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Processo n.º 95/2021
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para os Transportes e Obras Públicas
Data da conferência: 22 de Abril de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Plantas de condições urbanísticas (PCU)
- Atribuição da finalidade de uso como “zona verde” dos terrenos pertencentes ao particular
- Direito de construção (“jus aedificandi”)
- Expropriação

SUMÁRIO
1. Sempre que esteja em causa uma parcela ou lote de terreno que se localize em zona do território ainda não abrangida por plano de pormenor, é emitida planta de condições urbanísticas (PCU), a requerimento do interessado quando se destinem a instruir projectos de obras de construção ou ampliação de edificações, sendo que as PCU emitidas pela DSSOPT devem conter, designadamente, os elementos indicados no art.º 59.º da Lei n.º 12/2013, incluindo a finalidade da parcela ou lote de terreno em causa.
2. No que respeita à questão de saber se o jus aedificandi integra, ou não, o conteúdo do direito de propriedade privada, a doutrina divide-se em sentidos opostos, as chamadas tese privatista e tese publicista.
3. Inclinamo-nos para sustentar a tese publicista, segundo a qual o jus aedificandi tem a “natureza jurídico-pública”, sendo que o uso e fruição do direito de propriedade privada pelo seu titular não são livres nem absolutos, mas sim antes se encontram “enquadrados e condicionados em nome da função social que lhe está inerente”.
4. A definição nas PCU impugnadas pela recorrente da finalidade como “zona verde” dos terrenos que lhe pertencem, com o consequente afastamento da faculdade de neles ser efectuada qualquer construção, corresponde ao exercício de um poder discricionário que as normas dos art.ºs 58.º e 59.º da Lei n.º 12/2013 deferem à Administração, sem que se possa ver nessa actuação qualquer confisco invocado pela recorrente.
5. A expropriação por utilidade pública prevista no art.º 37.º da Lei n.º 12/2013 refere-se a um procedimento desencadeado com vista à aquisição de bens privados para a realização dum fim público, passando necessariamente pela negociação prévia sobre o assunto entre a Administração e os particulares proprietários desses bens.
6. A necessidade e exigência legal de esgotar a possibilidade de aquisição por via do direito privado só se aplica aos casos em que esteja em causa um procedimento expropriativo propriamente dito.
7. No nosso caso concreto, estamos perante a emissão das PCU impugnadas a requerimento da recorrente, afectando os seus terrenos a uma finalidade não por si pretendida, nada se permitindo falar no procedimento de expropriação dos mesmos terrenos.
8. A tentativa de aquisição do bem pela via do direito privado é vista como “pré-procedimento expropriativo”.
9. Reconhecendo-se que a afectação das parcelas de terreno pertencente à recorrente a “zona verde” pode causar-lhe prejuízo, as questões relacionadas com a expropriação e com a indemnização decorrente de tal afectação não constituem objecto dos presentes autos de recurso contencioso, que tem por finalidade a anulação dos actos administrativos impugnados ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica (art.º 20.º do CPAC).
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificada nos autos, interpôs recurso contencioso de anulação do acto de indeferimento tácito do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas dos recursos hierárquicos por si interpostos das decisões do Director da Direcção de Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que aprovaram as plantas de condições urbanísticas (doravante designado por PCU) n.º 95A075 e n.º 2017A015.
Por acórdão proferido em 4 de Março de 2021, o Tribunal de Segunda Instância julgou improcedente o recurso (Processo n.º 491/2020).
Inconformada com a decisão, vem agora A recorrer para o Tribunal de Última Instância, suscitando essencialmente as seguintes questões:
- Ao contrário ao entendimento do acórdão recorrido, as PCU n.º 95A075 e n.º 2017A015 infringem o Despacho do Chefe do Executivo n.º 83/2008, pelo que o acórdão recorrido padece do vício de violação e/ou de errada aplicação de lei.
- As ordens referidas no PCU n.º 95A075 configuram um “confisco” do terreno da Recorrente, porquanto viola o art.º 6.º da Lei Básica, os art.ºs 37.º e 38.º da Lei n.º 12/2013.
- As duas PCU, ao impedirem em absoluto qualquer tipo de construção, violam o art.º 37.º da referida Lei n.º 12/2013, por configurarem uma verdadeira expropriação de facto ou, melhor, um confisco de direitos.
Contra-alegou a entidade recorrida, entendendo que deve ser negado provimento ao recurso jurisdicional, mantendo-se o acórdão recorrido.
