Processo nº 3/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (乙), A., com os restantes sinais dos presentes autos, propôs, no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum ordinário contra, “C”, (“丙”), “D”, (“丁”), e “A”, (“甲”), pedindo a condenação das (1ª, 2ª e 3ª) RR. no pagamento solidário a seu favor de MOP$18.388.899,00 e juros; (cfr., fls. 2 a 17 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo (CV1-13-0074-CAO) seguiu os seus normais termos – com o pedido de intervenção provocada de F (己) que foi deferido, (cfr., fls. 368 e 368-v), assim como com a elaboração do despacho-saneador; (cfr., fls. 424 a 429-v) – e, oportunamente, após, audiência de julgamento e prolação de Acórdão sobre a matéria de facto considerada provada, (cfr., fls. 740 a 745 e 749 a 749-v), por sentença de 08.02.2017 foi a acção julgada (totalmente) improcedente; (cfr., fls. 757 a 763).
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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs o A., proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 13.09.2018, (Proc. n.° 840/2017), onde se decidiu “anular a sentença de 1ª Instância mandando repetir o julgamento”; (cfr., fls. 906 a 922-v).
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Inconformada, a (3ª) R. “A” recorreu, (cfr., fls. 935 a 947), e, por Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 24.04.2019, (Proc. n.° 32/2019), concedeu-se provimento ao recurso, revogando-se o veredicto recorrido para ser substituído por outro que conhecesse do mérito do recurso pelo A. interposto; (cfr., fls. 1022 a 1028).
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Na sequência do assim decidido proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 11.07.2019, (Proc. n.° 840/2017), onde, na procedência do aludido recurso, julgou procedente a acção pelo A. proposta, condenando as (1ª, 2ª e 3ª) RR. no pedido deduzido; (cfr., fls. 1038 a 1060).
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Do assim decidido traz (novamente) a referida (3ª) R. “A” o presente recurso, produzindo, a final das suas alegações, as conclusões seguintes:
“ 1.°
Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 11 de Julho de 2019, que revogou a sentença de 1.ª instância e julgou procedente a acção, condenando as Rés a restituir, solidariamente, ao Autor a quantia de HKD17,853,300.00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação, à taxa anual legal de 9,75%, até efectivo e integral pagamento.
2.º
Ora, ressalvado o devido respeito, que é muito, pelo trabalho e ciência do Tribunal de Segunda Instância, não pode a 3.ª Ré, aqui Recorrente, conformar-se com a decisão recorrida, não só porque a mesma se encontra ferida de nulidade nos termos do artigo 571.º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil (CPC), mas também pela presença de erros de julgamento decorrentes da aplicação do artigo 31.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e da violação dos artigos 434.º, n.º 2 e 370.º, n.º 2, ambos do CPC, e bem como pela aplicação e interpretação incorrectas dos normativos expressos no artigo 410.º, n.º 3 do CPC, e no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 apresentadas pelo Tribunal a quo na decisão recorrida.
3.º
A decisão recorrida modificou a resposta dada, em 1.ª Instância, ao Quesito 11.º de "não provado" para "Provado", não apresentando qualquer fundamento de facto ou direito para fundamentar a alteração à resposta, contrariamente à metodologia utilizada na alteração das respostas aos restantes quesitos objecto da modificação da decisão de facto.
4.º
Nos termos dos artigos 108.º e 562.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis às decisões em sede recursória ex vi artigo 631.º, n.º 2 do CPC, impende sobre o Tribunal a quo o dever de fundamentar as decisões por si tomadas. Sendo que, o artigo 571.º, n.º 1 al. b) do CPC consagra a nulidade da sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
5.º
O Tribunal a quo modificou a resposta ao Quesito 12.º - Nem prazo de duração do mesmo? - de "não provado" para "Provado", justificando que "[a] experiência diz-nos que neste tipo de contas, o seu titular pode proceder ao levantamento ou ao depósito a qualquer momento e sem prazo".
6.º
O recurso pelo Tribunal a quo, à sua experiência que caracteriza como de quem "sabe mais ou menos como funcionam as salas de casino VIP", para dar como provado um facto relativo a um contrato individual celebrado entre privados, não é subsumível no conhecimento geral do cidadão comum.
7.º
O douto Tribunal a quo ao não apresentar ou facultar a prova do conhecimento que no contrato celebrado entre o Autor e a(s) Ré(s) não foi estabelecido qualquer prazo de duração do mesmo viola o artigo 434.º, n.º 2 do CPC.
8.º
A decisão recorrida condena solidariamente as 1.ª e 2.ª Rés à devolução do saldo da conta ao Autor, ao abrigo dos artigos 31.º e 32.º, al. 5) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e com fundamento no facto "que ficou provado que [Autor] mantinha conta de depósito de fichas com as 1.ª e 2.ª Rés e nele havia saldo positivo" (v. págs. 36 a 38 da decisão recorrida).
9.º
Da matéria de facto resulta que o Autor era cliente da sala de jogo VIP D sita no E Club (v. alínea I) dos factos assentes, reproduzida a pág. 23 da decisão recorrida), e que as 1.ª e 2.ª Rés são pessoas jurídicas distintas e diferenciadas, e contratadas pela 3.ª Ré para operar em espaços físicos distintos (v. alíneas B), E), F) e G) dos factos assentes, reproduzidas a pág. 23 da decisão recorrida).
10.°
A decisão recorrida considerou "[o] contrato de depósito que o [Autor] celebrou com a 1.ª Ré".
11.°
Da matéria de facto não resulta que entre as 1.ª e 2.ª Rés existe qualquer relação subsumível na previsão do artigo 31.° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 que fundamente a existência de solidariedade entre estas perante o Autor.
12.°
A decisão recorrida procedeu à modificação da resposta dada aos Quesitos 16.° e 18.° pelo Tribunal de 1.ª Instância relativamente ao quantum do crédito do Autor sobre as Rés. Nesse âmbito, o Tribunal a quo alterou a resposta dada em sede de 1.ª instância de "Não Provado" para "Provado que o Autor foi depositando na sua conta mais dinheiro junto da sala de jogo D, o depósito total em 15/03/2012 ascendia a HKD17,853,300.00 (fls. 117 dos autos)".
13.°
No entender da decisão recorrida prova documental constante de fls. 117 dos autos é escrituração comercial, cujo conteúdo não foi contrariado pelas partes.
14.°
No entanto, o referido documento revela que, após a data indicada na resposta dada pelo Tribunal a quo aos quesitos 16.° e 18.° foi efectuado, em 16 de Março de 2012, um levantamento adicional que reduziu o saldo positivo na conta do Autor para HKD3,853,300.00.
15.º
Considerando que a decisão recorrida não admitiu como provado qualquer facto que questionasse ou pusesse em causa a validade do levantamento datado de 16 de Março de 2012, jamais o douto Tribunal a quo poderia "escolher" em que lançamento de débito ou crédito poderia deixar de ler ou considerar o documento.
16.º
A decisão recorrida, na resposta dada aos Quesitos 16.º e 18.º, ao localizar temporalmente (15 de Março de 2012) o saldo do Autor num ponto anterior ao da última entrada registada no documento que fundamenta tal decisão fáctica, não só viola de forma clamorosa o disposto no artigo 370.º, n.º 2 do CPC, como também contradiz o seu próprio raciocínio relativo à aplicação da regra da indivisibilidade da declaração.
17.º
A decisão recorrida julgou que a Recorrente, apesar de não ser parte no contrato de depósito celebrado entre o Autor e 1.ª Ré, não pode alegar não ter obrigação de o conhecer, na medida em que, nos termos da Lei n.º 16/2001 e os artigos 30.º e 32.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, sobre si impende a obrigação legal de fiscalizar a actividade das 1.ª e 2.ª Rés, promotoras de jogo por si contratadas para exercer a sua actividade própria nos casinos da Recorrente.
18.º
Salvo o devido e maior respeito por opinião contrária e o trabalho e ciência do Tribunal de Segunda Instância, aplicação do artigo 410.º, n.º 3 do CPC, com o recurso à argumentação da obrigação legal de conhecer assume-se como uma tentativa de contornar e esvaziar de conteúdo a decisão expressa por este Tribuna de Última Instância no seu Acórdão de 24 de Abril de 2019 (proc. n.° 32/2019 vindo dos presentes autos).
19.º
A decisão do Tribunal de Última Instância teve em consideração todas as soluções possíveis de direito considerado a qualidade, natureza e relação das Rés, incluído necessariamente, a imposta pelo artigo 410.º, n.º 3 do CPC. E, não obstante, julgou que a confissão das 1.ª e 2.ª Rés não releva relativamente à 3.ª Ré, não admitindo a utilização desta.
20.º
De qualquer forma, a Recorrente não pode aceitar a interpretação que o douto Tribunal a quo faz do alcance e conteúdo da obrigação de fiscalizar e supervisionar a actividade dos promotores de jogo constate do artigo 30.º, al. 5) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 e que a mesma se consubstancie numa obrigação legal de conhecer a relações contratuais entre os promotores de jogos e os seus clientes.
