打印全文
Processo n.º 357/2021 Data do acórdão: 2022-4-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– reenvio do processo para novo julgamento
– erro notório na apreciação da prova
– livre convicção sobre os factos
– violação de regras de experiência
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova, quando a livre convicção do tribunal sobre os factos tiver sido formada com violação patente, por exemplo, de regras da experiência.
2. Verificado este vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, é de ordenar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos permitidos do art.o 418.o do mesmo Código.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 357/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido: Arguido A







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a sentença proferida a fls. 56 a 59 do Processo Comum Singular n.° CR5-20-0408-PCS do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base que absolveu o arguido A da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de uso de documento falso, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 3, da Lei n.o 6/2004, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, apontando a essa decisão absolutória o vício de erro notório na apreciação da prova mormente na parte em que se julgou não provado o conhecimento, pelo arguido, do carácter da falsidade do passaporte em questão nos autos, para rogar o reenvio do processo para novo julgamento (cfr., com mais detalhes, a motivação apresentada a fls. 64 a 67 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o arguido (a fls. 69 a 74 dos presentes autos) a defender a manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 83 a 84v dos autos), opinando pela procedência do recurso, com condenação e punição directa do arguido, ou, se fosse necessário, com reenvio do processo para novo julgamento.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Segundo a matéria de facto provada em primeira instância:
– em data não determinada, o arguido A adquiriu um Passaporte da Guiné-Bissau, com A como titular, com XXX como número e com 2 de Junho de 2018 como data de emissão;
– em 11 de Março de 2020, o arguido apanhou, de Vietname, voo e chegou a Macau;
– cerca das duas horas da madrugada desse mesmo dia, o arguido, ao tratar das formalidades de entrada no posto fronteiriço do Aeroporto Internacional de Macau, exibiu ao guarda policial o referido passaporte;
– o guarda policial descobriu que esse passaporte tinha irregularidades por ter letra desfocada e não conseguir passar pela leitora de dados óptico, pelo que procedeu à investigação;
– da confirmação pedida à Embaixada da Guiné-Bissau em Beijing, resulta que o referido passaporte era falsificado;
– o arguido, para além do processo ora em causa, não tem antecedentes criminais.
2. Por outro lado, o Tribunal recorrido considerou não provado o seguinte:
– (como facto acusado 6:) o arguido, para entrar em Macau, usou intencionalmente passaporte falsificado da Guiné-Bissau, conduta dele essa que afectou a fé pública desse tipo de documentos e a segurança e confiança transmitidas pelo mesmo tipo de documentos em relações gerais, bem como prejudicou os interesses da Região Administrativa Especial de Macau e de terceiros;
– (como facto acusado 7:) o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o intuito de praticar a conduta acima referida;
– (como facto acusado 8:) o arguido sabia claramente da ilegalidade e punibilidade da sua conduta.
3. Na fundamentação probatória da sentença recorrida, o Tribunal recorrido julgou sobretudo que não era possivel dar por provada, sem dúvida razoável, a aquisição, por via não apurada, do passaporte pelo arguido, nem provado o conhecimento já pelo arguido, no momento da aquisição do passaporte, do carácter falsificado deste.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A Digna Delegada do Procurador ora recorrente imputa à decisão absolutória penal recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal, opinando que o resultado do julgamento dos factos a que chegou o Tribunal recorrido, na parte relativa à entendida não comprovação da aquisição, por meio não apurado, do passaporte pelo arguido e à não comprovação do conhecimento, pelo arguido, do carácter falsificado do passaporte, violou as regras da experiência.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova, quando a livre convicção do tribunal sobre os factos tiver sido formada com violação patente, por exemplo, de regras da experiência.
No caso, aos olhos de qualquer homem médio colocado na situação concreta dos autos, um passaporte com irregularidades na letra (por ter letra desfocada) que não consegue passar pela leitora de dados óptico já aparenta sinais de falsificação, isto porque qualquer eventual defeito na impressão ou inscrição de dados identificativos do titular do passaporte deve ter sido logo verificado pelo titular do passaporte ou por seu representante (por se tratar de um documento de viagem muito importante) aquando do levantamento do mesmo documento após a sua emissão pelas Autoridades legais competentes, já que ditam as regras da experiência que ninguém, como pessoa cumpridora da lei, está disposto a usar um passaporte com defeito na impressão dos seus dados de identificação para viajar, com o risco de não ser admitido em posto fronteiriço do local de destino da sua viagem, com todos os inconvenientes e perda de tempo e dinheiro daí advenientes.
Assim sendo, por verificação efectiva do vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, é de ordenar o reenvio do processo para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base nos termos permitidos do art.o 418.o, n.os 1 e 2, do CPP, mas apenas em relação àqueles factos acusados não dados por provados na sentença recorrida (i.e., somente a respeito dos factos acusados 6, 7 e 8, e da circunstância fáctica descrita com os termos “por via não apurada” no facto acusado 1 sobre a via de aquisição do passaporte).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o processo para novo julgamento, mas apenas em relação aos factos então acusados mas não dados provados na sentença ora recorrida.
Custas do recurso pelo arguido (por ter ele defendido a não procedência do recurso), com duas UC de taxa de justiça e mil e duzentas patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa (pelo trabalho desta por causa da presente lide recursória).
Macau, 28 de Abril de 2022.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator) (com declaração de voto, não vencido, de que se afigurar também possível, sobretudo com recurso ao mecanismo dos art.os 342.o e 344.o do Código Civil, decidir, no presente recurso, do mérito da acusação, no sentido de condenação do arguido, como autor material de um crime consumado de uso de documento falso, p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 3 (com referência ao n.o 1), da Lei n.o 6/2004).
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



Processo n.º 357/2021 Pág. 7/7