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Processo n.º 10/2022
Recurso Civil
Recorrente: A
Recorridas: B, C, D (Companhia de Seguros) e E (Companhia de Seguros)
Data da conferência: 1 de Abril de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai

Assuntos: - Responsabilidade civil por factos ilícitos
- Pressupostos
- Nexo de causalidade

SUMÁRIO
1. Nos termos do art.º 477.º n.º 1 do Código Civil, são pressupostos da responsabilidade civil de indemnização o facto ilícito, a culpa do lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
2. No âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos, todos os pressupostos da responsabilidade (ilicitude do facto, culpa, dano e nexo de causalidade) devem ser provados pelo lesado, autor da acção de responsabilidade, na medida em que são factos constitutivos do direito alegado.
3. Na determinação da obrigação de indemnização é actualmente adoptada a teoria de causalidade adequada entre o facto e o dano, segundo a qual o facto tem de ser adequado para produzir o dano, sendo este efeito adequado daquele facto.
4. No caso vertente, e na falta de outros elementos e provas, do facto de não se registar anormalidade no estado físico da Autora e do feto, que não tinha qualquer deformação principal ou secundária (mas sofrera autólise e lesão hipóxico-isquémica), nem se verificar qualquer problema de fertilidade na Autora e no seu marido não pode deduzir que a morte do feto foi provocada pelos exercícios físicos de fisioterapia que a Autora tinha feito.
5. A fixação de indemnização por factos ilícitos exige a verificação cumulativa de todos os pressupostos legais.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A intentou no Tribunal Judicial de Base uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra B e C, em que foi admitida a intervenção principal da D e da E, todas com os mais sinais indicados nos autos, pedindo a condenação destas no pagamento da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais na quantia total de MOP 3.003.343,00, incluindo:
1. Todos os danos patrimoniais da Autora, no montante de MOP 3.343,00;
2. Os danos não patrimoniais da Autora, no valor não inferior a MOP 3.000.000,00; e,
3. As despesas médicas e medicamentosas contadas após a data de instauração da acção, sendo liquidadas na altura de execução da sentença;
4. Devendo acrescidos à quantia exequenda, dos juros calculados à taxa legal contados a partir da data da decisão judicial que fixe o respectivo montante.
Por sentença proferida nos autos n.º CV1-17-0036-CAO, foi a acção julgada improcedente e, em consequência, foram as Rés e as intervenientes absolvidas dos pedidos formulados pela Autora (cfr. sentença de fls. 984 a 991v dos autos).
Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso para o Tribunal de Segunda Instância (Processo n.º 405/2021), que decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida (cfr. Acórdão de fls. 1099 a 1114v dos autos).
Vem agora a Autora A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as respectivas alegações (fls. 1124 a 1142 dos autos), e insiste em defender, essencialmente, que existe o nexo de causalidade entre a morte a extracção do feto e os exercícios físicos de fisioterapia prescritos e ministrados atribuindo às Rés a respectiva responsabilidade pelos danos (patrimoniais e não patrimoniais) por si alegados, o que lhe confere o direito de indemnização.
Contra-alegou a D, pugnando pela total improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.

2. Factos
Nos autos foram dados como provados os seguintes factos:
a) A 1.a Ré, B, em chinês, 乙 e, em inglês, B1, é uma sociedade comercial que tem por objecto, a fisioterapia, centro de reabilitação, com sede em Macau, na [Endereço (1)], registada na Conservatória dos Registos Comerciais e de Bens Móveis sob o n.º XXXXX(SO), sendo a 2.a Ré a única sócia e administradora da mesma sociedade.
b) A 1.a Ré, B, em chinês, 乙 é titular da Policlínica denominada “Centro de Fisioterapia X” em chinês, X物理治療中心sito na [Endereço (1)], sendo que esse mesmo estabelecimento se encontra devidamente habilitado pelo Alvará n.º AL/XXX/2012 e pela Licença n.º AL-XXXX, emitidos pela Direcção dos Serviços de Saúde da Região Administrativa Especial de Macau, de forma a exercer a actividade de fisioterapia.