E o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso jurisdicional.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
É dado como assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
1. A Recorrente é proprietária do terreno junto à Estrada de Cacilhas com a área de 2586,1200 m2, descrito sob o nº XXXXX, a fls. XXX, do liv. BXX e do outro terreno junto à mesma Estrada, com a área de 600 m2, descrito sob o nº XXXXX, a fls. XXv, do liv. BXX.
2. No dia 14 de Março de 2017, a Recorrente, através do seu procurador, apresentou na Direcção de Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, o pedido de emissão de plantas de condições urbanísticas (PCU) para os referidos terrenos.
3. Em 23 de Janeiro de 2019, após o pagamento das taxas devidas, a Recorrente levantou as PCUs nºs 95A075 e 2017A015, datadas de 10/01/2019 e 11/01/2019, respectivamente.
4. A PCU nº 95A075 estabelece as seguintes condições urbanísticas:
i. Finalidade: zona verde.
ii. Legenda:
a) Área delimitada a cor verde: “A fim de proteger a integridade do perfil da colina da guia e de S. Januário, a parcela de terreno deve se destinada a tratamento paisagístico.”
b) Área delimitada a cor amarela: “Parcela de terreno destinada a via pública, devendo para o efeito ser desocupada e integrada no domínio público da RAEM.”
c) Área delimitada a cor cor-de-rosa: “A fim de obedecer às exigências da reformação do terreno, esta parcela de terreno deve ser integrada no domínio privado da RAEM”.
5. A PCU nº 2017A015 estabelece as seguintes condições urbanísticas:
i. Finalidade: zona verde.
ii. Área delimitada a cor verde: “A fim de proteger a integridade do perfil da colina da guia e de S. Januário, a parcela de terreno deve ser destinada a tratamento paisagístico”.
6. Em 22/02/2019, a Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas das decisões do Director da DSSOPT que aprovaram as PCUs acima em referência.
7. O Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas não se pronunciou sobre esses recursos hierárquicos necessários no prazo legal.
8. Na mesma data da apresentação dos recursos hierárquicos (dia 22/02/2019), o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicos mandou a DSSOPT para se pronunciar sobre os recursos hierárquicos interpostos.
9. Os recursos hierárquicos foram assim remetidos à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, tendo o Director lavrado o seguinte despacho: “Ao DPU (c/ apoio do DJU, se necessário)”.
10. Em 05 de Março de 2019, o Departamento de Planeamento Urbanístico (DPU) elaborou a proposta nº XXXX/DPU/2019, sugerindo que fossem remetidos ao Departamento Jurídico (DJUDEP) para apreciar os dois recursos hierárquicos.
11. O Director da DSSOPT em 08 de Março de 2019, exarou sobre a proposta nº XXXX/DPU/2019, o seguinte despacho: “先行咨詢法律廳意見”, (em português: “Peça primeiro o parecer do DJUDEP”).
12. Em 15 de Março de 2019, o DJUDEP, através da Comunicação de serviço interno nº XXX/DJUDEP/2019, solicitou ao DPU o envio dos processos nºs 95A075 e 2017A015.
13. O DPU, em 20 de Março de 2019, remeteu ao DJUDEP os processos nºs 95A075 e 2017A015.
14. O Director da DSSOPT, em 28 de Março de 2019, endereçou ao Mandatário da Recorrente o ofício nº XX/DJUDEP/2019 no qual se diz o seguinte:
“Relativamente dois recursos hierárquicos interpostos por V. Exa., ambos em 22 de Fevereiro de 2019, e na sequência do despacho do director de 8 de Março de 2019, exarado na proposta nº XXXX/DPU/2019, de 5 de Março, foi solicitado ao Departamento Jurídico, em 11 de Março de 2019, a emissão de parecer. Deste modo, informa-se que esta Direcção de Serviços ainda se encontra a analisar o assunto, sendo-lhe oportunamente comunicado a decisão sobre os referidos recursos.”.

3. Direito
Imputa a recorrente o vício da violação e da errada aplicação de lei, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e a subsequente anulação das decisões do Director da DSSOPT que estabeleceram as condições urbanísticas dos terrenos a que se referem as PCUs n.ºs 95A075 e 2017A015.
Vejamos se assiste razão à recorrente.

3.1. Das plantas de condições urbanísticas
Sobre a matéria ora em causa, estabelece-se na Lei n.º 12/2013 (Lei do Planeamento Urbanístico) o regime jurídico do planeamento urbanístico, que se aplica à elaboração, aprovação, execução, revisão e alteração dos planos urbanísticos.