21.º
O artigo 410.º, n.º 3 do CPC assenta numa regra de experiência para presumir a confissão de um facto que a parte devia conhecer mas afirma desconhecer.
22.º
A análise por parte do Tribunal a quo sobre se a Recorrente não poderia ignorar determinados factos relacionados com a actividade dos promotores de jogo é sindicável por este Tribunal de Última Instância.
23.º
O artigo 30.º, al. 5) do Regulamento Administrativo consagra a obrigação das concessionarias e subconcessionárias de jogo de "fiscalizar a actividade dos promotores de jogo, nomeadamente quanto ao cumprimento das suas obrigações legais, regulamentares e contratuais".
24.º
Porém, o ordenamento jurídico não oferece à concessionária fiscalizadora as ferramentas e mecanismos necessários ao cumprimento da obrigação imposta nos temos exigido pela decisão recorrida.
Com efeito,
25.º
O artigo 52.º do Código Comercial confere à escrituração comercial do promotor do jogo (da qual, no entender da decisão recorrida, faz parte o documento de fls. 112 a 117 dos autos) caracter secreto, que o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 ou qualquer outro diploma não afastam.
26.º
O Regulamento Administrativo, no seu artigo 32.º, al. 4), apenas obriga o promotor de jogo a disponibilizar todos os livros e documentos da sua escrituração comercial, incluído a facultação de todos os elementos e informações solicitados, à Direcção de Inspecção e Coordenação e jogos e à Direcção dos Serviços de Finanças.
27.º
Mais, o artigo 21.º, n.° 1 do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 apenas prevê o levantamento do dever de sigilo imposto ao promotor de jogo relativamente a informações prestadas no exercício das respectivas competências às autoridades e órgãos de polícia criminal, às autoridades policiais e judiciais, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos e à Direcção dos Serviços de Finanças.
28.º
Ou seja, não obstante lei ter imposto à concessionária um dever de fiscalização da actividade dos promotores de jogo, não logrou levantar o caracter secreto e sigiloso ou sequer obrigar o fiscalizado a colaborar como fiscalizador.
29.º
Pelo que não poderá resultar da lógica e da experiência que esta não poderia ignorar o conteúdo ou sequer existência da relação contratual havida entre o Autor e as 1.ª e 2.ª Rés.
30.º
Por último, considerou a decisão recorrida que a Recorrente é solidariamente responsável, perante o Autor, pelas actividades desenvolvidas nos casinos pelas 1.ª e 2.ª Rés, promotoras de jogo, seus administradores e colaboradores, por força do disposto no artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002.
31.º
No entanto, e ressalvado o devido respeito por opinião diversa, a leitura que o Tribunal a quo faz daquela disposição é incorrecta, pois que ela deve ser integrada sistematicamente, no contexto dos diversos diplomas legais que constituem o regime jurídico da exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino.
32.º
Com o Regulamento Administrativo n.° 6/2002 pretendeu-se regulamentar ou concretizar as disposições legais constantes da Lei n.° 16/2001, o que o configura como um regulamento administrativo complementar, nos termos do que, hoje, dispõe o n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 13/2009.
33.º
Ao regulamento administrativo complementar compete estabelecer as concretizações necessárias à execução de leis, pelo que terá de ser interpretado em consonância com a lei que pretende complementar ou concretizar. Desse modo, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002 jamais poderia extravasar o âmbito e o objecto de aplicação das disposições constantes da Lei n.º 16/2001.
34.º
Atendendo o diploma legal de base, verifica-se que o artigo 23.º da Lei n.º 16/2001 estabelece as cominações legais atinentes aos promotores de jogo.
35.º
Com relevância para o litígio, do n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001, resulta que: (a) Existe uma cláusula de responsabilidade atribuída às concessionárias pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento, por parte deles, das normas legais e regulamentares; e, (b) Tal responsabilidade das concessionárias existe, apenas e tão-só, para com o Governo.
36.º
Dest’arte, o Regulamento Administrativo n.° 6/2002 é um mero regulamento administrativo complementar, nos termos supra expostos. Dessa forma, a disposição constante do artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 deve ser lido e interpretado como concretizando a cláusula de responsabilidade prevista no n.° 3 do artigo 23º da Lei n.º 16/2001, responsabilidade essa estabelecida, única e exclusivamente, a favor do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
37.º
Não se retira da Lei n.º 16/2001 que essa mesma cláusula de responsabilidade das concessionárias pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo, seus administradores e colaboradores e pelo cumprimento por parte deles das normas legais e regulamentares, fosse estabelecida a favor de toda e qualquer pessoa.
38.º
A intenção do legislador é clara e expressa, quando estatui que tal responsabilidade apenas existe, nos termos do n.º 3 do artigo 23.º da Lei n.º 16/2001, perante o Governo.
39.º
Fora estes casos, a responsabilidade contratual ou extracontratual que possa existir das concessionárias terá obrigatoriamente de ser integrada pelos requisitos legais gerais, que no caso não se verificam.
40.º
Por outro lado, o artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.° 6/2002 é claro quando circunscreve a responsabilidade solidária das concessionárias pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes.
41.º
Nos termos da lei, considera-se de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária.
42.º
A actividade de recepção de depósitos não constitui, pois, uma actividade típica de promoção de jogos.
43.º
Os depósitos sub judtce não se integram na actividade de promoção de jogo, não se pretendendo trazer clientes ao casino, para ali promover a actividade de jogo ou aposta.
44.º
A referida norma do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 exige também, para que se verifique a responsabilidade, que a actividade em causa seja desenvolvida "nos casinos".
45.º
Essa referência à actividade desenvolvida "nos casinos" deverá ser, igualmente interpretada no sentido de que a actividade aqui relevante é aquela que se destina a promover a actividade do casino, não outra qualquer actividade acessória do promotor de jogo, desenvolvida fora do âmbito do casino”; (cfr., fls. 1076 a 1111).
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Em resposta, pugna o A. B pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 1121 a 1155).
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Corridos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência.
Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como “provados” os factos seguintes:
“a) O Autor reside na República Popular da China e, pelo menos, durante o ano de 2012 visitou Macau, diversas vezes, para frequentar os casinos que operam no Território;
b) As 1ª e 2ª Rés são sociedades comerciais constituídas e registadas em Macau, cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, estando, para o efeito, devidamente licenciadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 18 a 38 e 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
c) A 3ª Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
d) No âmbito da sua actividade comercial a 3ª R. opera o Casino E instalado no [Hotel(1)] sito em [Endereço(1)];
e) As 1ª e 2ª Rés celebraram contratos de promoção de jogo com a 3ª Ré e, ao abrigo dos mesmos, exerceram a respectiva actividade nas instalações de casinos operados e explorados por esta, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls, 53 a 79 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
f) Ao abrigo dos referidos contratos de promoção de jogo, a 1ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 831 e 833, correspondentes às salas “Singapura” e “Bangkok”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino E;
g) Ao passo que a 2ª R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro a 16 de Março de 2012 nos pits nºs 837 e 839, correspondentes às salas “Kunming” e “Harbin”, respectivamente, ambas sitas no nível 1 do casino E;
h) O Autor frequentou o Casino E, pelo menos, nos dias compreendidos entre 25 de Fevereiro e 2 de Março de 2012;
i) No casino A, o Autor era cliente da sala de jogo VIP D sita no E Club;
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
k) A 3ª Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo nº 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
l) A 1ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
m) Posteriormente, a 3ª Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
n) Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o nº CR2-12-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos G e H, e no qual a 1ª e 2ª RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos;
o) A 3ª Ré tinha contratado as 1ª e 2ª Rés para promover jogos de fortuna ou azar nos seus casinos”; (cfr., fls. 425 a 426-v e 746 a 748, notando-se que
a matéria das “alíneas a) a n)” era a que no despacho-saneador foi considerada “assente”, e que a ínsita na “alínea o)” integrava o quesito n.° 10 da base instrutória que veio a ser considerada “provado” em sede de reclamação do A.).
Do direito
3. O presente recurso tem como objecto o (2°) Acórdão nestes autos pelo Tribunal de Segunda Instância proferido em 11.07.2019, e, como se extrai das suas conclusões atrás transcritas, coloca a recorrente (3ª R.) “A” questões relacionadas com a decisão – de alteração – da “matéria de facto” e de “direito” ínsitas no aresto recorrido.
Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
Pois bem, antes de mais, adequada se apresenta uma breve “nota preliminar” para se explicitar (ainda que abreviadamente) o sentido do que nestes autos foi decidido.
Em sede da 1ª Instância, decidiu o Tribunal Judicial de Base negar provimento à acção pelo A. proposta, absolvendo as (1ª, 2ª e 3ª) RR. dos pedidos deduzidos.
Entendeu, em síntese, que a factualidade que do julgamento resultou “provada” era totalmente insuficiente para sustentar uma decisão condenatória como a pelo A. pretendida.
Em sede do recurso que do assim decidido interpôs o A., e com o Acórdão ora recorrido de 11.07.2019, acabou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância por inverter parte da “decisão da matéria de facto”, e, considerando “provada” a matéria de vários quesitos da base instrutória, (pelo Tribunal Judicial de Base antes julgados “não provados”), proferiu a “decisão condenatória” agora impugnada, em relação à qual, e como já se referiu, considera a ora recorrente, a (3ª R.) “A”, que a mesma padece de vícios vários que identifica nas já referidas conclusões do seu recurso.
