Processo n.º 220/2021 Data do acórdão: 2022-4-21
Assuntos:
– concessão de empréstimo para jogo
– interpretação indevida do teor das declarações da testemunha
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
Como da fundamentação probatória tecida pelo tribunal recorrido para a decisão condenatória penal do arguido ora recorrente se vê que esse tribunal interpretou, claramente, de modo indevido, o teor das declarações então prestadas pelo ofendido à Polícia Judiciária (declarações essas confirmadas inteiramente pelo ofendido em sede de prestação de depoimento para memória futura, e lidas na audiência de julgamento), ao ter afirmado, nessa fundamentação probatória, que segundo o referido pelo ofendido o arguido recorrente participou nos assuntos de concessão de empréstimo para jogo, incluindo a negociação das condições de empréstimo, quando, na realidade, do teor das mesmas declarações do ofendido não constou qualquer referência, feita pelo ofendido, a esta matéria, há que reenviar esta parte do objecto do processo para novo julgamento, por verificação efectiva do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 220/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.o arguido): A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 521 a 529 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-17-0015-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) que o condenou como co-autor material de um crime consumado de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M, na pena de um ano de prisão, suspensa na execução por dois anos, com interdição efectiva de entrada nos casinos de Macau pelo período de dois anos e seis meses, veio o 1.o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), apontando a essa decisão condenatória, no seu essencial, os vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação, para rogar a sua absolvição penal (cfr., com mais detalhes, a motivação apresentada a fls. 536 a 550v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador (a fls. 558 a 560 dos autos) no sentido de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, com devido reenvio do processo para novo julgamento.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 571 a 572v), opinando pelo reenvio do processo, por existência do erro notório na apreciação da prova cometido pelo Tribunal recorrido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Sobre o crime de usura para jogo, todos os três arguidos (incluindo o 1.o arguido ora recorrente) do processo penal ora subjacente à presente lide recursória exerceram o direito ao silêncio na audiência de julgamento em primeira instância da qual proveio o acórdão condenatório ora recorrido (cfr. o teor da correspondente acta, lavrada a fls. 518 e seguintes).
2. Nessa mesma audiência de julgamento, foram lidas as declarações prestadas pelo ofendido em memória futura perante o Juízo de Instrução Criminal, em sede das quais tinha confirmado ele o teor das declarações então prestadas à Polícia Judiciária e ao Ministério Público (perante o qual se tendo limitado ele a confirmar o teor daquelas mesmas declarações prestadas à Polícia Judiciária) (cfr. mormente o primeiro parágrafo da página 4 da acta da mesma audiência de julgamento, a fl. 519v).
3. Do teor dessas declarações então prestadas pelo ofendido à Polícia Judiciária (e registadas integralmente a fls. 4 a 5v), não consta que o ofendido tenha referido que o 1.o arguido tenha participado na concessão do empréstimo para jogo, incluindo a negociação sobre as condições de empréstimo.
4. Na fundamentação probatória da decisão condenatória do crime de usura para jogo ora recorrida, o Tribunal sentenciador, autor do acórdão ora recorrido, proferido a fls. 521 a 529, chegou a afirmar, em chinês, nas 3.a a 4.a linhas da página 12 do texto desse acórdão a fl. 526v, que “Segundo o referido pelo ofendido, os 1.o e 2.o arguidos participaram nos assuntos de concessão de empréstimo para jogo, incluindo a negociação sobre as condições do empréstimo, …”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da leitura da motivação do recurso, resulta nítido que o 1.o arguido assacou à decisão condenatória ora recorrida os vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação. E ao sustentar a verificação daquele vício de erro na apreciação da prova, invocou, como argumentos concretos, que ele não tinha participado na concessão do empréstimo ao ofendido para este jogar em casino, nem tão-pouco na negociação das condições desse empréstimo.
Ante os elementos coligidos dos autos e já acima referidos na parte II do presente acórdão de recurso, procede o suscitado vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), porquanto, tal como já observou o Ministério Público na resposta ao recurso, da fundamentação probatória tecida pelo Tribunal ora recorrido se vê que esse Tribunal interpretou, claramente, de modo indevido, o teor das declarações então prestadas pelo ofendido à Polícia Judiciária, ao ter afirmado, nessa fundamentação probatória da sua decisão condenatória penal, que segundo o referido pelo ofendido o 1.o arguido participou nos assuntos de concessão de empréstimo para jogo, incluindo a negociação das condições de empréstimo, quando, na realidade, do teor das mesmas declarações do ofendido não constou qualquer referência, feita pelo ofendido, a esta matéria.
Há, pois, e sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, que reenviar o processo para novo julgamento, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, por um novo Tribunal Colectivo no TJB, na parte respeitante ao crime de usura de jogo então imputado ao 1.o arguido a título de co-autoria material com os 2.o e 3.o arguidos (nota-se que a procedência do recurso desta vez do 1.o arguido nos termos acima vistos e decididos já não pode aproveitar aos 2.o e 3.o arguidos não recorrentes, dado o carácter estritamente pessoal dos argumentos concretamente invocados pelo recorrente para sustentar a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova – cfr. o art.o 392.o, n.o 2, proémio, do CPP).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso do 1.o arguido A, reenviando o processo para novo julgamento, na parte somente concernente ao crime de usura para jogo por que ele vinha acusado a título de co-autoria material.
Sem custas no presente recurso.
Macau, 21 de Abril de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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