E entende-se por planta de condições urbanísticas (PCU) “o documento emitido pela DSSOPT que contem, designadamente, o alinhamento, a finalidade e as condições de edificabilidade de uma determinada parcela ou lote de terreno” (al. 4 do art.º 2 da Lei n.º 12/2013).
No que respeita a plantas de condições urbanísticas de zona do território não abrangida por plano de pormenor, encontram-se na mesma Lei as normas próprias que regulam a emissão, o conteúdo, o prazo de validade, a alteração e revogação bem como a caducidade das PCU, incluindo os art.ºs 58.º e 59.º que dispõem o seguinte:
“Artigo 58.º
Emissão
1. Após a entrada em vigor da presente lei, em substituição das plantas de alinhamento oficial, previstas no Regulamento Geral da Construção Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M, de 21 de Agosto, a DSSOPT passa a emitir plantas de condições urbanísticas, adiante designadas por PCU, nos termos da presente lei, desde que a parcela ou lote de terreno a que se destinem se localize em zona do território ainda não abrangida por plano de pormenor.
2. As PCU são emitidas a requerimento do interessado quando se destinem a instruir projectos de obras de construção ou ampliação de edificações ou, oficiosamente, pela DSSOPT, quando se destinem a instruir processos de concessão de terrenos do Estado.
3. Quando a obra de construção ou ampliação de edificação possa ter impacto na salvaguarda do património cultural, na protecção do ambiente ecológico ou no ordenamento viário, a DSSOPT deve solicitar a emissão de parecer aos serviços da Administração Pública com atribuições nesses domínios.
4. Antes da emissão das PCU deve ser ouvido o CPU, sobre o seu conteúdo, podendo ser dispensada a sua audição, por decisão do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, quando se verifique uma das seguintes situações:
1) O IC tenha emitido parecer sobre a emissão da planta nos termos do número anterior;
2) A planta se destine à execução de obras de construção ou ampliação de edifícios da classe P (pequeno) ou M (médio), nos termos do disposto no Regulamento Geral da Construção Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M, de 21 de Agosto;
3) Se trate da emissão de uma nova planta sem alteração do conteúdo da anteriormente emitida.
Artigo 59.º
Conteúdo
As PCU contêm, designadamente:
1) A linha fixada pela DSSOPT que define o alinhamento da fachada a arruamentos ou vias públicas que dão serventia à parcela ou lote de terreno;
2) A finalidade da parcela ou lote de terreno a que respeitam;
3) As condições de edificabilidade, designadamente os índices de ocupação e de utilização dos solos máximos permitidos e a altura máxima permitida dos edifícios, e as directivas de desenho urbano;
4) A representação das infra-estruturas públicas da zona envolvente à parcela ou lote de terreno;
5) Os encargos especiais a suportar pelo futuro concessionário da parcela ou lote de terreno, quando aplicável.”
E nos termos do art.º 63.º, “As demais regras procedimentais relativas a emissão, alteração e revogação das PCU, designadamente as relacionadas com competências dos serviços da Administração Pública e prazos procedimentais, são fixadas em regulamento administrativo complementar”.
Por outro lado, sendo regulamento administrativo complementar, o Regulamento Administrativo n.º 5/2014 “tem como objecto a regulamentação da Lei n.º 12/2013” e dedica os seus art.ºs 27.º a 35.º ao procedimento tendente à emissão, à alteração e à revogação de “plantas de condições urbanísticas de zona do território não abrangida por plano de pormenor”.
Decorre dessas normas que, sempre que esteja em causa uma parcela ou lote de terreno que se localize em zona do território ainda não abrangida por plano de pormenor, é emitida planta de condições urbanísticas (PCU), a requerimento do interessado quando se destinem a instruir projectos de obras de construção ou ampliação de edificações, sendo que as PCU emitidas pela DSSOPT devem conter, designadamente, os elementos indicados no art.º 59.º da Lei n.º 12/2013, incluindo a finalidade da parcela ou lote de terreno em causa.
É de salientar que, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 58.º da Lei n.º 12/2013, se a obra de construção ou ampliação de edificação puder ter impacto na salvaguarda do património cultural, na protecção do ambiente ecológico ou no ordenamento viário, a DSSOPT deve solicitar, antes de emitir as PCU, a emissão de parecer aos serviços da Administração Pública com atribuições nos respectivos domínios.