Ora, ponderando na (natureza) das questões trazidas à apreciação deste Tribunal de Última Instância, e no intuito de se (tentar) proporcionar uma cabal compreensão do que levou o Tribunal de Segunda Instância a proferir o Acórdão agora recorrido, útil se apresenta desde já de aqui se transcrever, (na parte que agora releva), o seu teor:
“Como o presente recurso tem objecto a sentença recorrida, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:”
(…)
“Cumpre assim apreciar e decidir.
Em síntese invoca o Autor ter celebrado com as duas primeiras Rés um contrato de acordo com o qual teria depositado determinadas quantias em conta aberta para o efeito, nas salas VIP operadas por estas em Casino da terceira Ré, sendo que, reclamando o pagamento do saldo da conta a seu favor, as Rés não o fizeram pelo que, sustentando a responsabilidade solidária entre as mesmas, vem pedir a condenação destas a pagarem-lhe o montante que considera devido.
Porém, da prova produzida não resultou demonstrado que o Autor haja celebrado com as Rés contrato algum, nem que haja depositado nas salas VIP operadas por estas quantia alguma e muito menos que a respectiva conta tivesse saldo positivo a seu favor (do Autor) e qual o valor do mesmo.
Destarte, à mingua de prova dos factos que integram a causa de pedir do Autor fica prejudicada a apreciação jurídica das questões a decidir, havendo apenas que julgar a causa improcedente.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos julga-se a acção improcedente porque não provada e em consequência absolvem-se as Rés do pedido.
Custas a cargo do Autor.
Registe e Notifique.
Macau, 8 de Fevereiro de 2017.
Quid Juris?
Além disso, importa ver também o que ficou decidido no venerando acórdão do TUI”; (que, no caso, é o datado de 24.04.2019, Proc. n.° 32/2019).
“No anterior acórdão e no plano dos factos, detectamos que estes considerados provados, em si, contêm contradições, porque eles remetem para documentos juntos aos autos, e o teor destes contradiz o que o Tribunal a quo veio a dizer! É nesta lógica que afirmamos que existem contradição entre as provas, os factos considerados assentes e as decisões respectivas.
Em cumprimento do decidido pelo TUI, comecemos pela matéria de facto, impugnada pelo Recorrente neste recurso.
No entender deste, o Tribunal de 1ª instância recorrido avaliou incorrectamente as provas juntas aos autos, de modo a que ficaram não provados os seguintes factos:
Os factos constantes dos artigos 8.º, 11.º, 12.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º da base instrutória.
Tais quesitos têm as seguintes redacções:
8º
Em 14 de Fevereiro de 2012, o Autor começou por depositar naquela sala de jogo a quantia de HKD3.350.000,00 (três milhões, trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong)?
11º
Não foi estipulada qualquer remuneração a pagar às Rés pelo depósito?
12º
Nem qualquer prazo de duração do mesmo?
15º
Durante os meses de Fevereiro e Março de 2012, o Autor usufruiu dos jogos de fortuna ou azar disponibilizados pela 3ª Ré na sala de jogo D, utilizando sempre os montantes aí depositados?
16º
O Autor foi depositando mais dinheiro junto da sala de jogo D, chegando a ter aí um depósito de HKD30.600.000,00, no dia 18 de Fevereiro de 2012?
18º
Nesse dia 16 de Março de 2012, o depósito do Autor junto da sala de jogo D ascendia a HKD17.853.300,00?
19º
Os administradores das 1ª e 2ª Rés informaram o Autor que os seus funcionários tinham levantado parte do depósito do Autor?
21º
Aqueles funcionários das 1ª e 2ª Rés levantaram HKD14.000.000,00 do depósito do Autor?
22º
Quanto aos remanescentes HKD3.853.300,00, os administradores das 1ª e 2ª Rés informaram que também não tinham esse montante disponível para restituir ao Autor?
Lidos com atenção os elementos probatórios juntos aos autos, verifica-se que efectivamente eles não foram devidamente valorados, principalmente o teor da certidão de fls. 112 a 117 dos autos, extraído do processo-crime nº CR2-12-0196-PCC (estando os originais nesse processo, que dá respostas aos quesitos acima transcritos.
Pelo que, é de revalorar tais elementos e responder aos quesitos em conformidade.
8º
Em 14 de Fevereiro de 2012, o Autor começou por depositar naquela sala de jogo a quantia de HKD3.350.000,00 (três milhões, trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong)?
PROVADO conforme o teor de fls. 113 da certidão referida (cfr. a confissão pelas Rés no artigo 1º da contestação, quanto à utilização do nome da 1ª Ré nos registos de depósitos e levantamentos de fichas).
11º
Não foi estipulada qualquer remuneração a pagar às Rés pelo depósito?
Provado.
12º
Nem qualquer prazo de duração do mesmo?
Provado.
A experiência diz-nos que neste tipo de contas, o seu titular pode proceder ao levantamento ou ao depósito a qualquer momento e sem prazo.
15º
Durante os meses de Fevereiro e Março de 2012, o Autor usufruiu dos jogos de fortuna ou azar disponibilizados pela 3ª Ré na sala de jogo D, utilizando sempre os montantes aí depositados?
Provado que durante os meses de Fevereiro e Março de 2012, o Autor usufruiu dos jogos de fortuna ou azar disponibilizados pela 3ª Ré na sala de jogo D, utilizando sempre os montantes aí depositados conforme o teor de fls. 113 a 117 da certidão (cfr. a confissão pelas Rés no artigo 1º da contestação).
16º
O Autor foi depositando mais dinheiro junto da sala de jogo D, chegando a ter aí um depósito de HKD30.600.000,00, no dia 18 de Fevereiro de 2012?
18º
Nesse dia 16 de Março de 2012, o depósito do Autor junto da sala de jogo D ascendia a HKD17.853.300,00?
Respondemos a estes 2 quesitos em conjunto:
16º e 18º:
Provado que o Autor foi depositando na sua conta mais dinheiro junto da sala de jogo D, o depósito total em 15/03/2012 ascendia a HKD17.853.300,00. (fls. 117 dos autos).
Quantos aos quesitos 19º, 21º e 22º, como não se encontram elementos sobre esta matéria, mantêm-se as respostas NEGATIVAS.
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Aqui, relembre-se o que anteriormente afirmamos na nossa decisão que continua a ser válido agora:
1) – 1º aspecto: Factos assentes que o Tribunal a quo assim considera, face aos elementos juntos aos autos:
c) A 3ª Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
(…)
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
k) A 3ª Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo nº 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
l) A 1ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
m) Posteriormente, a 3ª Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
n) Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o nº CR2-12-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos G e H, e no qual a 1ª e 2ª RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
(…)
Ora, os factos assentes acima alinhados remetem sistematicamente para o teor dos documentos aí referidos, mas, repare-se, tais documentos não são cartas de interpelação do cumprimento de obrigações, mas sim “documentos comprovativos (papéis) de depósitos e levantamentos de fichas” da sala do casino VIP (em chinês, popularmente designam-se por “存 碼 紙” “Chun Ma Zhi”).
Para quem sabe mais ou menos como funcionam as salas de casino VIP, sabe perfeitamente que é este método utilizado na maioria das salas do casino VIP (senão todas) para os “jogadores grandes” (e frequentes). É o que resulta da análise dos documentos juntos aos autos (fls. 66 a 70), mormente dos contratos firmados entre a concessionária e os exploradores das salas do casino VIP e de tais “papeis” (comprovativos de depósito e levantamento de fichas).
No caso em apreciação, todos estes “papeis” são elaborados em chinês, quando o Tribunal a quo para eles remete, sem que os analisasse com atenção, incorreu na apreciação errada de provas, e consequentemente deu origem a contradições.
Neste ponto, importa atender a 2 preceitos legais do CPC que disciplinam a matéria em causa. O artigo 558º (Princípio da livre apreciação das provas) do CPC manda:
1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.
Depois, o artigo 436º (Princípio da aquisição processual) do mesmo Código prescreve:
O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.
Vejamos a matéria discutida nos autos e citemos um exemplo:
O facto provado constante da alínea j) tem o seguinte teor:
j) A 2ª Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos; (destaque nosso)
A redacção deste facto é um pouco ambígua, pois, pergunta-se:
a) – O facto em causa quer significar que o conteúdo de fls. 86 a 93 está de todo em todo considerado provado? Ou
b) – Quer simplesmente dizer que o valor final (montante total, líquido, ora reclamado pelo Autor/Recorrente) que é considerado provado? Porque nestes documentos encontram-se registados vários levantamentos e depósitos de fichas da conta aberta em nome do Recorrente/Autor.
