Processo n.º 160/2021 Data do acórdão: 2022-4-21
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Como após vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da sentença penal recorrida pela arguida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal sentenciador recorrido, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, não pode ter ocorrido o vício, assacado na motivação do recurso, de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 160/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 176 a 179 do Processo Comum Singular n.o CR3-20-0258-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenada a arguida A, aí já melhor identificada, pela prática, em autoria material, de um crime consumado de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de sessenta dias de multa, à quantia diária de trezentas patacas, no total, pois, de dezoito mil patacas de multa (convertível em quarenta dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição por trabalho), com inibição de condução por quatro meses.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, na motivação apresentada a fls. 200 a 217 dos presentes autos correspondentes, o seguinte, para pedir a sua absolvição por falta de dolo na prática do crime, ou o reenvio do processo para novo julgamento:
– é incorrecto o juízo de valor do Tribunal recorrido segundo o qual a colisão entre os dois veículos dos autos não foi de grau leve, porque, a montante, até o próprio ofendido depôs na audiência de julgamento que o estrago causado pela colisão foi muito leve, e, a jusante, o montante de reparação do estrago foi apenas de oitocentas patacas;
– é erróneo também o juízo de valor do Tribunal recorrido em sintonia com o qual a chapa de matrícula do veículo da parte do ofendido foi partida e caiu devido à colisão entre os dois veículos, porque sendo tal chapa feita de material plástico, naturalmente é muito fácil partir-se;
– atenta a fraca capacidade de audição na orelha direita da própria arguida, com a agravante de que o ambiente do parque de estacionamento em causa era barulhento e com escuridão, sendo certo que na altura ela estava a falar com uma pessoa passageira, com janelas do veículo fechadas, como foi possível ao Tribunal recorrido ter certeza de que ela própria sabia ou devia saber da colisão entre os dois veículos?
– a decisão condenatória penal ora recorrida padece, pois, do erro nótório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP);
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre não deixaria a mesma decisão condenatória de enfermar da contradição insanável da fundamentação referida na alínea b) do n.o 2 desse art.o 400.o, porquanto ao contrário do entendido pelo Tribunal recorrido, o facto de a luz do travão do veículo conduzido pela arguida ter ficado acesa na altura não foi por causa da colisão deste veículo noutro veículo, mas sim por necessidade de aplicação do travão para o seu veículo se afastar de um pilar em frente, e também para reduzir a velocidade antes de virar pela direita em frente, a cerca de dez metros de distância.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 223 a 225v dos presentes autos, no sentido de não provimento do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fl. 238 a 239v, opinando pela manutenção da decisão recorrida.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora impugnada pela arguida recorrente ficou proferida a fls. 176 a 179, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O Tribunal recorrido julgou aí por não provados os seguintes factos outrora alegados pela arguida:
– o embate entre os dois veículos foi muito leve, o que fez com que não tenha sido possível praticamente à arguida aperceber-se da ocorrência do acidente de viação nem da causação de estrago a veículo alheio;
– mesmo que se tenha produzido o som, como o embate entre os dois veículos foi muito leve, e considerados, ainda por cima, o ambiente do local e a deficiência da própria pessoa da arguida, era-lhe praticamente difícil aperceber-se da colisão, ou dever saber da ocorrência da colisão, ou saber da ocorrência do acidente de viação com intuito de fugir à responsabilidade, ao sair do local.
3. Segundo a fundamentação probatória da sentença recorrida, tecida (originalmente em chinês) sobretudo no último parágrafo da página 3 e no primeiro parágrafo da página seguinte, do respectivo texto, a fl. 177 a 177v dos autos, o Tribunal recorrido formou a sua convicção sobre os factos com base no seguinte exame crítico das provas:
– a arguida disse na audiência de julgamento que não sabia da ocorrência da colisão, mas atendendo ao grau de estrago causado pela colisão entre os dois veículos, o qual fez com que se tenha partido a chapa de matrícula do veículo da parte do ofendido e com que tenha caído a mesma chapa, e considerando também que o ponto do embate foi no pára-choque frontal esquerdo do veículo conduzido pela arguida, muito perto do assento de condutor, portanto, ocorrendo a colisão entre os veículos no lado esquerdo, e ponderando que o grau de embate não foi leve, e apesar da fraca capacidade de audição da orelha direita da arguida, o embate devia ter sido sentido pela arguida como condutora;
– por outro lado, das imagens de gravação visual, vê-se que após ocorrido o embate, ficou acesa imediatamente a luz do travão do veículo da arguida, o que mais revela que a arguida deve ter sabido da ocorrência do embate; se não tivesse sabido da ocorrência do embate, não seria necessário, de acordo com a lógica, aplicar o travão no troço da via de trânsito em causa.