Por outras palavras, a definição da finalidade dos terrenos localizados em zona do território ainda não abrangida por plano de pormenor está dependente das PCU e, para protecção de vários interesses, incluindo a salvaguarda do património cultural, as PCU só devem ser emitidas após o parecer dos respectivos serviços da Administração Pública.
“Como facilmente se percebe, estes instrumentos contêm um conteúdo equivalente a um plano de pormenor, e substituem, …, as plantas de alinhamento oficial, previstas no Regulamento Geral da Construção Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 79/85/M, de 21 de Agosto, para as quais este diploma previa um conteúdo mais restrito”, razão pela qual estas planta de alinhamento não estavam minimamente adequadas à realidade urbanística existente, em especial após a liberalização do jogo e o grande desenvolvimento económico e urbanístico verificado na RAEM.
“Não obstante a proximidade de conteúdo e de procedimento, as PCUs não são instrumentos de planeamento. Por um lado, porque se referem, de forma directa e imediata, às condições de realização de uma concreta e determinada intervenção urbanística, definindo as condições em que esta pode ser realizada e, nesta medida, assumem a natureza jurídica de atos administrativos (forma de atuação administrativa destinada a uma situação concreta e esgotando nela os seus efeitos), ao contrário dos planos, que assumem a natureza de atos normativos (portanto, gerais e abstractos e com uma pretensão imanente de duração).”
E “Comparando esta figura com realidades existentes noutros ordenamentos jurídicos, podemos afirmar que as PCU têm uma configuração próxima de uma informação prévia consagrada na legislação urbanística portuguesa, …, a qual, quando favorável, define de forma antecipada (ainda que temporalmente limitada), as condições do licenciamento de uma dada intervenção urbanística, sendo, por isso, constitutiva de direitos: não do direito de edificar (que apenas resulta da licença), mas do direito do interessado à obtenção da licença se a mesma for requerida num determinado prazo … e o projecto cumprir as condições definidas na informação prévia. Trata-se de um ato prévio de natureza verificativa e sem carácter permissivo, na medida em que não é com base nele que o particular pode promover e executar a operação urbanística; para tal, o particular terá de dar início a outro procedimento tendente ao licenciamento dessa operação, sendo a licença o ato que se pronuncia, de forma final e definitivas, sobre a mesma, tendo, por isso, natureza permissiva”.1
Ficando assim esclarecida a natureza como acto administrativo das PCU, é de dizer que, quando requerido pelo particular para instruir projectos de obras de construção, a pretensão do interessado pode ser, ou não, satisfeita, consoante ser favorável ou desfavorável o sentido da PCU.
Por outro lado, na emissão das PCU, a Administração goza de uma discricionariedade muito ampla, pois na matéria de planeamento se nota “uma ampliação quantitativa dos poderes de decisão das entidades administrativas”, e “a discricionariedade de planeamento corresponde ao mesmo fenómeno de complementação do tipo legal em que se traduz a discricionariedade administrativa geral, mas com um aumento exponencial do poder de decisão do agente que muitos colocam perto da criatividade. Trata-se, pois, dentro da variedade de fenómenos que se podem reconduzir à discricionariedade administrativa, daquele que corresponde ao seu grau máximo”.2
No caso vertente, estamos perante os actos de carácter desfavorável, pois a Administração, no exercício do poder discricionário, definiu nas PCU impugnadas a finalidade dos terrenos pertencentes à ora recorrente como “zona verde”, o que afasta o futuro aproveitamento dos mesmos terrenos com edificação de construção, contrariamente à pretensão da recorrente.

3.2. Do despacho do Chefe do Executivo n.º 83/2008
Na tese da recorrente, ao entender que as PCU n.º 95A075 e n.º 2017A015 não infringem o Despacho do Chefe do Executivo n.º 83/2008, o acórdão recorrido padece do vício de violação e/ou de errada aplicação de lei, pois os terrenos em causa se inserem na zona de imediações do Farol da Guia aprovadas por Despacho do Chefe do Executivo n.º 83/2008, que determina a finalidade da subzona 3-1 da zona 3 (onde se situam os terrenos da recorrente) é para “Construção de Instalações Públicas”, e não para “tratamento paisagístico” ou “zona verde”, enquanto as PCU em causa foram emitidas com finalidade para “zona verde”.