Salvo o melhor respeito, parece-se que tal redacção engloba as 2 ideias referidas. Assim, é seguro afirmar-se que, quando o Tribunal remete para o teor dos documentos aí indicados, significa que (está certo este raciocínio) está provado o montante reclamado pelo Recorrente/Autor, uma vez que a 1ª e a 2ª Ré não chegaram a impugnar com sucesso estes factos, nem negaram a veracidade dos documentos em causa, pelo que, há lugar à aplicação do artigo 370º/2 (Força probatória) do CCM, que dispõe:
1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
Reparem, tais documentos, de escrituração mercantil, são elaborados em papéis timbrados da 1ª Ré (tal como confissão feita no artigo 1º da contestação) com carimbo da mesma e assinatura de empregados seus.
Aceitando-se a veracidade desses documentos, como estes demonstram que o Recorrente chegou efectivamente a depositar e levantar fichas junto das 1.ª e 2ª Rés nos períodos a que se referem esses mesmos documentos, então há-de ser atendido o pedido do Recorrente!
Eis uma contradição entre a decisão e as provas e os factos considerados assentes pelo próprio Tribunal a quo.
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Passemos agora a ver o 2º Aspecto: factos inseridos na base instrutória e a respectiva resposta.
Feita a audiência de julgamento, o Tribunal a quo deu uma resposta “economista”: “TUDO NÃO PROVADO”.
Pergunta-se: será mesmo que todos os factos quesitados ficaram não provados? Se assim for, não existirá contradição entre a decisão e as provas juntas aos autos e a resposta dada?
Repare-se, o Tribunal não deve valorar somente o depoimento das testemunhas, tem de conjugá-lo com os elementos igualmente juntos aos autos.
Ora, o Tribunal deu resposta negativa porque genericamente invoca que as testemunhas ouvidas não chegaram a precisar os pontos perguntados. Mas, repare-se, se se a testemunha conseguisse afirmar que, no dia X o Recorrente chegou a depositar a quantia X (em número exacto) na conta do Recorrente aberta na sala de jogo VIP (2ª Ré), não devíamos duvidar do seu depoimento? Porque é que conseguiu pormenorizar as coisas? Nesta circunstância, fazendo apelo aos padrões normais da experiência de vida, em situações normais, todas as entradas e saídas de fichas devem ser registadas em livros adequados ou computadorizados, aliás nem o próprio interessado é que consegue precisar os números! Se o próprio interessado/Recorrente não consegui fazê-lo, como é que pode exigir-se o mesmo às testemunhas?
Pelo que, o Tribunal devia conjugar o depoimento da testemunha com os elementos documentais juntos aos autos, e não só atende ao depoimento das testemunhas e assim deu uma resposta, a qual é incompatível com os elementos já encontrados nos autos, nomeadamente o teor de fls. 113, que não foram contrariados ou impugnados pelas partes contrárias.
Assim, O Tribunal a quo devia valorar todas as provas já juntas aos autos nos termos fixados pelo artigo 370º/2 do CCM!
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O teor de fls. 113 a 114 dos autos demonstra efectivamente que o Recorrente/Autor tinha a conta sob o no. ZXXX, e efectuou vários depósitos e levantamentos de fichas durante o período de Fevereiro e de Março de 2012!
Reparem, mais uma vez, tais documentos (extraídos do processo-crime mediante certidão passada pelo funcionário competente) são escrituração comercial, cujo conteúdo não foi contrariado nem impugnado pelas partes.
Eis mais um exemplo que demonstra o erro cometido na apreciação das provas.
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Por último, também uma questão de raciocínio, que importa destacar nesta sede!
Se, conforme o quadro fáctico e jurídico desenhado pelo Tribunal a quo, a tese do Autor ficou provada, pelo menos no que toca aos depósitos e saldos na conta do Recorrente, e não ficou provada toda a matéria constante de base instrutória (cingido rigorosamente a este quadro pintado pelo Tribunal a quo), da qual se inclui a matéria de defesa à luz da qual as Rés invocaram que foi o Autor que autorizou que a Ré F pudesse movimentar os saldos da conta do Recorrente/Autor, levantando fichas e depositando fichas (esta versão também não ficou provada), nestes termos, o que resta é a versão contada pelo Recorrente/Autor, ou seja, os saldos deviam estar ainda na conta das 1ª e 2ª Rés, e consequentemente, em situação normal, estas não deviam restituí-los ao Recorrente/Autor??
Mas não foi nesse sentido que a sentença proferida seguiu, eis uma contradição entre as provas e a decisão final.
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Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 629º (Modificabilidade da decisão de facto) do CPC, que manda nos seguintes termos:
1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade.
Estamos em condições de conhecer do mérito?
Vejamos
Relativamente à responsabilidade das 1ª e 2ª Rés:
- Perante os factos assentes, sem dúvida que as 1ª e 2ª Rés são responsáveis perante o Autor.
Pois, o artigo 32º (Obrigações dos promotores de jogo) do Regulamento Administrativo Nº 6/2002, de 1 de Abril, dispõe:
Sem prejuízo de outras previstas no presente regulamento administrativo e em demais legislação complementar, constituem obrigações dos promotores de jogo:
1) Sujeitar-se à supervisão e fiscalização da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
2) Cumprir, na parte que lhes respeita, as disposições legais e regulamentares aplicáveis bem como as circulares e instruções emitidas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos;
3) Sujeitar-se às auditorias da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos e da Direcção dos Serviços de Finanças;
4) Manter à disposição da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos e da Direcção dos Serviços de Finanças todos os livros e documentos da sua escrituração mercantil e facultar-lhes todos os elementos e informações que sejam solicitados;
5) Cumprir todas as obrigações contratuais assumidas, nomeadamente com jogadores;
6) Respeitar as instruções da concessionária que não ponham em causa a sua autonomia;
7) Cumprir as obrigações emergentes do contrato celebrado com a concessionária;
8) Entregar à concessionária os documentos referidos no n.º 2 do artigo 17.º
O artigo 31º (Responsabilidade dos promotores de jogo) do mesmo RA estipula:
Os promotores de jogo são responsáveis solidariamente com os seus empregados e com os seus colaboradores pela actividade desenvolvida nos casinos por estes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis.
Os termos são tão claros como ar!
Uma vez que ficou provado que o Recorrente mantinha conta de depósito de fichas com as 1ª e 2ª Rés e nele havia saldo positivo, ele tem direito a pedir a sua restituição nos termos legais acima citados!
*
Responsabilidade da 3ª Ré com a 1ª e 2ª Rés:
A 3ª Ré invocou o artigo 370º/2 do CC, defende que tais efeitos desfavoráveis não lhe sejam aplicáveis, porque ela não era parte dos acordos nem sabia nem tinha obrigação de saber o que se passou entre o Autor e as 1ª e 2ª Rés.
Ora, afigurando-se, ainda, ao Recorrido, que, nos termos do n.º 2 do artigo 370.° do CC, está demonstrada a relação material que manteve com as 1ª e 2.ª Rés.
Sendo que, a 3ª Ré/Recorrida parece entender que o n.º 2 do artigo 370.° do CC deve ser conjugado com todo o regime da confissão, o que não tem suporte na letra da lei, que apenas remete para a indivisibilidade da declaração contida nos documentos, nos mesmos termos em que é indivisível a declaração de onde se retire uma confissão.
As declarações das 1.ª e 2.ª Rés são portanto suficientes para demonstrar os factos que consubstanciam a relação entre estas e a 3ª Ré/Recorrida, responsável subsidiária por força de disposição legal expressa - o artigo 29.° do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, de 1 de Abril.
Pelo exposto, a confissão das 1.ª e 2.ª Rés sempre seria válida e suficiente para conduzir aos provados factos que consubstanciam a relação entre aquelas e a 3a Ré/Recorrida, nos termos do n.º 2 do artigo 370.º do CC.
Sem prejuízo de tudo quanto foi dito, importa sublinhar que este Tribunal sustenta as conclusões não apenas com recurso à figura da confissão, mas também e sobretudo com base nos documentos que o Autor carreou para os autos.
*
Por outro lado, apesar de não ser parte no contrato de depósito que o Recorrente celebrou com a 1.ª Ré, a 3ª Ré/Recorrida não pode alegar não ter obrigação de o conhecer.
Com efeito, nos termos conjugados a Lei n.º 16/2001 e o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, designadamente os artigos 30.º e 32.º deste último diploma, impende sobre a 3ª Ré/Recorrida a obrigação legal de fiscalizar e supervisionar a actividade da 1.ª Ré, promotora de jogo que a 3ª Ré/Recorrida contratou para exercer a sua actividade própria nos seus casinos (cfr. artigo 10.º da base instrutória, confessado pela Recorrente);
Nos termos do n.º 3 do artigo 410.º do CPC: “Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento [...].” A Recorrente tem a obrigação legal de conhecer os factos em causa, designadamente que foi celebrado contrato de depósito entre o Recorrente e a 1.ª Ré e se esta recebeu e não devolveu as quantias indicadas pelo Recorrente, pelo que, a alegação de desconhecimento de tais factos equivale à respectiva confissão;
A matéria de facto em causa nos citados artigos da base instrutória está, ainda provada pelos documentos n.os 9 e 12 (certidão judicial do processo-crime n.º CR2-12-0196-PCC) juntos com a petição inicial, cuja genuinidade e veracidade não foram impugnadas pelas Rés.
