打印全文
Processo nº 36/2022 Data: 08.04.2022
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)

Assuntos : Recurso relativo a uniformização de jurisprudência.
Requisitos de admissibilidade.
“Oposição de acórdãos”.
Matéria de facto.
Crime de “usura”; (art. 219° do C.P.M.).
“Situação de necessidade” (do ofendido).



SUMÁRIO

1. São requisitos de admissibilidade do recurso para a uniformização de jurisprudência:
- a existência de uma oposição de acórdãos;
- sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito; e
- a permanência do mesmo quadro legislativo.

2. A “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito e que as decisões em oposição sejam “expressas”, isto é: nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

3. Com efeito, o presente “recurso extraordinário para fixação de jurisprudência” só se justifica em casos (absolutamente) nítidos de “contradição” entre decisões de Tribunais Superiores sobre determinada questão jurídica, (devidamente fundamentada em qualquer deles), sendo de sublinhar que quanto à “identidade de situações de facto”, necessário é que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as situações, ou seja, que a mesma norma ou segmento normativo tenham sido aplicadas(os) com sentidos opostos a “situações fácticas iguais ou equivalentes”, (pois que apenas perante “identidade de pressupostos de facto” se pode avaliar da “(in)existência de oposição de soluções de direito”).

4. Doutra forma, verificada estava a aludida “oposição” sempre que as decisões não fossem idênticas ou no mesmo sentido, criando-se uma – indevida – possibilidade de utilização do presente “recurso extraordinário” para situações de mera discordância com o decidido…

5. Nenhuma “oposição” justificativa do presente recurso extraordinário existe se o que – simplesmente – sucedeu foi que no “Acórdão recorrido” se decidiu pela “condenação” do arguido, ora recorrente, porque a matéria de facto dada como provada explicitava (adequadamente) as circunstâncias fácticas integradoras do elemento típico relativo à “situação de necessidade” dos ofendidos dos crimes de “usura” pelo mesmo praticados, e se no “Acórdão fundamento” se decidiu pela absolvição do aí arguido porque se considerou que a matéria de facto dada como provada não permitia dar aquele (mesmo) elemento típico como verificado, proferindo-se, em conformidade, e necessariamente, uma decisão absolutória.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 36/2022
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), com os sinais dos autos, traz o presente “recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência” alegando que a solução jurídica adoptada no Acórdão (recorrido) do Tribunal de Segunda Instância de 18.11.2021, proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 891/2020, está em oposição à por este mesmo Tribunal assumida no Acórdão de 13.05.2021, Proc. n.° 457/2019, (doravante designado Acórdão fundamento); (cfr., fls. 2 a 67, onde juntou também as invocadas “decisões em oposição”, e cujo teor se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais).

*

Nos termos do art. 422° do C.P.P.M., e em sede de vista, juntou a Ilustre Procuradora Adjunta douto Parecer opinando no sentido da inverificação da alegada “oposição de acórdãos”, pugnando pela rejeição do presente recurso; (cfr., fls. 81).

*

Com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos realizou-se a conferência a que alude o art. 423° do C.P.P.M..

Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Em face do que até aqui se deixou (sumariamente) relatado, e em causa estando um “recurso – extraordinário – para a fixação de jurisprudência”, mostra-se-nos desde já adequado recordar a seguinte consideração de Gama Lobo no sentido de que:

“A legitimidade do Direito assegura-se também pela sua capacidade de julgar casos iguais ou semelhantes de forma igual ou semelhante. Por tal razão o ordenamento jurídico prevê este mecanismo de fixação de jurisprudência, que mais não visa do que uniformizar as interpretações jurídicas e a sua aplicação, garantindo a coerência e a estabilidade da jurisprudência. E se alguma critica há a fazer a este sistema é a de que devia haver mais decisões uniformizantes, para gerar mais tranquilidade dos operadores judiciários e credibilidade da Justiça. (…)”; (in “C.P.P. Anotado”, Almedina, pág. 878).

Isto dito, importa ter presente que – no Título II, dedicado aos “Recursos extraordinários”, Capítulo I, quanto à “Fixação de jurisprudência”, e sob a epígrafe “Fundamento do recurso” – prescreve o art. 419° do C.P.P.M. que:

“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Resulta do teor do dispositivo em questão que aí e no que toca ao presente “recurso para fixação de jurisprudência”, acolhe o legislador quatro “matérias” distintas, ou seja, quanto às:
- decisões de que cabe recurso;
- legitimidade para recorrer;
- tribunal competente; e seus,
- requisitos de admissibilidade.