4. Das imagens de gravação visual então feita sobre o local de ocorrência dos factos, em conjugação com as fotografias constantes de fl. 14 dos autos, vê-se o seguinte:
– antes de, e mesmo depois de, a pessoa condutora do veículo de cor branca n.o MT-**-*9 de marca Toyota abrir a porta do assento de condutor e entrar neste veículo, e até antes da iniciação da marcha para frente deste veículo, não houve qualquer pessoa a abrir a porta do assento de passageiro de frente do mesmo veículo ou a entrar neste assento de passageiro de frente;
– a luz do travão do veículo de cor branca n.o MT-**-*9 de marca Toyota ficou de imediato acesa por um instante quando este veículo estava a passar pela frente da cabeça do veículo n.o MT-*4-**, aí estacionado em posição perpendicular ao sentido de marcha daquele;
– e depois de passar totalmente pela frente da cabeça do veículo MT-*4-**, o veículo branco n.o MT-**-*9 continuou a marchar para frente, e a luz do travão deste ficou outra vez acesa por um instante, mais longo do que naquela primeira vez, quando estava prestes a virar pela directa.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação, a recorrente começou por assacar à decisão condenatória penal dela o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, e depois também o vício de contradição insanável da fundamentação aludido na alínea b) do n.o 2 do mesmo artigo. Entrentato, os argumentos concretamente tecidos por ela para sustentar a existência deste segundo vício já têm a ver materialmente com a análise das provas, pelo que ao fim e ao cabo se reconduzem, concretamente, ao âmbito daquele primeiro vício. Daí que é de conhecer apenas da verificação, ou não, do vício de erro notório na apreciação da prova.
A propósito da temática do julgamento de factos, é sempre útil relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da sentença recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, na parte sindicada pela arguida ora recorrente, o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador.
Com efeito, o Tribunal recorrido já explicou, aliás, bem congruente e, portanto, convincentemente (a partir do último parágrafo da página 3 até ao primeiro parágrafo da página 4, do texto da sua sentença), as razões por que julgou que a arguida devia ter sentido o embate entre os dois veículos e ter sabido da ocorrência da colisão entre os mesmos. De frisar que a interpretação feita pelo Tribunal recorrido sobre as imagens de gravação visual condiz com essas imagens (e efectivamente, na primeira vez em que ficou acesa a luz do travão do veículo conduzido pela arguida, este veículo ainda não estava preparado para virar pela direita).
E quanto ao alegado grau muito leve do embate: apesar da compreensível facilidade de se quebrar uma chapa de matrícula feita com material plástico do que com material metálico, o facto provado de estar partida a chapa de matrícula do veículo n.o MT-*4-** por efeito do embate causado pelo veículo n.o MT-**-*9 reflectiu, objectivamente, que o embate deste naquele não foi de grau leve; e a quantia de oitocentas patacas para reparação do estrago também não foi de valor diminuto ou insignificativo; e a fraca capacidade de audição da orelha direita da arguida já foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido aquando da livre apreciação da prova sob o aval do art.o 114.o do CPP, tendo o mesmo Tribunal julgado que o embate devia ter sido sentido pela arguida como condutora, e não que devia ter sido ouvido pela arguida.
Assim, perante a matéria de facto já razoavelmente julgada, sem erro notório na apreciação da prova, pela Primeira Instância, fica precludido o pedido de absolvição da arguida com alegada tese de falta de verificação do dolo (devido, em suma, ao alegado desconhecimento dela da ocorrência do embate do seu veículo no veículo n.o MT-*4-**) na prática do crime de fuga à responsabilidade.
Naufraga, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso, com custas pela arguida, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 21 de Abril de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 160/2021 Pág. 10/11