*
O artigo 30.º (Obrigações das concessionárias) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, de 1 Abril, dispõe:
Sem prejuízo de outras previstas no presente regulamento administrativo e em demais legislação complementar, constituem obrigações das concessionárias:
1) Enviar, até ao dia 10 de cada mês, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, uma relação discriminada relativa ao mês antecedente dos montantes das comissões ou outras remunerações por si pagas a cada promotor de jogo, bem como dos montantes de imposto retidos na fonte, acompanhada de toda a informação necessária à verificação dos respectivos cálculos;
2) Enviar, em cada ano civil, de 3 em 3 meses, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos a lista referida no n.º 3 do artigo 28.º;
3) Comunicar à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos qualquer facto que possa afectar a solvabilidade dos promotores de jogo;
4) Manter em dia a escrita comercial existente com os promotores de jogo;
5) Fiscalizar a actividade dos promotores de jogo, nomeadamente quanto ao cumprimento das suas obrigações legais, regulamentares e contratuais;
6) Comunicar às autoridades competentes qualquer facto que possa indiciar a prática de actividade criminosa, designadamente de branqueamento de capitais, por parte dos promotores de jogo;
7) Proporcionar um relacionamento são entre os promotores de jogo junto dela registados;
8) Pagar pontualmente as comissões ou outras remunerações acordadas com os promotores de jogo;
9) Cumprir pontualmente as suas obrigações fiscais.
Luís Pessanha, in "O Jogo de Fortuna e Azar e a Promoção do Investimento em Macau" (publicado na Revista de Administração, n.º 77, Vol. XX, 2007/3, 847-888, páginas 878 e 879), defende:
"Importa ainda referir que os promotores de jogo apenas podem desempenhar a sua actividade em associação com um casino, o qual promovem junto do público e para o qual procuram angariar apostadores endinheirados (designados no jargão do sector do jogo como os "premium players"), o que leva a que se tenha considerado que se deva exigir que após o licenciamento, o promotor de jogo se deva registrar, anualmente, perante, pelo menos, um determinado sub/concessionário (vd. artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002), formalizando-se por escrito a relação entre o promotor e o respectivo sub/concessionário e dando-se cópia de tal contrato (e de qualquer outro entre estas partes que tenha um valor económico de pelo menos 1 milhão de patacas), à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (vd. artigo 24.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002).
[...]
Os sub/concessionário devem submeter anualmente, até 31 de Outubro do ano em curso, à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, uma lista nominativa dos promotores de jogo com os quais pretendam operar no ano seguinte (vd. artigo 28.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 6/2002). O que implica também que os sub/concessionários tenham a obrigação de manter uma lista actualizada dos promotores de jogo, respectivos administradores, principais empregados e colaboradores, que estejam registados junto deles (vd. artigo 28.º, n.º 3 do Regulamento Administrativo n.º 6/2002).
Este registo anual dos promotores de jogo junto do respectivo sub/concessionário não é uma mera formalidade, mas determina antes, uma verdadeira responsabilidade solidária dos sub/concessionários pela actividade desenvolvida nos casinos, pelos "seus" promotores de jogo, respectivos administradores e colaboradores (vd. artigo 29.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002). Os sub/concessionários devem proceder a uma fiscalização activa e diligente da actividade dos promotores de jogo e assegurar que estes dão o devido cumprimento às suas obrigações legais, regulamentares e contratuais, comunicando às autoridades competentes qualquer facto que possa indiciar a prática de actividade criminosa (nomeadamente, branqueamento de capitais por parte dos promotores de jogo) e assegurar a necessária correcção e urbanidade de relacionamento entre os promotores de jogo registados no mesmo sub/concessionário [...]." (destaque nosso)1.
Neste contexto, a Recorrente A, na sua qualidade de concessionária, não pode alegar que desconhece, sem obrigação de conhecer, a actuação dos promotores de jogo que contratou, sobretudo, quando as promotoras cessaram a sua actividade sem liquidar devidamente as dívidas para com os seus clientes.
Mais, quando o que está em causa são actos praticados e contratos celebrados dentro dos casinos que explora - como é o caso dos autos.
Não só a Recorrente tem a obrigação legal de fiscalizar toda a actuação dos promotores de jogo nos seus casinos,
Como, doutro passo, tem a obrigação de, perante um litígio ou potencial litígio, aferir os termos em que um promotor de jogo actuou nos seus casinos, tendo ao seu dispor todos os mecanismos contratuais e legais (e práticos, como sejam os sistemas de vigilância e segurança) para o efeito.
O que a 3ª Ré/Recorrida nunca pode é, na qualidade de concessionária, alegar que desconhece sem obrigação de conhecer a actuação dos promotores de jogo que contrata, dentro dos seus casinos.
Ou seja, o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, que regula a actividade dos promotores de jogo, estabelece, de forma mais abrangente, que as concessionárias (e subconcessionárias) são responsáveis solidariamente com os promotores de jogo pela actividade destes nos casinos.
(…)”; (cfr., fls. 1047-v a 1058-v).
3.1 Feita a transcrição que antecede, é chegado o momento de se passar a apreciar as “questões” pela ora recorrente trazidas à nossa decisão.
–– Porém, impõe-se-nos uma “nota prévia”.
Como atrás se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o (2°) Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 11.07.2019, (Proc. n.° 840/2017), prolatado na sequência do por este Tribunal de Última Instância decidido no Acórdão de 24.04.2019, (Proc. n.° 32/2019), que revogou o anterior (1°) Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 13.09.2018, com o qual se tinha decidido pela anulação da sentença do Tribunal Judicial de Base por se ter entendido padecer a mesma de “contradição”, ordenando-se a repetição do julgamento.
Constatando-se que no referido Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 24.04.2019 se decidiu que a sentença do Tribunal Judicial de Base não padecia da referida “contradição”, oportuno não nos parece que no veredicto agora recorrido se volte a incluir (grande) parte da fundamentação aduzida no (anterior) Acórdão (revogado) e que se destinava a justificar a decisão então tomada de anulação da sentença do Tribunal Judicial de Base (com base na aludida contradição), mostrando-se pois de considerar também esta forma de “repristinação” do antes considerado e entendido pouco desejável para a (boa) compreensão das verdadeiras “razões” da decisão agora recorrida.
Isto dito, e sem mais demoras, avancemos.
–– Começa a recorrente por dizer que:
“ 3.º
A decisão recorrida modificou a resposta dada, em 1.ª Instância, ao Quesito 11.º de "não provado" para "Provado", não apresentando qualquer fundamento de facto ou direito para fundamentar a alteração à resposta, contrariamente à metodologia utilizada na alteração das respostas aos restantes quesitos objecto da modificação da decisão de facto.
4.º
Nos termos dos artigos 108.º e 562.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis às decisões em sede recursória ex vi artigo 631.º, n.º 2 do CPC, impende sobre o Tribunal a quo o dever de fundamentar as decisões por si tomadas. Sendo que, o artigo 571.º, n.º 1 al. b) do CPC consagra a nulidade da sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
5.º
O Tribunal a quo modificou a resposta ao Quesito 12.º - Nem prazo de duração do mesmo? - de "não provado" para "Provado", justificando que "[a] experiência diz-nos que neste tipo de contas, o seu titular pode proceder ao levantamento ou ao depósito a qualquer momento e sem prazo".
6.º
O recurso pelo Tribunal a quo, à sua experiência que caracteriza como de quem "sabe mais ou menos como funcionam as salas de casino VIP", para dar como provado um facto relativo a um contrato individual celebrado entre privados, não é subsumível no conhecimento geral do cidadão comum.
7.º
O douto Tribunal a quo ao não apresentar ou facultar a prova do conhecimento que no contrato celebrado entre o Autor e a(s) Ré(s) não foi estabelecido qualquer prazo de duração do mesmo viola o artigo 434.º, n.º 2 do CPC”; (cfr., concl. 3ª a 7ª).
Pois bem, como se vê, vem impugnada a decisão do Tribunal de Segunda Instância em inverter a resposta de “não provado” dada pelo Tribunal Judicial de Base aos “quesitos 11° e 12°”.
Ora, como se deixou exposto, na parte em questão, esta foi a decisão do Tribunal de Segunda Instância:
“11º
Não foi estipulada qualquer remuneração a pagar às Rés pelo depósito?
Provado.
12º
Nem qualquer prazo de duração do mesmo?
Provado.
A experiência diz-nos que neste tipo de contas, o seu titular pode proceder ao levantamento ou ao depósito a qualquer momento e sem prazo”; (cfr., fls. 1051-v).
Que dizer?
Vejamos, para já, do “quesito 11°”.
Como sabido é, o “dever de fundamentar” as decisões impõe-se ao juiz por imperativo legal, (cfr., art. 556°, n.° 2 do C.P.C.M.), do mesmo dependendo ainda a sua “legitimação” e a própria “garantia do direito ao recurso”.
Com efeito, as partes precisam de ser elucidadas quanto aos “motivos da decisão”, (sobretudo a parte vencida), para poderem impugnar os fundamentos perante o Tribunal superior.