Evidente sendo que em causa agora está a aferir da verificação dos ditos “requisitos de admissibilidade”, sem mais demoras, vejamos o que nesta sede se mostra de decidir; (sobre a matéria, pode-se ver os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2009 e de 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009; de 25.04.2012, Proc. n.° 17/2012; de 23.09.2015, Proc. n.° 59/2015; 13.01.2016, Proc. n.° 78/2015; de 22.01.2016, Proc. n.° 81/2015; de 17.01.2017, Proc. n.° 65/2016; de 22.03.2017, Proc. n.° 15/2017; de 26.04.2017, Proc. n.° 13/2017; 24.01.2018 e de 25.04.2018, Proc. n.° 84/2017; de 31.07.2018, Proc. n.° 53/2018; de 03.04.2020, Proc. n.° 130/2019; de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021; de 12.01.2022, Proc. n.° 160/2021; de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022; e de 11.03.2022, Proc. n.° 19/2022).

Pois bem, estes “requisitos” podem apresentar-se como sendo os seguintes:
- a existência de uma oposição de acórdãos;
- sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito; e
- a permanência do mesmo quadro legislativo.

Pronunciando-se sobre o “primeiro” considera Manuel Leal-Henriques que o mesmo “repousa na exigência de que dois acórdãos proferidos por Tribunais Superiores tenham dado soluções diversas e opostas a uma concreta questão, (…)”.

Por sua vez, considera que se está perante uma “questão de direito” quando se trata de “interpretar e aplicar normas jurídicas a uma qualquer situação concreta. (…)”. E, finalmente, em relação ao último requisito, é de opinião que o mesmo exige que “entre a prolação do 1.° acórdão (o acórdão-fundamento) e o 2.° (o acórdão-recorrido) não tenha havido alteração essencial na legislação aplicável à concreta questão decidida”, acrescentando que “aqui, o legislador teve necessidade de adiantar um elemento de ajuda ao aplicador da lei, indicando no n.° 3 que se consideram acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação "quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida". (…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. III, C.F.J.J., 2014, pág. 373 e 378).

Cabendo-nos reflectir e ponderar sobre a referida “oposição de acórdãos” – que pelo ora recorrente vem invocada e pelo Ministério Público vem afirmado “inexistir” – vejamos.

Cremos que adequado se mostra de ter que a “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito e que as decisões em oposição sejam “expressas”.

Com efeito, nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

Aliás, neste mesmo sentido tem este Tribunal decidido (de forma firme e repetida), valendo aqui a pena recordar o considerado nos Acórdãos de 11.03.2009 e 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009, onde, nos respectivos sumários, se deixou consignado que:

“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que:
- A oposição entre as decisões seja expressa e não meramente implícita;
- A questão decidida pelos dois acórdãos seja idêntica e não apenas análoga. Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.03.2009); e,
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que haja duas decisões diversas. Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do Tribunal de Última Instância.
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam”; (cfr., v.g., o Ac. de 31.03.2009, podendo-se sobre a matéria ver também os recentes Acs. de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021 e de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022).

No mesmo sentido, (e fazendo referência a variada jurisprudência do S.T.J. português), nota também P. P. de Albuquerque que:

“A oposição de acórdãos tem de ser expressa e não tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos (acórdão do STJ, de 18.9.1991, in BMJ, 409, 664). A oposição deve respeitar à decisão e não apenas aos seus fundamentos (acórdão do STJ, de 3.4.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 2, 194, e acórdão do STJ, de 3.12.1998, in SASTJ, n.° 26, 74), a soluções de direito expressas e não implícitas, soluções tomadas a título principal e não acessório ou secundário (acórdão do STJ, de 12.11.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 3, 221). A concreta questão a decidir deve ser delimitada com precisão, devendo justificar-se a correspondente oposição de acórdãos (acórdão do STJ, de 20.1.2005, in CJ, Acs. do STJ, XIII, 1, 175)”; (in “Comentário do C.P.P.”, 4ª ed., pág. 1192).

Aqui chegados, e clarificado que cremos estar o sentido e alcance (do requisito) da “oposição de acórdãos”, debrucemo-nos sobre a “situação dos presentes autos”.