O Despacho do Chefe do Executivo n.º 83/2008 destina-se a fixar as cotas altimétricas máximas da construção de edifícios nas zonas de imediações do Farol da Guia, entre as quais se conta a referida subzona 3-1 da zona 3, com o seguinte teor:
“1. As cotas altimétricas máximas permitidas para a construção de edifícios nas zonas de imediações do Farol da Guia são as fixadas nas plantas em anexo, que fazem parte integrante do presente despacho.
2. Consideram-se zonas de imediações do Farol da Guia, as que se encontram demarcadas e assinaladas com os n.ºs 1 a 11 nas respectivas plantas.
3. O presente despacho entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.”
No que concerne à finalidade da subzona 3-1 da zona 3, constata-se na planta anexa ao referido Despacho o seguinte: “finalidade permitida para construção: instalações públicas”.
Desde logo, é de salientar que o referido Despacho do Chefe do Executivo tem como finalidade primacial a determinação das cotas altimétricas máximas permitidas para a construção de edifícios nas zonas de imediações do Farol da Guia, face à sua classificação como património mundial pela UNESCO e à necessidade de tal determinação.
Mesmo admitindo a definição das concretas condicionantes urbanísticas neste Despacho para a subzona 3-1, alegada pela recorrente, certo é que dessa definição da finalidade nunca a recorrente pode tirar qualquer aproveitamento, pois está expressamente previsto que tal zona se destina a “instalações públicas”, e não à utilidade privada.
De facto, numa interpretação que se nos afigura mais adequada do dito despacho, na parte que interessa nos presentes autos, achamos que, não obstante a utilização da expressão “construção”, o que se releva mais não é a afectação à finalidade de construção da subzona 3-1, mas antes à utilidade pública da mesma.
Daí que se permite dizer que, tal como afirma o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, do Despacho do Chefe do Executivo não resulta qualquer vinculação para a Administração relativamente à definição da finalidade das parcelas ou lotes de terreno que integram a dita subzona 3-1, incluindo os terrenos da recorrente, nada impedindo a sua afectação, pela Administração, à “zona verde”, finalidade esta que foi definida nas PCU emitidas.
Não se vislumbrando o vício imputado pela recorrente, é de improceder a argumentação da recorrente.

3.3. Da violação do art.º 6.º da Lei Básica e dos art.ºs 37.º e 38.º da Lei n.º 12/2013
Alega a recorrente que a atribuição da finalidade de uso como “zona verde” dos seus terrenos é também uma violenta afronta ao seu direito de construir, ao jus aedificandi, o que equivale a um autêntico confisco ou esbulho dos seus bens, em clara colisão com o art.º 6.º da Lei Básica e os art.ºs 37.º e 38.º da Lei n.º 12/2013.
Está em discussão o direito de construção (“jus aedificandi”) nos terrenos em causa.
Nos termos do art.º 6.º da Lei Básica, “O direito à propriedade privada é protegido por lei na Região Administrativa Especial de Macau”.
No que respeita à questão de saber se o jus aedificandi integra, ou não, o conteúdo do direito de propriedade privada, a doutrina divide-se em sentidos opostos, como é sabido.
É de transcrever aqui as seguintes considerações do Digno Magistrado do Ministério Público tecidas no seu parecer, que merecem a nossa concordância:
«Trata-se de uma questão complexa que tem dividido a doutrina portuguesa entre os Autores que defendem a chamada tese privatista, que, com base, essencialmente, na norma do Código Civil português equivalente ao artigo 1229.º do nosso Código Civil, considera que o jus aedificandi faz parte do conteúdo constitucionalmente protegido do direito de propriedade (entre outros, José de Oliveira Ascensão, Diogo Freitas do Amaral, Miguel Nogueira de Brito, entre outros) e os Autores que sustentam a denominada tese publicista que, no essencial sustenta que o jus aedificandi corresponde a uma atribuição jurídico-pública atribuída pela autoridade pública, segundo as regras e pressupostos que são próprios do Direito Público (entre outros, Fernando Alves Correia, Maria da Glória Garcia, Fernanda Paula Oliveira).