O “dever de fundamentação de facto” é legalmente encarado sob duas perspectivas: a inerente à formação da convicção do julgador na “avaliação dos meios de prova” e a referente à “necessidade de especificação da factualidade que justifica a decisão”.
Se é certo que nesta última acepção é entendimento pacífico que só a “ausência total” de motivação de facto poderá enquadrar este tipo de nulidade, no que se refere à avaliação dos meios de prova impõe-se fazer a distinção entre “inexistência de fundamentação” e “fundamentação deficiente”, cabendo atentar que no aludido art. 556°, n.° 2 se diz que “A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”; (sobre a questão, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 29.09.2021, Proc. n.° 183/2020, onde no sumário se consignou que «Uma decisão (judicial) – acórdão ou sentença – é nula quando nela não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito que a justificam; (art. 571°, n.° l, alínea b), do C.P.C.M.).
A “ratio” deste imperativo legal, que concede tão grande importância à motivação da “decisão”, tomando-a nula se esta for omitida, é fácil de descortinar.
Desde já, por motivos “substanciais”, dado que deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação do Juiz.
Ao comando geral e abstracto da lei, o magistrado substitui um comando particular e concreto, cumprindo-lhe demonstrar que a solução dada ao caso é legal e justa, ou, por outras palavras, que é a emanação correcta da vontade da lei.
Por sua vez, por razões “práticas”, pois que as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão, (sobretudo, a parte vencida, que tem o direito de saber por que razão a decisão proferida lhe foi desfavorável).
Porém, só a falta “absoluta” de motivação gera “nulidade”, não se podendo considerar nula a sentença que se caracteriza por uma motivação “insuficiente”, “deficiente”, “medíocre” ou “errada”»).
No caso, a propósito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal Judicial de Base, em especial, a que recaiu sobre os quesitos 8°, 11°, 12°, 15°, 16°, 18°, 19°, 21° e 22° da Base Instrutória, o Tribunal de Segunda Instância fez verter o seguinte:
“Lidos com atenção os elementos probatórios juntos aos autos, verifica-se que efectivamente eles não foram devidamente valorados, principalmente o teor da certidão de fls. 112 a 117 dos autos, extraído do processo-crime n.º CR2-12-0196-PCC (estando os originais nesse processo), que dá respostas aos quesitos acima transcritos.
Pelo que é de revalorar tais elementos e responder aos quesitos em conformidade”; (cfr., fls. 1051).
Seguidamente, (e como atrás se deixou retratado), alterou a resposta aos quesitos 8°, 11°, 12°, 15°, 16° e 18° da Base Instrutória; (mantendo as respostas negativas aos quesitos 19°, 21° e 22°).
Ora, é certo que para além do que se deixou transcrito, nada mais se disse em relação à decisão de alteração da resposta ao “quesito 11°”.
Porém, tendo em conta o que consignou o Tribunal recorrido, cremos que à (3ª R.) ora recorrente, (totalmente) viável era percepcionar a “razão de ser” da aludida alteração da resposta ao dito “quesito 11°” da Base Instrutória, ou seja: que foi efectuada com base nos elementos probatórios juntos aos autos, designadamente, o teor da certidão de fls. 112 a 117 dos autos, (adequado não sendo assim de considerar que a fundamentação seja “inexistente”).
Por sua vez, também não se pode perder de vista que o aludido “quesito 11°” está intimamente relacionado com o quesito 8° da Base Instrutória, ao qual se respondeu que provado estava que: “Em 14 de Fevereiro de 2012, o Autor começou por depositar naquela sala de jogo a quantia de HKD3.350.000,00 (três milhões, trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong)?”.
E, nesta conformidade, tendo o Tribunal de Segunda Instância alterado a resposta a esse quesito 8° de “Não Provado” para “Provado”, e, nesses termos, demonstrada estando a existência do “depósito”, (pelo A. efectuado; cfr., art. 1111° do C.C.M.), adequado se mostra que o mesmo deva beneficiar da presunção (legal) da sua “gratuidade” de acordo com o estatuído nos art°s 1112° e 1084°, n.° 1, do mesmo C.C.M..
Posto isto, e sendo de notar que, no caso, a dita presunção não foi (por nenhuma das RR.) afastada ou ilidida, razoável se apresenta de considerar também que ainda que se não tenha a fundamentação do Tribunal recorrido como “exaustiva”, inegável é que permite alcançar e compreender o seu sentido, sendo, assim, bastante para se aferir dos motivos da convicção e decisão do Tribunal sobre o “facto provado” em questão, justo não se apresentando desta forma de afirmar que incorreu em “nulidade” por (total) “omissão de fundamentação”, (pois que, em qualquer caso, a questionada decisão não deixaria de ter apoio na referida presunção legal decorrente dos referidos art°s 1112° e 1084°, n.º 1 do C.C.M.).
Quanto ao do “quesito 12°”.
De acordo com a ora recorrente, o Tribunal de Segunda Instância recorreu ilegalmente ao estatuído no art. 434° do C.P.C.M. para alterar a resposta dada ao “quesito 12°” da Base Instrutória, uma vez que a sustentou com a existência de um “facto notório”, mas que, pela própria fundamentação invocada, não seria um “facto do conhecimento geral”.
Ora, como sabido é, são limitados os poderes do Tribunal de Última Instância no âmbito da matéria de facto; (sobre o tema, e para citar dos mais recentes, cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 12.01.2022, Procs. n°s 50/2020 e 76/2020, de 19.01.2022, Proc. n.° 121/2020 e de 16.02.2022, Proc. n.° 82/2020).
Contudo, mostra-se de aceitar que lhe assistem poderes para controlar o uso que é feito do preceituado no referido art. 434° do C.P.C.M..
Com efeito, não se pode olvidar que nos termos do art. 649°, n.° 2 do C.P.C.M.: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Assim, vejamos.
Pois bem, nos termos do art. 434°do C.P.C.M.:
“1. Não carecem de alegação nem de prova os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.
2. Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”.
A respeito, do n.° 1, (quanto aos “factos notórios”), tem-se entendido que:
“(…)
Para Alberto dos Reis o conhecimento geral a que se refere o preceito é o conhecimento por parte da grande maioria dos cidadãos do País, que possam considerar-se regularmente informados, isto é, com acesso aos meios normais de informação. Parece evidente dever dispensar-se a prova dos factos notórios: se eles são conhecidos, quer do juiz, quer dos interessados, a demonstração da sua existência ou ocorrência apresenta-se como supérflua. (…)”; (cfr., v.g., Jacinto Rodrigues Bastos in, “Notas ao C.P.C.”, Vol. III, 3ª ed., pág. 76 e 77).
Também este Tribunal de Última Instância já se pronunciou sobre tal aspecto, considerando: “(…) factos notórios, no sentido de factos que são do conhecimento geral, e que, como tal, não carecem de alegação nem de prova (artigo 434.º, n.º 1 do Código de Processo Civil)”; (cfr., v.g., o Ac. de 24.11.2010, Proc. n.° 62/2010).
Na situação em apreciação, com o dito “quesito 12°” procurava-se apurar se tinha sido estipulado um “prazo de duração” do “depósito” referido no quesito 8°, tendo, por isso, (e na sequência do quesito 11° quanto à sua “gratuidade” ou “onerosidade”), sido formulado nos termos já vistos, (ou seja, “Nem qualquer prazo de duração do mesmo?”).
E, nesta sede, o Tribunal de Segunda Instância, além da já citada fundamentação relativa aos “elementos probatórios juntos aos autos (…) que efectivamente não foram devidamente valorados, principalmente o teor da certidão de fls. 121 a 117 dos autos (…)”, acabou, ainda, por referir, em fundamentação (digamos que) “especial” para a alteração da resposta ao quesito 12° em questão que, “A experiência diz-nos que neste tipo de contas, o seu titular pode proceder ao levantamento ou ao depósito a qualquer momento e sem prazo”; (cfr., fls. 1051-v).
Ora, como se teve oportunidade de consignar no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 19.07.2006, (Proc. n.° 12/2006), “Considerar provado um facto através das regras de normalidade e experiência equivale ao recurso a presunções judiciais, para firmar um facto desconhecido a partir de um facto conhecido (art.ºs 342.º e 344.º do Código Civil)”.
Por isso, (e ressalvando sempre melhor entendimento), afigura-se-nos que o Tribunal de Segunda Instância não recorreu a quaisquer “factos notórios” para fundamentar a alteração da resposta ao “quesito 12°” da Base Instrutória, tendo, antes, utilizado uma “presunção judicial” que, como se tem como assente, “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 342.º do CC).”, sendo que “As presunções judiciais, naturais ou de facto, são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, e que o juiz usa na apreciação de muitas situações de facto.
A presunção assenta sobre uma base (um facto) que tem de ser provada. E esta há-de ser feita por qualquer dos procedimentos probatórios regulados na lei (documentos, testemunhas, etc.)”; (cfr., v.g., Viriato de Lima in, “Manual de Direito Processual Civil”, 3ª ed., pág. 468 e 469).
