 2ª vez em 19 de Fevereiro de 2015, o menor esteve com vómitos por mais de 4 dias, com pouco apetite nos dias anteriores, sem apetite e sem tomar qualquer leite neste dia, além dos sintomas e problemas referidos nas respostas aos quesitos 12.º e 13.º (resposta ao quesito 34.º da base instrutória).
Não foram encontradas lesões provocadas pelos cuidados médicos, excepto as resultantes de tentativas de punção venosa que eram necessárias e foram feitas no procedimento normal de tentativa de salvamento do menor (resposta ao quesito 36.º da base instrutória).
Em 14 de Setembro de 2014, foram realizadas ecografias ao menor que evidenciavam uma estrutura do coração diferente do normal, embora sem necessidade de medicação (resposta ao quesito 38.º da base instrutória).
O 2.º Réu chegou à Urgência Pediátrica por volta das 16H45 (resposta ao quesito 43.º da base instrutória).
Não obstante as instruções que haviam sido dadas pelo 2.º Réu ao Dr. F, durante o período que decorreu entre a 1ª e a 2ª chamada telefónica, as enfermeiras da Urgência Pediátrica não conseguiram fazer a punção venosa ao menor para que lhe fosse recolhido sangue para análise (resposta ao quesito 44.º da base instrutória).
E por essa razão não foi possível obter resultados das análises ao sangue (resposta ao quesito 45.º da base instrutória).
Nada foi reportado ao 2.º R. durante esse período (resposta ao quesito 46.º da base instrutória).
Quando chegou à sala de reanimação e apercebendo-se das dificuldades na recolha do sangue, o 2.º R. deu de imediato instruções para fazer análises dos gases sanguíneos com base nas pequenas quantidades de sangue obtidas da veia (resposta ao quesito 47.º da base instrutória).
O 2.º Réu e os enfermeiros de serviço tentavam sem sucesso fazer a punção venosa ao menor (resposta ao quesito 48.º da base instrutória).
Face a essas dificuldades em fazer a punção venosa e à situação clínica do menor, o 2.º Réu decidiu pedir ajuda ao pediatra especialista, Dr. I (resposta ao quesito 49.º da base instrutória).
O estabelecimento do acesso venoso era importante para que pudesse depois ser administrada a medicação (resposta ao quesito 54.º da base instrutória).
Com a concordância do Dr. I, o 2.º Réu foi realizar a cesariana, tendo regressado mais tarde à sala de reanimação (resposta ao quesito 56.º da base instrutória).
Tendo o menor ficado ao cuidado do Dr. I (resposta ao quesito 57.º da base instrutória).
A cardiomiopatia dilatada primária é uma doença rara do músculo cardíaco e de difícil diagnóstico (resposta ao quesito 58.º da base instrutória).
O peso do menor foi de 7 kg e o peso médio normal do coração seria entre 24 e 51 gramas (resposta ao quesito 59.º da base instrutória).
O coração do menor pesava 90 gramas, sofreu alteração patológica e padecia de cardiomiopatia dilatada (resposta ao quesito 60.º da base instrutória).

3. Direito
Resulta da leitura das alegações de recurso apresentadas pelos Autores recorrentes que, essencialmente, eles insistem em suscitar as questões respeitantes à ilegitimidade processual e à matéria de facto dada como provada pelas duas Instâncias, já colocadas no recurso interposto para o TSI.
Imputam ainda o vício da nulidade da sentença prevista no n.º 1 do art.º 571.º do CPC (sem que, no entanto, tenha especificado qual a alínea desse artigo que, seria aplicável no seu entender).
Vejamos se assiste razão aos recorrentes, começando pela questão de nulidade.