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, ao contrário, o entendimento segundo o qual, o jus aedificandi não se apresenta como parte integrante do direito de propriedade privada, mas como mera concessão jurídico-pública resultante, em regra, dos planos urbanísticos, tem sido unânime (assim, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18.6.1998, processo n.º 041653, de 16.11.1999, processo n.º 035723, de 1.2.2001, processo n.º 46825, de 10.10.2002, processo n.º 912/02 e de 8.01.2009, processo n.º 0633/08, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Neste entendimento o jus aedificandi tem, pois, «natureza jurídico-pública, não se configurando como uma faculdade ínsita no conteúdo prévio e substancial do direito de propriedade privada, o que determina que o respectivo uso e fruição pelo seu titular não sejam livres nem absolutos, antes se apresentando como juspublicisticamente enquadrados e condicionados em nome da função social que lhe está inerente» (assim, FERNANDA PAULA OLIVEIRA, O direito de edificar: dado ou simplesmente admitido pelo plano?, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 43, p. 52).
Também entre nós, segundo cremos, se deve adoptar a chamada tese publicista, embora não possamos deixar de salientar que o contexto normativo português e o nosso apresentam, neste particular, diferenças muito significativas que colocam alguma dificuldade a uma simples transposição de soluções.
Seja como for, não pode deixar de reconhecer-se que, ao menos desde a entrada em vigor da Lei n.º 12/2013, a definição da finalidade dos terrenos passou a estar dependente dos planos urbanísticos e, enquanto estes não estiverem concretizados, das PCU, pelo que, parece pacífico, destas sempre dependerá a possibilidade e o modo do exercício do chamado jus aedificandi.
Sendo isto assim, propendemos a considerar que, no caso, a definição feita pelas impugnadas PCU da finalidade das parcelas de terreno que pertencem à Recorrente como «zona verde», com o consequente afastamento da faculdade de nelas ser efectuada qualquer construção corresponde ao exercício de um poder discricionário que as normas dos artigos 58.º e 59.º da Lei n.º 12/2013 deferem à Administração, sem que se possa ver nessa actuação qualquer confisco.»
Na óptica da recorrente, que cita os Professores José de Oliveira Ascensão e Freitas do Amaral, o direito de construir integra o núcleo essencial do direito de propriedade, entendimento este que tem o apoio nos art.ºs 1417.º e 1421.º do Código Civil de Macau.
Ora, salvo o muito respeito por entendimento diverso, inclinamo-nos para sustentar a tese defendida pelo Ministério Público, a chamada tese publicista, segundo a qual o jus aedificandi tem a “natureza jurídico-pública”, sendo que o uso e fruição do direito de propriedade privada pelo seu titular não são livres nem absolutos, mas sim antes se encontram “enquadrados e condicionados em nome da função social que lhe está inerente”.
Na realidade, e repetindo, conforme a estatuição nos art.ºs 58.º e 59.º da Lei n.º 12/2013, a definição da finalidade dos terrenos localizados em zona do território ainda não abrangida por plano de pormenor está dependente das PCU em que, quando está em causa a protecção de vários interesses, incluindo a salvaguarda do património cultural e após o parecer dos respectivos serviços da Administração Pública, é definida a finalidade dos terrenos que pertençam aos particulares.
Tal como entende o Digno Magistrado do Ministério Público, a definição nas PCU impugnadas pela recorrente da finalidade como “zona verde” dos terrenos que lhe pertencem, com o consequente afastamento da faculdade de neles ser efectuada qualquer construção, corresponde ao exercício de um poder discricionário que as normas dos art.ºs 58.º e 59.º da Lei n.º 12/2013 deferem à Administração, sem que se possa ver nessa actuação qualquer confisco invocado pela recorrente.

Por outro lado, dispõem os art.ºs 37.º e 38.º da Lei n.º 12/2013 o seguinte:
“Artigo 37.º
Expropriação por causa de utilidade pública
1. O Governo só pode expropriar, por causa de utilidade pública, os bens imóveis e direitos a eles inerentes que sejam necessários a execução dos planos urbanísticos após se ter esgotado a possibilidade de aquisição por via do direito privado.
2. Para efeitos do número anterior, podem ser expropriadas, designadamente, as faixas adjacentes necessárias a abertura, alargamento ou regularização de ruas, praças, jardins ou outros lugares públicos.
3. A indemnização devida pela expropriação deve corresponder ao valor real da propriedade no momento da expropriação, e ser livremente convertível e paga sem demora injustificável.
Artigo 38.º
Legislação complementar
Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo anterior, à expropriação são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a Lei n.º 12/92/M, de 17 de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 43/97/M, de 20 de Outubro.”
As normas acabadas de transcrever são as únicas inseridas no capítulo VII da Lei n.º 12/2013, que se dedica a “expropriação de bens imóveis e direitos a eles inerentes”.