Pois bem, em sede da sua motivação de recurso produziu o ora recorrente as conclusões seguintes (que se passam a transcrever na sua íntegra):

“1. Em primeiro lugar, no caso sub judice, quanto ao requisito de situação de necessidade do “crime de usura”, o tribunal de primeira instância entendeu que conforme o acima exposto pode-se ver que os ofendidos se encontravam na situação de necessidade, e em conjugação com outras circunstâncias do caso, o presente processo já preenche as situações do “crime de usura” de Macau, pelo que, condenou o Recorrente como autor material e na forma consumada pela prática de 25 “crimes de usura” p. e p. pelo artigo 219.º n.º 1 e em conjugação com o n.º 3 alínea a) do Código Penal, em um ano e seis meses de prisão por cada;
2. Inconformado com a decisão proferida em primeira instância, nomeadamente se as circunstâncias do caso preenchem o requisito de “situação de necessidade”, dela veio o Recorrente interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
3. In casu, conforme o entendimento do Relator do Tribunal de Segunda Instância sobre o conceito de “situação de necessidade”, pode ser entendido que dá para integrar a “situação de necessidade” do “crime de usura” sempre que o devedor se encontre em situação de dinheiro (sic), falta de dinheiro para circulação do capital e em situação de precisar urgentemente de dinheiro, isto é a questão de aplicação de direito.
4. Porém, face ao requisito de “situação de necessidade” do “crime de usura”, o Tribunal de Segunda Instância considerou no acórdão proferido no Processo n.º 457/2019 (doravante designado simplesmente por “acórdão- fundamento”) que o conceito jurídico de “situação de necessidade” é a situação de precisar urgentemente de dinheiro, caso não possa obter empréstimo imediatamente, o devedor sofrerá um prejuízo irrecuperável.
5. Para além disso, se os referidos factos podem dar para integrar a “situação de necessidade”, o Tribunal de Segunda Instância também referiu no acórdão-fundamento que “o motivo e a situação que levam à necessidade urgente de dinheiro do devedor são indispensáveis, pois só depois de os saber é que se pode julgar se o devedor se encontra em “situação de necessidade” por economicamente ter necessidade urgente de dinheiro, caso não possa obter empréstimo imediatamente, sofrerá um prejuízo irrecuperável, ou “situação irresistível” que não pode deixar de pedir empréstimo”.
6. Conforme acima alegado, pode-se saber que há duas interpretações diferentes sobre o conceito jurídico de “situação de necessidade” no acórdão do presente processo e no acórdão-fundamento acima referido:
- No presente processo, dá para integrar a “situação de necessidade” do “crime de usura” sempre que o devedor se encontre em situação de dinheiro (sic), falta de dinheiro para circulação do capital e em situação de precisar urgentemente de dinheiro;
- No acórdão-fundamento, a “situação de necessidade” significa que caso não possa obter empréstimo imediatamente, sofrerá um prejuízo irrecuperável, ou “situação irresistível” que não pode deixar de pedir empréstimo.
7. Após comparação, revela-se que diferentemente do que entendido no acórdão-fundamento sobre a “situação de necessidade”, o Relator do presente processo entendeu que para integrar o conceito de “situação de necessidade”, não se exige que “caso não possa obter empréstimo imediatamente, sofrerá um prejuízo irrecuperável” ou a “situação irresistível” que não pode deixar de pedir empréstimo”, exigindo-se apenas “encontrar-se em situação de precisar urgentemente de dinheiro”.
8. “Em situação de precisar urgentemente de dinheiro” e “sofrerá um prejuízo irrecuperável, “situação irresistível” que não pode deixar de pedir empréstimo” são entendimentos sobre a “situação de necessidade” perfilhados respectivamente pelo acórdão do presente processo e pelo acórdão-fundamento e obviamente são dois entendimentos jurídicos divergentes, pois a pessoa que precisa urgentemente de dinheiro não equivale necessariamente à pessoa pobre ou pessoa num beco sem saída. Caso se concorde com o último, o primeiro deve ser improcedente pois os requisitos são diferentes.
9. Conforme os factos provados do presente processo, só se pode provar que os ofendidos “se encontravam em situação de precisar urgentemente de dinheiro” e, consequentemente, o acórdão do presente processo condenou o Recorrente pela prática dos crimes; e também só se pode provar que os ofendidos “se encontravam em situação de precisar urgentemente de dinheiro”, faltando o pressuposto de “sofrerá um prejuízo irrecuperável, “situação irresistível” que não pode deixar de pedir empréstimo”, pelo que, não corresponde ao entendimento sobre a “situação de necessidade” perfilhado pelo acórdão-fundamento. No acórdão-fundamento, o Recorrente devia ser absolvido dos crimes.
10. Através da aludida comparação, vê-se que há resultados manifestamente opostos, isto é, condenação do crime e absolvição do crime, pelo que, os dois entendimentos acima referidos são manifestamente opostos, quer a nível jurídico, quer a nível lógico.
11. Assim sendo, no acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância provou que os ofendidos se encontravam em “situação de necessidade” com fundamento nos factos de que os ofendidos se encontravam em “dificuldade financeira, em situação de falta de dinheiro para circulação do capital e em situação de precisarem urgentemente de dinheiro”, o que manifestamente está em oposição com o acórdão por si proferido no Processo n.º 457/2019, de 13 de Maio de 2021.
12. É de referir ainda que tal como apontado pelo MM.º Juiz do Tribunal de Segunda Instância do presente processo na declaração de voto, mesmo que se mantenham os factos dados como provados no presente processo, ainda existe a questão de aplicação de direito – as situações de todos os ofendidos do presente processo não podem reflectir directamente que se encontravam em “situação de necessidade”, pois os ofendidos não se encontravam numa situação de precisarem de pedir empréstimo sem qualquer alternativa por terem dificuldade económica, mesmo estarem sob ameaça os seus direitos básicos de sobrevivência e subsistência (extraído do 3.º parágrafo do verso da declaração de voto do presente processo) – mostra-se que o que está em causa no presente processo não é os factos provados mas sim a oposição no domínio jurídico.
13. Pelos acima expostos, pode-se ver que o Tribunal de Segunda Instância proferiu acórdãos opostos sobre o mesmo facto, pelo que, as situações do presente processo preenchem o fundamento de recurso previsto no artigo 419.º n.º 1 do Código de Processo Penal, pelo que, solicita que os MM.ºs Juízes do Tribunal de Última Instância fixem a jurisprudência sobre a questão acima referida”; (cfr., fls. 4-v a 5-v e 4 a 8 do Apenso).