3.1 Da nulidade
No que concerne à nulidade do acórdão recorrido, limitam-se os recorrentes a alegar que, ao não fundamentar, como devia, a matéria provada e não provada, tendo o dever de o fazer, o Tribunal de 1.ª instância arrisca-se a cometer erro na apreciação da prova e, a entrar em notória contradição entre a prova produzida nos autos, a sua interpretação e a subsunção dos factos ao direito, incorre em erro notório e contradições insanáveis geradoras de nulidade. E o acórdão recorrido do TSI veio pronunciar-se sobre a matéria recorrida, partindo da premissa errada que consta na factualidade provada na 1.ª instância, verificando-se assim, a continuidade do erro entre a prova produzida nos autos e a dada como provada a final.
E invocam o art.º 571.º n.º 1 do CPC, transcrevendo as causas geradoras de nulidade da sentença previstas nas al.s b), c) e d) do n.º 1 do artigo (cfr. último ponto das conclusões apresentadas pelos recorrentes).
Como é sabido, como causas de nulidade estão previstas nas al.s b), c) e d) do n.º 1 do art.º 571.º a não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, a oposição entre os fundamentos e a decisão bem como a omissão de pronúncia ou o excesso de pronúncia.
Compulsadas as alegações de recurso e as respectivas conclusões apresentadas pelos recorrentes, não se vislumbra que os recorrentes chegaram a indicar qualquer situação acima referida que possa implicar a nulidade do acórdão recorrido.
A verdade é que, evidentemente, os vícios imputados pelos recorrentes, tanto a não fundamentação da matéria de facto provada e não provada, como o erro na apreciação da prova e ainda a notória contradição entre a prova produzida nos autos, a sua interpretação e a subsunção dos factos ao direito, não integram em nenhuma das situações previstas na lei como causas de nulidade da sentença.
É ainda de salientar que, contrariamente à afirmação dos recorrentes, o Tribunal de 1.ª instância não ignorou o seu dever de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto.
De facto, na sua resposta aos quesitos e dando cumprimento ao disposto no n.º 2 do art.º 556.º do CPC, o Tribunal não só declarou os factos que julgou provados e não provados, mas também analisou criticamente as provas produzidas, especificando os fundamentos que foram decisivos para formar a convicção do tribunal (cfr. acórdão de fls. 1741 a 1753v dos autos).
E o TSI não deixou de apreciar a questão suscitada pelos Autores recorrentes de erro na apreciação das provas, com análise das provas produzidas na primeira instância, incluindo a prova documental junta aos autos e os depoimentos das testemunhas, tendo concluído pela sem razão dos recorrentes (fls. 2224 a 2231v dos autos).
Não se verificando o vício de nulidade, improcede o recurso, nesta parte.

3.2 Da ilegitimidade processual
Suscitam os recorrentes “a questão prévia da alegada ilegitimidade das partes na acção, porquanto intervieram como partes apenas os ora RR. quando deviam ter intervindo todos os médicos e enfermeiros que estiveram em contacto com o bebé, conforme o principio do inquisitório e da oficiosidade positivado”, alegando que, sempre que “o Tribunal verifique que os seus agentes, pessoas singulares ou colectivas, agiram ilicíta e culposamente, devem os mesmo ser demandados com a entidade pública, quer a título individual, quer em litisconsórcio necessário”.
Está em causa a questão de (i)legitimidade passiva para a acção intentada pelos recorrentes.
Ora, constata-se nos autos que os Autores recorrentes intentaram a acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual apenas contra os dois Réus, Serviços de Saúde e C.
Com a colocação da questão em causa, pretendiam a intervenção de “todos os médicos e enfermeiros que estiveram em contacto com o bebé”.
Sobre tal questão, encontram-se no acórdão recorrido as seguintes considerações que passamos a transcrever:
«Entendem os recorrentes que para além dos Serviços de Saúde da RAEM e do Réu C, deviam ainda intervir todos os médicos e enfermeiros que estiveram em contacto com o bebé.
A nosso ver, não assiste minimamente razão aos recorrentes.