Com efeito, e como cremos que é o que resulta do que se expôs, o que sucedeu foi que o Tribunal de Segunda Instância partiu do facto provado em sede do quesito 8°, (resposta que veio a ser alterada com base na prova documental junta aos autos), para concluir que, segundo as “regras da experiência”, os depósitos efectuados nas salas de jogo não estavam dependentes de nenhum prazo, (não se apresentando assim ter havido qualquer violação do recurso a factos notórios dado que não recorreu a existência de um “facto notório” para dar como provada a matéria do “quesito 12°” da Base Instrutória).
Poderia, porém, questionar-se, se lícito era ao Tribunal de Segunda Instância recorrer a “presunções judiciais” para alterar respostas dadas à matéria de facto, (sendo de notar que não parece haver dúvidas que este Tribunal de Última Instância pode sindicar o uso de presunções judiciais pelo Tribunal de Segunda Instância, especialmente, caso este uso “ofenda uma norma legal”, padeça de evidente “ilogicidade” ou “parta de factos não provados”).
Contudo, e se bem ajuizamos, não só a ora recorrente não apresentou recurso com base nesse fundamento, como importa não olvidar que a alteração das respostas sobre a matéria de facto teve – também – por base os atrás referidos “documentos de fls. 112 a 117 dos autos”, e que a alteração da resposta ao “quesito 12°” da Base Instrutória constitui também uma “consequência da alteração da resposta dada ao quesito 8°”, razoável não parecendo assim de considerar que a alteração em questão tenha, “exclusivamente”, como fundamento, uma simples presunção judicial.
Por sua vez, independentemente do demais, (e seja como for), diga-se ainda que (em bom rigor), a invocada “presunção judicial” não afecta a (verdadeira) questão de fundo, visto que ainda que tivesse sido estabelecido um prazo, o mesmo ter-se-ia por estabelecido a “favor do depositante”, conforme resulta claro da primeira parte do art. 1120° do C.C.M., onde se estatui que “O prazo de restituição da coisa tem-se por estabelecido a favor do depositante; (…)”, (até mesmo porque “A natureza especial do contrato de depósito (o seu carácter fiduciário e a sua instituição no exclusivo ou predominante interesse do depositante) justifica plenamente o desvio. Em consequência desta primeira regra, continua, não obstante a fixação do prazo, a facultar-se ao depositante o direito de pedir a todo o tempo a restituição da coisa”; cfr., v.g., Pires de Lima e Antunes Varela in, “C.C. Anotado”, Vol. II, 4ª ed., pág. 848, podendo-se também ver Luís Menezes Leitão in, “Direito das Obrigações”, Vol. III, 6ª ed., pág. 493).
Assim, e do que se acaba de expor decorre, (necessariamente), que deviam as RR. ter “alegado”, e “demonstrado” que, inversamente, estabelecido estava um “prazo a favor do depositário” para, desta forma, e neste ponto, poder ser (eventualmente) afectada a solução jurídica da causa.
Não sendo o que sucedeu, a existência, ou não, de um “prazo para o depósito”, não obsta a que o depositante – o A. – reclame a restituição quando bem entender, (pelo que, em termos amplos, a “presunção judicial” no sentido de que o depositante poderia exigir a restituição do montante depositado em qualquer momento está de acordo com a própria “natureza do contrato de depósito”, e, desta forma, também com a “normalidade das situações”).
–– Alega também a (3ª R.) ora recorrente que há uma “contradição” entre a matéria de facto e a decisão porque a descrição dos locais onde as 1ª e 2ª RR. operavam nas suas instalações – salas “Singapura” e “Bangkok” no caso da 1ª R. e salas “Kunming” e “Harbin” no caso da 2ª R. – não coincidem com a sala VIP “D” onde o A. era cliente e teria contratado o depósito de fichas, não se percebendo, assim, de que modo é que se apurou a “contraparte” do contrato celebrado pelo A., elementos inexistindo igualmente que permitam concluir por uma “relação entre a 1ª e a 2ª RR.” para efeitos do Regulamento Administrativo n.° 6/2002, não se percebendo, desta forma, qual o fundamento de facto que sustenta a “condenação solidária da 2ª R.”.
Como se crê que se vê, não se trata verdadeiramente de uma questão de “contradição (ou oposição) entre os fundamentos de facto e a decisão”, (que constitui uma nulidade nos termos do art. 571°, n.° 1, al. c) do C.P.C.M.), mas, antes, de uma questão de “(in)suficiência da matéria de facto” para sustentar a (aludida) decisão tomada pelo Tribunal de Segunda Instância.
No entanto, (e como igualmente se nos apresenta claro), a questão pela ora recorrente nestes termos suscitada no seu recurso divide-se em duas: uma primeira, que consiste na suposta “(in)suficiência”, e, uma segunda, que se prende com a suposta falta de elementos que permitam concluir pela “existência de uma relação entre as 1ª e 2ª RR.” que fosse relevante para o efeito de aplicação do art. 31° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002.
Comecemos, então, pela dita “(in)suficiência da matéria de facto” para a determinação da “parte contrária” no contrato de depósito celebrado pelo A..
É certo que nem da matéria de facto (em sede do despacho-saneador) dada como assente, nem tão pouco da matéria de facto levada à Base Instrutória e que veio a resultar provada, consta qualquer indicação da “parte contrária” do contrato de depósito pelo A. celebrado.
Porém, da conjugação dos factos assentes sob as alíneas e) a g), resulta como certo que as 1ª e 2ª RR. celebraram um contrato de promoção de jogos de fortuna ou azar com a ora recorrente, através do qual, operavam “salas de jogo no Casino E”, não se podendo igualmente esquecer que, por um lado, as “1ª e 2ª RR. aceitaram que tinham celebrado um contrato de depósito com o A.” – o que, apesar de não poder ser valorado enquanto “confissão”, podia ser livremente apreciado pelo Tribunal recorrido – e, por outro, e, quanto a nós, mais relevante ainda, é que o teor de fls. 112 a 117 dos autos dizem precisamente respeito a escrituração comercial da 1ª R., da qual constam os “depósitos e movimentos realizados pelo A.”, sendo de notar que esses mesmos “documentos” foram essenciais para o Tribunal de Segunda Instância dar como provadas as questões de facto que se suscitavam em sede dos quesitos 8°, 11°, 12°, 15°, 16° e 18° da Base Instrutória.
Desta forma, cremos até que se apresenta, no mínimo, algo estranho, pretender-se “fechar os olhos” a esta “realidade”, e procurar, (a todo o custo, tentar) tirar aproveitamento da maior ou menor perfeição da matéria de facto dada como assente, colocando-se em causa um facto que, não só foi (expressamente) “aceite” pelas próprias partes do contrato, (e que tem o seu valor, embora não a título de confissão), e que se encontra igualmente “comprovado” pela prova documental que foi tida em consideração pelo Tribunal recorrido.
Mais não se mostrando de dizer sobre este “ponto”, vejamos agora da questão da “(in)existência de factos para a condenação solidária da 2ª R.”.
Ora, cabe dizer que mal se percebe a pretensão da ora recorrente.
Na verdade, não se pode perder de vista que:
“A legitimidade para recorrer pode ser aferida segundo um critério formal ou material. Segundo o critério formal, tem legitimidade para recorrer a parte que não obteve o que pediu ou requereu; portanto, não pode recorrer a parte que conseguiu na acção aquilo que solicitou ou que está de acordo com a sua conduta na acção (como, por exemplo, a desistência ou a confissão do pedido, art.º 293.º, n.º 1). Diferentemente, segundo o critério material, tem legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão for desfavorável (ou não for a mais favorável que podia ser), qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo. É este o critério habitualmente seguido na doutrina portuguesa.
A legitimidade ad recursum é, apesar da sua designação, uma modalidade do interesse processual e não uma concretização, no âmbito dos recursos, da legitimidade processual (cfr. RP – 2/10/1991, CJ 91/5, 276). A legitimidade para recorrer refere-se à tutela que pode ser obtida pelo recorrente na instância de recurso e, portanto, à utilidade resultante para essa parte da procedência do recurso, o que demonstra que o critério formal ou material que é usado para determinar aquela legitimidade se destina afinal a definir qual o parâmetro que deve ser utilizado para aferir aquela utilidade (que pode ser a conduta da parte na instância recorrida ou o prejuízo que lhe é causado por uma decisão desfavorável)”; (cfr., Miguel Teixeira de Sousa in, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 487 e 488, podendo-se também a este respeito, e entre outros, ver o Ac. deste T.U.I. de 11.03.2015, Proc. n.° 10/2015, no qual a questão do “interesse processual” foi apreciada em termos similares aos referidos, ou seja, através do critério da “utilidade resultante para a parte da procedência do recurso”).
Na situação agora em questão, tendo em consideração que a condenação solidária – ou absolvição – da 2ª R., em “nada afecta a situação jurídica” da 3ª R., ora recorrente, evidente se nos mostra de concluir que não lhe assiste qualquer interesse processual para impugnar o segmento decisório em questão respeitante à “condenação solidária da 2ª R.”, (pois que, da sua ainda que hipotética absolvição, nenhuma utilidade retira).
Com efeito, para a ora recorrente, a “verdadeira questão”, (de fundo), prende-se pois com a “aplicabilidade do art. 29° do Regulamento Administrativo n.° 6/2002”, (assim como dos “efeitos” que esta lhe podem causar).