A Lei n.º 12/92/M regula o regime das expropriações por utilidade pública, estabelecendo as bases gerais do instituto, em que, ao lado de repetir a garantia de direito privado, se prevê a possibilidade de expropriação, por causa de utilidade pública e mediante o pagamento de uma justa indemnização, de bens imóveis e direitos a eles inerentes, sendo certo que, em princípio, a expropriação só pode ter lugar após se ter esgotado a possibilidade de aquisição por via do direito privado (art.ºs 1 e 2 da Lei).
Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 43/97/M foi decretado no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 12/92/M, sendo diploma complementar desta Lei, em que se notam “duas ideias mestras: a alteração da tramitação processual com vista a evitar a excessiva morosidade dos processos e a consagração de um conjunto de regras que visam garantia de forma mais adequada a defesa dos direitos dos expropriados”.
Na tese da recorrente, ao impedirem em absoluto qualquer tipo de construção, as duas PCU que estão em causa violam o art.º 37.º da Lei n.º 12/2013, por configurarem uma verdadeira expropriação de facto; e sempre que o Governo pretenda emitir uma PCU que esvazie por completo o direito de propriedade de um particular, quer impedindo-o de construir em absoluto, quer decidindo que uma parte da terra se destina à construção de vias públicas, tem o imperativo legal de esgotar todas as possibilidades de consenso com o particular, “esgotando as possibilidades de aquisição por via do direito privado”.
Ora, definindo o conceito da figura em causa, entende-se que a expropriação em sentido clássico “pressupõe, como seus elementos caracterizadores, a privação ou subtracção de um bem ou direito e a sua apropriação por um sujeito diferente para a realização de um fim público, …”.
“Trata-se, assim, um procedimento de aquisição de bens com vista à prossecução de um interesse público ou um fim de utilidade pública.
No âmbito da gestão urbanística enquadrada por instrumentos de planeamento urbanístico, designam-se estas expropriações de acessórias aos planos, isto é, promovidas com vista à aquisição dos terrenos necessários à concretização dos destinos previstos nos planos urbanísticos em vigor (cfr. artigo 37.º da Lei n.º 12/2013), distintas, por isso, das expropriações dos planos.”
E fala-se num procedimento expropriativo, considerando que:
“A expropriação, mais do que um ato ablatório ou limitador do direito de propriedade, é um procedimento de aquisição de bens ou direitos, com vista à realização de um interesse público.
O procedimento de expropriação é composto, por regra, por dois momentos distintos3: um procedimento administrativo, que consiste no conjunto de atos que gravitam em torno do ato de declaração da utilidade pública, e um processo judicial, que é de ocorrência eventual (apenas quando não tenha havido acordo quanto ao montante expropriativo), que abrange os atos relacionados com a discussão litigiosa do valor da indemnização, de competência dos tribunais.
Pode-se dizer que a expropriação é, genericamente, um ato de autoridade aniquilador ou destruidor do direito de propriedade privada de conteúdo patrimonial com base em motivos de utilidade pública ou de interesse geral. Falar em procedimento expropriativo significa, pois, falar num procedimento administrativo que desencadeia num ato de autoridade, ou seja, num ato administrativo. A expropriação aparece, assim, como o resultado de uma potestas administrativa emergente de disposições legais e não de relações jurídicas concretas de tipo negocial com os particulares. Nesta perspetiva, o ato principal do procedimento, o seu momento constitutivo ou o ato chave é a declaração de utilidade pública, na medida em que é este o ato que contém em si o sacrifício do direito de propriedade do particular.
De acordo com o que vimos de dizer, a expropriação (em sentido clássico) é um instrumento jurídico de direito público de aquisição de bens, distinguindo-se, desde logo, dos meios jurídicos-privados.
Daqui decorre que a designada “aquisição por via de direito privado” referida no artigo 2.º da Lei n.º 12/92/M não se encontra ainda no procedimento expropriativo, embora apenas possa ser compreendido em função dele.