Conforme se dispõe o artigo 58.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 1.º do CPAC: “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Para esta tese, a legitimidade das partes é aferida de acordo com a configuração dada pelos autores. É a tese propugnada pelo Professor Barbosa Magalhães.
Melhor dizendo, a parte é legítima quando, admitindo-se a existência de determinada relação jurídica controvertida, ela for efectivamente seu titular.1
No caso dos autos, os recorrentes, na qualidade de Autores, intentaram acção contra os Serviços de Saúde e o ex-médico do CHCSJC, pedindo a condenação dos Réus no pagamento de determinado quantum indemnizatório.
Segundo a configuração dada pelos Autores, os dois Réus seriam responsáveis pelo acto lesivo cometido com base num alegado erro médico.
Sendo assim, admitindo-se a existência da relação jurídica controvertida alegada pelos Autores, aqueles dois Réus é que são partes legítimas dessa mesma relação, e não os outros indivíduos.
Improcede, pois, a excepção de ilegitimidade invocada pelos recorrentes.»
Merece a nossa concordância o entendimento exposto.
Na realidade, a legitimidade determina-se de acordo com a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor na petição inicial.
No caso vertente, e segundo a configuração dada pelos Autores, os dois Réus seriam responsáveis pelo alegado acto lesivo, pois resulta claramente da petição inicial apresentada pelos Autores que estes imputaram aos dois Réus (e só aos dois Réus) a responsabilidade extracontratual pela morte do bebé, pedindo a condenação dos Réus no pagamento solidário de indemnização na quantia global de MOP$2.800.000,00.
Assim, sendo a relação jurídica controvertida estabelecida entre os Autores e os dois Réus, conforme a configuração apresentada por aqueles, não merece censura a posição defendida pelo Tribunal recorrido, no sentido de considerar os dois Réus (e tão só) como partes legítimas passivas.
E não decorre dos autos quaisquer elementos que apontem para a existência ou indícios de conduta ilícita por parte de outros membros da equipa médica que prestou assistência ao filho dos recorrentes para sustentar a tese defendida pelos recorrentes, que imponham o conhecimento oficioso de outros intervenientes como partes passivas na acção intentada.

3.3 Da matéria de facto
Alegam os recorrentes que “é por demais óbvio e notório que existiu erro na apreciação da matéria de facto, porquanto a apreciação da prova produzida nos autos está em perfeita desconformidade com a verdade”.
Com a imputação do erro na apreciação das provas, também invocado no recurso interposto para o TSI, o que se pretende é ver alterada a matéria de facto dada como assente pelos Tribunais de duas instâncias.
Estando em causa a matéria de facto provada, há que ver, desde logo, se este Tribunal de Última Instância tem competência para conhecer a questão.
Ora, nos termos do art.º 47.º n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso não correspondente a segundo grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito, “excepto disposições em contrário das leis de processo”.
E ao abrigo do art.º 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada.
O que decorre desta norma é que, em recurso jurisdicional de decisões de processo do contencioso administrativo, o Tribunal de Última Instância aprecia, em princípio, questão de direito e não de facto.
E no que concerne ao âmbito do julgamento do recurso para o Tribunal de Última Instância, é ainda subsidiariamente aplicável a norma do art.º 649.º do CPC, por força do disposto no art.º 1.º do CPAC.
“Artigo 649.º
(Âmbito do julgamento)
1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”
Fica assim delimitada a competência do TUI em apreciar a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, que é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º.
E é de entendimento uniforme que o TUI, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de fato. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes; e tem competência para conhecer de questões relativas a matéria de facto se forrem violadas normas e princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto, como decorre do disposto no n.º 2 do art.º 649.º do CPC.