c) A 2.a Ré é fisioterapeuta e encontra-se devidamente registada, para o exercício desta profissão em Macau, nos Serviços de Saúde da Região Administrativa Especial de Macau, sendo titular para esse efeito da licença n.º T/XXX/2012 emitida em 2012 pela Direcção dos Serviços de Saúde, e registada nesses mesmos Serviços com o n.º T-XXXX.
d) A 2.a Ré trabalha como fisioterapeuta no estabelecimento denominado “Centro de Fisioterapia X (X物理治療中心)”, desde 2012, mantendo um vínculo laboral com a 1.a Ré, B (乙).
e) A 2.a Ré e a E celebraram um contrato de seguro respeitante referente à actividade profissional exercida pela 2.a Ré, titulado pela apólice n.º XXXXXXXXXXXX.
f) Ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º XXXXXXXXXXXX, a 2.a Ré transferiu a sua responsabilidade para a E no tocante aos serviços prestados pela 2.a Ré no âmbito da mesma actividade profissional, sendo o valor total seguro de MOP1,000,000.00.
g) A 1.a Ré B e a D, com sede em Macau, na [Endereço (2)], celebraram um contrato de seguro referente à actividade desenvolvida pela 1.a Ré, titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.
h) Ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX, a 1.a Ré B transferiu a sua responsabilidade para a D, no tocante à actividade que o estabelecimento da 1.a Ré (Centro de Fisioterapia X/ X物理治療中心) desenvolve.
i) O contrato de seguro titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX, abrange, também, a actividade profissional dos fisioterapeutas que trabalham no Centro de Fisioterapia X (X物理治療中心), incluindo a 2.a Ré.
j) Em 24 de Março de 2017, a D emitiu a apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX, que titula o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional dos prestadores de cuidado de saúde, celebrado entre esta e o titular do “Centro de Fisioterapia X”.
k) O período de cobertura do contrato de seguro titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX vai de 01 de Abril de 2017 a 31 de Março de 2018.
l) A cobertura do contrato de seguro titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX retroage a 1 de Abril de 2014.
m) A partir de 11 de Junho de 2012, a autora foi contratada por [Resorts], como empregada do sector da restauração.
n) Em 04 de Fevereiro de 2014 a autora, durante o seu trabalho, sofreu um acidente que lhe causou lesões no pé direito.
o) A autora, após o acidente de trabalho ocorrido em 04/02/2014, seguiu, em conformidade com o procedimento, estipulado pela [Resorts], e pela [Insurance Limited], e tratou do respectivo acidente de trabalho e seguro; a autora, conforme o solicitado pelas companhias patronal e de seguro, dirigiu-se ao “X CENTRE” para receber fisioterapia.
p) O 1.º réu, B, organizou a 2.ª ré, como fisioterapeuta responsável da autora, para a respectiva terapia.
q) Alguns dias depois, a autora foi a consulta médica onde se concluiu que em 07/03/2014 a autora estava grávida com uma gestação de 5 semanas e 3 dias na altura e não se registou anormalidade no estado físico da autora e do embrião.
r) Em 29/04/2014, a autora dirigiu-se ao [Centro de Saúde] de Macau para o efeito de exame obstétrico; na altura, não foi registada qualquer anomalia no estado físico da autora e do feto.
s) A autora fez exames médicos nos Serviços de Saúde de Macau nos quais não foi registada qualquer anomalia no estado físico do feto.
t) No dia 03/06/2014 a autora dirigiu-se ao Hospital Conde de S. Januário para a consulta.
u) Após o diagnóstico, verificou-se que o feto da autora se encontrava morto; assim, precisou de se submeter a uma cesariana, a fim de remover o feto.