Relacionada com esta questão está uma outra, que é a de saber em que momento ou qual o ato que dá início ao procedimento expropriativo. Para o efeito, deve ter-se em consideração que a noção de procedimento administrativo não abrange todos os atos jurídicos eventualmente relacionados com a decisão a produzir. Em sentido técnico, não entram no procedimento atos que a sua instauração pressupõe, mas apenas aqueles que são praticados em função da decisão final. Ora, de acordo com esta conceção, não nos parece que a referida “aquisição pela via de direito privado” possa ser já considerada como um trâmite do procedimento administrativo de expropriação, na medida em que ela não visa, de forma imediata, a declaração da utilidade pública (ato que, como referimos, é o ato central do procedimento expropriativo), mas sim, como o próprio nome indica, tem por objetivo imediato a aquisição do bem por uma via diferente da via expropriativa. Claro que, tratando-se de uma aquisição prévia ao desencadear de um procedimento administrativo (expropriativo), compreende-se que esteja sujeita a regras precisas e definidas na lei. A isto voltaremos um pouco mais à frente. Por agora pretendemos apenas realçar que iniciando-se o procedimento expropriativo com o requerimento a pedir a declaração de utilidade pública, (artigo 1.º do Decreto-lei n.º 43/97/M) todos os atos jurídicos que a lei obriga que tenham lugar antes da sua remessa, na medida que se trata de atos que o procedimento de expropriação pressupõe, devem ser integrados numa fase que pode ser apelidada de pré-procedimento expropriativo4.” 5
Assim, a tentativa de aquisição do bem pela via do direito privado é vista como “pré-procedimento expropriativo”.
Expostas tais considerações, afigura-se-nos dever concluir que a expropriação por utilidade pública prevista no art.º 37.º da Lei n.º 12/2013 refere-se, sem dúvida, a um procedimento desencadeado com vista à aquisição de bens privados para a realização dum fim público, passando necessariamente pela negociação prévia sobre o assunto entre a Administração e os particulares proprietários desses bens.
Evidentemente, a necessidade e exigência legal de esgotar a possibilidade de aquisição por via do direito privado só se aplica aos casos em que esteja em causa um procedimento expropriativo propriamente dito.
No nosso caso concreto, estamos perante a emissão das PCU impugnadas a requerimento da recorrente, afectando os seus terrenos a uma finalidade não por si pretendida, nada se permitindo falar no procedimento de expropriação dos mesmos terrenos.
E não podemos deixar de concordar com a interpretação das PUC feita pelo acórdão ora recorrido, no sentido de considerar que «as duas frases “devendo para o efeito ser desocupada e integrada no domínio público da RAEM” e “esta parcela de terreno deve ser integrada no domínio privado da RAEM” são, tão-só e simplesmente, a mera informação sobre o futuro destino destas duas parcelas» e «é sem sombra de dúvida que a PCU n.º 95A075 não tem propósito nem virtude de substituir a expropriação, de privar a recorrente da sua propriedade privada ou de integrar tais parcelas respectivamente no domínio público e domínio privado da RAEM».
Finalmente, é de dizer que, reconhecendo-se que a afectação das parcelas de terreno pertencente à recorrente a “zona verde” pode causar-lhe prejuízo, as questões relacionadas com a expropriação e com a indemnização decorrente de tal afectação não constituem objecto dos presentes autos de recurso contencioso, que tem por finalidade a anulação dos actos administrativos impugnados ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica (art.º 20.º do CPAC).

Concluindo, é de negar provimento ao presente recurso jurisdicional.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça fixada em 6 UC.

                 Macau, 22 de Abril de 2022
                 Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Cfr. Fernanda Paula Marques de Oliveira, Manual de Direito do Urbanismo, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2019, pag.s 63 a 66.
2 Cfr. Fernanda Paula Oliveira, A Discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática Geral da Discricionariedade Administrativa, 2011, pag.s 114 e 115.
3 Para além do procedimento a que nos referimos no texto, que podemos designar de procedimento expropriativo normal, o legislador prevê, ainda, o procedimento de expropriação em casos excecionais (quando a necessidade de expropriação decorra de calamidade pública ou de exigências de segurança interna) – situação em que as autoridades públicas designadas podem tomar posse imediata dos bens destinados a prover às necessidades de interesse público, sem qualquer formalidade, indemnizando os interessados, nos termos gerais (artigo 3.º da Lei n.º 12/92/M) – e o procedimento de expropriação com caráter de urgência (em que se dispensam algumas exigências de instrução do pedido e que têm como consequência mais imediata conferir à entidade expropriante a posse administrativa imediata dos bens a expropriar – artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 43/97/M.
4 Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. II, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 375 e ss. e “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999”, in. Separata da Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, 2000, pp. 93 e ss.
5 Cfr. Fernanda Paula Marques de Oliveira, Manual de Direito do Urbanismo, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2019, pag.s 87 a 88 e 93 a 95.
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Processo n.º 95/2021