Mas não tem competência para apreciar o julgamento na matéria de facto quando se alegam violações que decorrem da mera livre apreciação das provas, quando não está em causa qualquer julgamento em violação de meio de prova plena.2
É que, como adverte Rodrigues Bastos, em anotação à norma semelhante do Código de Processo Civil português, “repare-se, porém, que ainda aqui – e sempre – a actividade do Tribunal se situa no estrito campo da observação da lei; ele não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova; limita-se a reconhecer e a declarar, em qualquer dos casos, que havia obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos – e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”.3
Esta doutrina foi reafirmada em muitos acórdãos posteriores.4
No caso ora em apreciação, importa apurar se, na formação da sua convicção sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo violou alguma disposição legal que expressamente exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, sendo certo que, no caso negativo, o TUI não tem competência para conhecer da matéria posta em causa pelos recorrentes.
Realça-se que, não obstante a extensão das suas alegações, os recorrentes não chegaram a indicar qualquer norma legal expressa que, em matéria de vinculação e força probatória, houvesse sido violada pelo tribunal nem identificar claramente qualquer prova com força plena que apontasse para o sentido sustentado pelos recorrentes sobre a matéria de facto.
Acresce que, nos termos do art.º 558.º do CPC, em princípio o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção cerca de cada facto.
E não se verifica no presente caso qualquer excepção a tal princípio da livre apreciação das provas.
Por outro lado, constata-se no acórdão ora recorrido que o TSI fez abordagem sobre a matéria de facto, nomeadamente as respostas dadas aos quesitos postas em causa pelos recorrentes, com análise das provas produzidas, tendo concluído pela inexistência de qualquer erro grosseiro e manifesto por parte do Tribunal de 1.ª instância na apreciação das provas.
Na realidade, não se vislumbra a ofensa de alguma disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, que nem sequer foi indicada pelos recorrentes.
Assim, não se vê obstáculo legal a que o Tribunal recorrido forme a sua convicção, fixando a matéria de facto provada.
Improcede o vício imputado pelos recorrentes.

Uma nota final:
Não se pode ignorar que a actuação do 2.º recorrido não foi correcta, pois se constata na factualidade apurada nos autos que, depois de receber a chamada telefónica do colega, ele devia ter ido observar o menor (resposta ao quesito 31.º-C da base instrutória), devia ter mantido a intubação traqueal ao menor a qual não devia ter sido substituída pela máscara respiratória (resposta ao quesito 31.º-D da base instrutória) e não devia ter saído da sala de reanimação da Urgência Pediátrica (resposta ao quesito 31.º-E da base instrutória).
No entanto, também é de salientar que, tal como se pode ler na decisão de primeira instância e no acórdão ora recorrido, o Tribunal de primeira instância deu como não provados os quesitos que abordam a questão do nexo de causalidade entre a morte do filho dos recorrentes e as acções e omissões do 2.º recorrido, tendo dado uma explanação muito pormenorizada sobre a decisão dessa matéria, com análise das provas produzidas, incluindo o relatório de autópsia e as declarações prestadas pelas testemunhas.
E considera o Tribunal ora recorrido que não se vislumbra qualquer erro por parte do Tribunal de primeira instância na apreciação dessa parte da matéria de facto, não havendo razão alterar a resposta negativa dada aos quesitos em causa (cfr. fls. 2227 a 2228 dos autos).
Assim, face à confirmação da matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de primeira instância e aos poderes de cognição do Tribunal de Última Instância (acima já referidos), afigura-se que, não obstante as omissões indicadas por parte do 2.º recorrido, é de concluir pela não verificação de nexo de causalidade entre o dano e os factos, um dos pressupostos necessários para a fixação de indemnização pretendida pelos recorrentes.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.

Macau, 22 de Abril de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 215.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 27 de Novembro de 2002, Proc. n.º 12/2002.
3 Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª edição, p. 278.
4 Cfr. Ac. do TUI, de 2 de Junho de 2004, 24 de Março de 2004 e 29 de Junho de 2005, Proc.s n.º 17/2003, 5/2004 e 3/2005, entre outros.
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Processo n.º 128/2019