v) O serviço de anatomia patológica do Complexo Hospitalar Conde de S. Januário de Macau, emitiu em 23/09/2014, um relatório quanto ao resultado da anatomia do feto, revelando que o feto não tinha qualquer deformação principal ou secundária, mas sofrera autólise e lesão hipóxico-isquémica.
w) No feto da autora não havia deficiência congénita.
x) Não se verificou qualquer problema de fertilidade na autora e no marido.
y) A autora teve baixa em 03 de Junho de 2014 para extracção do feto por cesariana.
z) A autora teve alta no dia seguinte, mas precisou de 21 dias para sua recuperação.
aa) Em 2016, a autora engravidou pela terceira vez, porém, com 9 semanas de gestação, sofreu aborto.
bb) No dia 29 de Março de 2014 a Autora deslocou-se à policlínica da 1.a Ré (Centro de Fisioterapia X) e foi recebida pela 2.a Ré para a primeira avaliação e exame da lesão.
cc) De acordo com os procedimentos usualmente seguidos neste tipo de situações a 2.a Ré inquiriu a Autora sobre as circunstâncias do acidente, qual a parte do corpo afectada e as dores que sentia assim como o grau de dificuldade que tinha em andar, em movimentar-se.
dd) A 2.a Ré inquiriu também a Autora sobre a sua história clínica recente no dia 29 de Março de 2014.
ee) A Autora respondeu que, de um modo geral, era saudável, ressalvando que se encontrava grávida, com um período de gestação de cerca 8 semanas.
ff) De seguida a 2.a Ré observou o pé e o tornozelo direito da Autora tendo concluído que esta apresentava no pé direito as lesões melhor descritas na página 178, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
gg) De acordo com as respostas dadas pela Autora às questões colocadas pela 2.a Ré e do diagnóstico efectuado, foi elaborado por este o Relatório de avaliação inicial (Injury Assessment form), em que se concluiu que a Autora sofria de uma contusão no pé direito.
hh) Tendo a Autora, no mesmo momento, preenchido o Questionário Orebro musculoskeletal, que se destina a avaliar se incapacidade física do doente e a impossibilidade de regressar à actividade profissional é causada por factores pessoais ou externos.
ii) De acordo com as respostas fornecidas pela Autora, no âmbito do referido questionário (120 pontos), esta revelou que existia um risco, embora moderado, de incapacidade e impossibilidade em regressar ao seu trabalho.
jj) Considerando a observação do tornozelo, o resultado do questionário Orebro musculoskeletal e o tempo de gestação da Autora (cerca de 8 meses de gravidez), a 2.a Ré elaborou um plano de tratamento e reabilitação da Autora, a ser realizado 3 vezes por semana, no período de 29 Março até finais de Abril de 2014 (cerca de 4 semanas), que incluíam os seguintes exercícios:
a) Usar um saco de areia com 1 libra de peso, virando o tornozelo, os lados exterior e interior: consistia em colocar um saco de areia com 1 libra de peso no extremo da toalha e, com o pé direito, movimentar a toalha até ao extremo;
b) Agarrar uma toalha com os dedos do pé: consistia em colocar o pé direito num extremo da toalha e, com os dedos do pé, agarrar, lentamente, a toalha até ao outro extremo;
c) Esticamento da barriga da perna: consistia em dar passo “lunge”, ou seja, o pé direito ficava atrás, mantendo o alcanhar no chão, inclinar-se para frente até sentir esticada a barriga da perna e aguentar por 10 segundos, repetindo 10 vezes;
d) Segurar o corrimão e flectir a cintura para trás: consistia em agarrar num corrimão e flectir a cintura para trás, repetindo 10 vezes;
e) Esticamento do flanco direito: consistia em curvar, lentamente, o corpo para o lado lateral esquerdo, voltando depois, para o meio, repetindo 10 vezes;
f) Virar o tornozelo para o lado exterior numa faixa elástica de cor verde: consistia em colocar o pé direito dentro da faixa elástica de cor verde, virar o tornozelo direito para o lado exterior; o número de vezes que o paciente conseguisse fazer, dependia da sua situação e capacidade daquele dia; o paciente era livre na sua escolha de repetir entre 10 e 30 vezes;
g) Bicicleta ergométrica: consistia em nível zero de resistência, andar de bicicleta, durante 5 minutos, sob um ritmo em que se sentisse confortável;
h) Segurar o corrimão, treino com placa de equilíbrio (monitorizada a seu lado pelo terapeuta): consistia em segurar o corrimão e, com os pés, ficar em cima da placa de equilíbrio, inclinar a placa, lentamente, de um lado para outro, repetindo 30 vezes; era monitorizada a seu lado pelo terapeuta.