Que dizer?

Ora, cremos que nenhuma razão se pode reconhecer ao ora recorrente.

Vejamos.

Nos termos do n.° 1 do art. 219° do C.P.M.:

“Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele prometa ou se obrigue a conceder, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, manifestamente desproporcionada face à contraprestação, é punido com pena de prisão até 3 anos”.

E como nota M. Leal-Henriques, constituem elementos essenciais do crime de “usura” matéria objecto de decisão nos Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância aqui em causa, os seguintes:

“I – de carácter objectivo:
- exploração pelo agente da situação de carência e fragilidade em que se encontra o "devedor", derivada de:
- necessidade;
- anomalia psíquica;
- incapacidade;
- inépcia;
- inexperiência;
- fraqueza de carácter;
- relação de dependência.
- concessão ou promessa ao "credor ou a terceiros", por parte do "devedor", de vantagem patrimonial manifestamente desproporcionada à contraprestação do agente.
II – de carácter subjectivo:
- dolo”.

Pronunciando-se sobre o elemento agora em discussão – ou seja, quanto à “situação de necessidade” de ofendido – considera o mesmo autor que:

“Antes de mais, e como primeiro elemento de natureza objectiva, temos a exploração, por parte do agente, da situação carencial em que o "devedor" se encontra.
Reporta-se, assim, portanto, este elemento, e como antes se salientou, ao posicionamento das duas partes no negócio: de um lado, alguém que tem poder económico para se "oferecer ao mercado", particularmente ao "mercado" mais carenciado e disposto a aceitar quaisquer condições; de outro lado, quem, em situação de vulneralidade, não em outra alternativa que não seja sujeitar-se às imposições alheias para obter o que precisa.
Ora é esta desproporcionalidade de situações, bem conhecida de quem se oferece, que faz com que o credor abuse, explore, a fragilidade do devedor, vergando-o a cláusulas negociais que em condições normais não lograria impor e que o direito penal não pode tolerar.
Como, quando e em que circunstâncias esta desproporção de posicionamentos assume relevância criminal cabe à lei dizê-lo e a lei di-lo com clareza, descrevendo quais as situações que devem relevar para o efeito e que são as seguintes:
- de necessidade – estado em que o necessitado precisa de obter algo com que satisfazer as suas carências básicas de subsistência e outras de carácter pessoal (v.g. arranjar dinheiro para solver compromissos inadiáveis) ou profissional (v.g. para arranjar um emprego), impossibilitado que está de o conseguir de outra forma.
A situação de necessidade poderá, assim, ser vista como um «estado de carência», sem que, contudo, equivalha «a uma situação de penúria económica». (J. ANTÓNIO BARREIROS, op. cit., págs. 221 e 222).
Uma tal situação não tem, pois, de «ameaçar existencialmente de asfixia económica, seja o caso de quem pagou uma conta anormal de luz e ficou sem dinheiro para a renda da casa; ou de quem procura trabalho afincadamente, sem êxito».
De outro lado, por exemplo, «a necessidade de dinheiro para ir ao futebol não configura uma situação de necessidade relevante», do mesmo modo que «quem tem acesso ao crédito bancário não se encontra certamente na situação de necessidade aqui prevista» (M. MIGUEZ GARCIA/J. M. CASTELA RIO, op. cit., art.° 226.°).
Como assim, o ajuizamento a ser feito da situação em concreto há-de pautar-se por situações de equilíbrio, desprezando os extremos (nem casos de extrema penúria, nem coisas bagatelares ou irrelevantes);
(…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, Vol. IV, C.F.J.J., 2016, pág. 322 e 323).