Considerando que a 1ª R. também era um promotor de jogo de fortuna ou azar que desenvolvia a sua actividade no casino da ora recorrente, bastante se apresentam as razões para se considerar que o aludido específico fundamento de recurso não afasta a sua responsabilidade, (pois que a sua potencial “responsabilidade solidária”, ao abrigo daquela norma jurídica existe, independentemente de ser, ou não, a 2ª R. condenada).
Pelo exposto, não parecendo pois que à ora recorrente assista “interesse processual” nesta parte do seu recurso, vista está a solução a adoptar.
–– Alega, ainda, a ora recorrente, que o Tribunal de Segunda Instância “tirou erradas ilações em relação aos quesitos 16° e 18° da Base Instrutória”, e que “violou o art. 370°, n.° 2 do C.C.M.”.
Vejamos.
No que toca aos referidos “quesitos 16° e 18°”, (agora em causa), os mesmos tinham o seguinte teor:
“16º
O Autor foi depositando mais dinheiro junto da sala de jogo D, chegando a ter aí um depósito de HKD30.600.000,00, no dia 18 de Fevereiro de 2012?
18º
Nesse dia 16 de Março de 2012, o depósito do Autor junto da sala de jogo D ascendia a HKD17.853.300,00?”.
E, pronunciando-se relativamente a estes dois quesitos foi dada a seguinte “resposta conjunta”:
“Provado que o Autor foi depositando na sua conta mais dinheiro junto da sala de jogo D, o depósito total em 15/03/2012 ascendia a HKD17.853.300,00 (fls. 117 dos autos)”; (cfr., fls. 1052).
Por sua vez, e como cremos que decorre do (atrás) exposto, a “alteração” das respostas aos ditos “quesitos 16° e 18°” teve por base a “prova documental junta aos autos, e, essencialmente, a de fls. 112 a 117”, afigurando-se-nos, assim, que o Tribunal de Segunda Instância proferiu a sua decisão com recurso ao “princípio da livre apreciação das provas”, (fazendo-o no âmbito dos poderes de reapreciação da matéria de facto que lhe competem ao abrigo do art. 629° do C.P.C.M.).
Afirma, porém, a ora recorrente, que não poderia o Tribunal de Segunda Instância decidir, (escolher), em que “momento”, (ou “a partir de que momento”), deixaria a dita prova documental de ser relevante, sob pena de violar o disposto no art. 370°, n.° 2 do C.C.M..
Ora, nos termos deste art. 370°:
“1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento”.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “O n.º 1 deste artigo deve ser interpretado em harmonia com o disposto no n.º 2. Só as declarações contrárias aos interesses do declarante se devem considerar plenamente provadas, e não as favoráveis, como no caso de se declarar que se emprestou a alguém determinada quantia. A força probatória do documento não impede que as declarações dele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem”; (in ob. cit., pág. 332).
Pretende-se, assim, que “Apurado que o contexto do documento procede da pessoa a quem é atribuído, provado fica que essa pessoa emitiu as declarações lá documentadas. E essas declarações surtirão o devido efeito contra o seu autor na medida em que forem contrárias aos seus interesses (Cód. Civil, art. 376.º, n.º 2). Não valem a favor dessa pessoa (scriptura pro scribente nihil probat), porque (tratando-se de declarações de ciência) ninguém pode ser testemunha em causa própria (nemo idoneus testis in re sua; nullus idoneus testis re sua intelligitur – Pompónio, no D., 22, 5, 10), assim como (tratando-se de declarações de vontade – de declarações negociais) ninguém pode constituir um título a seu favor (tornar-se, por ex., credor de outrem por mera declaração sua). Mas se as declarações documentadas forem só em parte desfavoráveis ao declarante, o adversário, querendo aproveitar-se da parte favorável, terá de aceitar também a parte desfavorável, ou de provar que essa parte não corresponde à verdade (Cód. Civil, arts. 376.º, n.º 2, in fine, e 360.º). Neste sentido as declarações são indivisíveis. Claro, porém, que a possibilidade de prova do contrário só existe para os documentos narrativos e não para os documentos dispositivos. (…)” (cfr., v.g., Manuel de Andrade in, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 231 e 232).
Feitas as considerações que se deixaram consignadas, quid iuris?
Ora, como sabido é, com a acção que propôs no Tribunal Judicial de Base reclamou o A. das RR. o pagamento solidário a seu favor do montante total de HKD$17.853.300,00 a título de “saldo” que alegava ter na sua conta aberta no casino da ora recorrente sob o n.° ZXXX.
E da (nossa) leitura e análise do aludido “documento de fls. 112 a 117” dos autos, resulta (também) que o A. era efectivamente titular de uma “conta sob o n.° ZXXX”, na qual efectuou vários “depósitos” e “levantamentos”, sendo porém de notar (e salientar) que do mesmo (documento) se verifica que o “saldo positivo” no final do “dia 16.03.2012”, (referido no quesito 18°), era de (apenas) HKD$3.853.300,00, (existindo assim uma diferença de HKD$14.000.000,00 em relação ao valor pelo A. reclamado).
Que dizer?
Se bem ajuizamos, e antes de mais, mostra-se de consignar que, na parte em questão, o Tribunal de Segunda Instância fez como que um “desvio” ao (verdadeiro) objecto e matéria do “quesito 18°”, e, em vez de se pronunciar sobre o que (efectivamente) aí estava em causa, ou seja, sobre o “valor” que se encontrava depositado junto da sala de jogo “D” no dia “16.03.2012”, decidiu afirmar que, (um dia antes), no “dia 15.03.2012, o depósito total ascendia a HKD$17.853.300,00”.
Ora, (com todo o respeito devido), importa ter presente que, nesse “trecho”, em causa não está uma (mera) “resposta limitativa”, (ou restritiva), sendo antes de se considerar que o objecto da pronúncia em questão é (clara e verdadeiramente) distinto do que se pretendia apurar através do referido “quesito 18°”, não se apresentando pois – e até mesmo em face do que atrás se referiu quanto à “diferença de valores” – que a “data” (aí) em questão, (de 16.03.2012), seja um dado insignificante ou menos relevante para ser objecto da efectuada “antecipação”, mostrando-se-nos, desta forma, que a “resposta (conjunta)” pelo Tribunal de Segunda Instância dada à matéria dos “quesitos 16° e 18°” constitui uma “resposta exorbitante”, (na parte em que deu uma resposta com base em “data distinta” da que constava do próprio quesito).
Por sua vez, independentemente do demais, (e seja como for), temos também para nós que a dita pronúncia à matéria do “quesito 18°” da Base Instrutória, (especificamente, visto que foi dada uma “resposta conjunta” a dois quesitos), não deixa de configurar uma “violação ao princípio da livre apreciação da prova”, estando, por isso, sujeita à cognição deste Tribunal de Última Instância; (a este respeito, e embora noutro enquadramento, cfr., o Ac. deste T.U.I. de 31.01.2019, Proc. n.° 62/2017).
Com efeito, adequado não se mostra que o Tribunal de Segunda Instância – sem qualquer “justificação concreta e objectiva” susceptível de apreciação – tome em consideração o teor do documento de fls. 117 (onde figuravam os “saldos” em ambos os dias 15 e 16 de Março de 2012), em termos “parciais” (e selectivos), desconsiderando-o na parte em que o mesmo demonstra que na (precisa) “data” que estava em causa naquele “quesito 18°”, (ou seja, em 16.03.2012), o saldo positivo era de (apenas) HKD$3.853.300,00, valorando-o, tão só, quanto ao saldo que indicava no “dia anterior” (de 15.03.2012), imperativo se nos apresentando de se ter a decisão em questão (de apenas se considerar os movimentos até ao dia “15.03.2012”) como (manifestamente) “arbitrária” – por não considerar o documento de fls. 117 na sua “totalidade” – e em colisão com o referido “princípio da livre apreciação”, (vício que, como se referiu, este Tribunal pode conhecer), havendo que se decidir no sentido de se proceder à sua “reforma”, (em sede do qual importa, reponderar, na globalidade, a decisão da matéria de facto em face da impugnação pelo agora recorrido então efectuada).
Atenta a “matéria” em questão, e inviável sendo a esta Instância proceder à dita reforma em sede da presente lide recursória, (substituindo-se ao Tribunal a quo), outra solução não existe que não seja decidir em conformidade, prejudicado ficando o conhecimento da(s) restante(s) questão(ões) pela recorrente colocada(s).
Decisão
4. Em face de todo o exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido para que pelo Tribunal de Segunda Instância seja proferida nova decisão nos exactos termos consignados.
Pelo seu decaimento, pagará a recorrente “A” a taxa de justiça de 10 UCs, suportando o A. B (乙) a taxa de 4 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 16 de Março de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Em sentido próximo, pode ver-se o artigo de Alexandre Dias Pereira, in "Law, Regulation and Control Issues of tbe Asian Gaming Industry", publicado pelo Institute for the Study of Commercial Gaming da Universidade de Macau, páginas 152 e 153.
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Proc. 3/2020 Pág. 13