E, nesta conformidade, ponderando no que se deixou exposto, e (atentamente) analisadas – o teor e sentido – das “decisões” cuja “oposição” no presente recurso vem invocada, cremos ser evidente que a mesma não ocorre.

Com efeito, no Acórdão recorrido, decidiu-se confirmar a condenação do ora recorrente como autor material em concurso real de 25 crimes de “usura” p. e p. no atrás transcrito art. 219°, n.° 1 do C.P.M., dado que se entendeu que da “factualidade” dada como provada se impunha concluir que estavam totalmente verificados (todos) os “elementos típicos” do dito comando legal, nomeadamente – na parte que para agora releva – o elemento da “necessidade”, ou melhor, da “situação de necessidade” dos ofendidos dos respectivos crimes.

Por sua vez, no Acórdão fundamento, consignou-se (tão só) que a (mera) “referência” na matéria de facto provada que o arguido “sabia que ofendido se encontrava em estado de necessidade” constituía um evidente “juízo conclusivo”, e, como tal, na falta de qualquer outro elemento de facto que explicitasse (ou densificasse) tal “conclusão”, (citando-se, a título de exemplo, eventuais descrições fácticas sobre a “causa”, “motivo”, ou “finalidade” do “empréstimo” que poderiam servir tal desiderato), decidiu-se pela sua “absolvição”.

E, perante isto, cabe perguntar: “onde”, “como”, ou “em que termos” existe ou está a alegada “oposição de julgados”?

Com é evidente, nenhuma oposição existe, sob pena de (ter de) haver sempre “oposição” desde que as decisões não sejam idênticas ou no mesmo sentido, criando-se assim uma – indevida – possibilidade de utilização do presente “recurso extraordinário” para situações de mera discordância com o decidido…

Na verdade, in casu, o que – simplesmente – sucedeu foi que no “Acórdão recorrido” se decidiu pela “condenação” do arguido, ora recorrente, porque a matéria de facto dada como provada explicitava (adequadamente) as circunstâncias fácticas integradoras do elemento típico relativo à “situação de necessidade” dos ofendidos dos crimes de “usura” pelo mesmo praticados, entendendo-se no “Acórdão fundamento” de se decidir pela absolvição do aí arguido porque se considerou que a matéria de facto dada como provada não permitia dar aquele (mesmo) elemento típico como verificado, (proferindo-se, em conformidade, e necessariamente, uma decisão absolutória).

Assim, e totalmente distinta sendo a “situação fáctica” subjacente às “decisões em confronto”, do “Acórdão recorrido” e a existente no “Acórdão fundamento”, manifesto se apresenta o evidente equívoco do ora recorrente quanto à alegada “oposição”, visto estando que o presente recurso não pode prosseguir.

Com efeito, o presente “recurso extraordinário para fixação de jurisprudência” só se justifica em casos (absolutamente) nítidos de “contradição” entre Tribunais Superiores sobre determinada questão jurídica, devidamente fundamentada em qualquer deles, valendo a pena sublinhar que quanto à “identidade de situações de facto”, necessário é que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as situações, ou seja, que a mesma norma ou segmento normativo tenham sido aplicadas(os) com sentidos opostos a “situações fácticas iguais ou equivalentes”, (sendo pois de concluir que, apenas perante “identidade de pressupostos de facto” se pode avaliar da “existência/inexistência de oposição de soluções de direito”); (neste mesmo sentido, cfr., também v.g., os recentes Acs. do S.T.J. português de 24.02.2022, Proc. n.° 312/20 e de 10.03.2022, Proc. n.° 7447/08).

Dest’arte, imperativo é decidir como segue.

Decisão

3. Em face do exposto, em conferência, acordam rejeitar o presente recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 5 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 08 de Abril de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 36/2022 Pág. 2

Proc. 36/2022 Pág. 3