i) Agachamento apoiada na parede: consistia em encostar à parede, agachar, ligeiramente, voltando a ficar de pé, repetindo 10 vezes.
kk) Tratamento que foi estendido por mais tempo em virtude da Autora não estar totalmente recuperada, tendo sido adicionados os seguintes exercícios, com vista à recuperação da Autora, a partir de 28 de Maio de 2014:
a) Esticamento do piriforme (glúteo máximo): consistia em sentar-se numa cadeira, cruzar o pé direito, inclinar o corpo para frente, até sentir no glúteo o máximo a ser esticado, mantendo-se 10 segundos, repetindo 10 vezes;
b) Massagens no piriforme com um rolo de espuma: consistia em sentar-se, estavelmente, em cima do rolo de espuma e ficar com as mãos e os pés acima do chão, movimentando-os, vagarosamente, para frente e para trás; assim, realizava massagens no piriforme, repetindo durante 1 minuto.
ll) No período compreendido entre 29 de Março e 30 de Maio de 2014, a Autora foi submetida a diversos exercícios moderados, em face da sua gravidez, com vista à sua recuperação.
mm) Os exercícios de fisioterapia aplicados à Autora tomaram em consideração o esforço físico recomendável em pacientes gestantes, atendendo que os mesmos não acarretam qualquer risco para as futuras mães nem para o próprio feto.
nn) A 1.ª Ré e 2.ª Ré pagaram, respectivamente, à D (丁) e à E (戊), por agravamento do prémio decorrente da presente acção, o montante de MOP20,000.00.
oo) O valor máximo do seguro do contrato de seguro titulado pela apólice n.º LFH/HMM/2017/XXXXXX limita-se a MOP$1.000.000,00.
pp) Em 31 de Outubro de 2016, a Autora foi à Unidade Técnica de Licenciamento das Actividades Profissionais Privadas de Prestação de Cuidados de Saúde, subordinada à Direcção dos Serviços de Cuidados de Saúde, apresentar queixa contra a 2.a Ré.
qq) Em 24 de Fevereiro de 2017, ao 12.38, a 2.ª Ré enviou um email à D requerendo um pedido de cotação para a clínica, o “Centro de Fisioterapia X”.
rr) No mesmo dia, 24 de Fevereiro de 2017, às 13.08, a D enviou o pedido de cotação e um questionário para ser preenchido.
ss) No mesmo dia, 24 de Fevereiro de 2017, a 2.ª Ré preencheu e enviou o questionário que se junta a fls. 368 a 370 e se considera integralmente reproduzido.
tt) Na página 6 do questionário, pergunta-se se existia algum litígio ou acção judicial por negligência profissional contra a proponente ou se a proponente tinha conhecimento de quaisquer circunstâncias que poderiam resultar em queixas ou litígios contra a mesma, tendo a 2.ª Ré assinalado a resposta “Não”.
uu) A Autora foi submetida a diversos tratamentos de medicina tradicional chinesa, nomeadamente, acupunctura, moxibustão, massagem Tui Na e electroterapia até 3 semanas antes da primeira sessão de fisioterapia no Centro de Fisioterapia X.

3. Direito
Resulta das alegações do recurso apresentadas pela recorrente que esta suscita, no essencial, a questão de nexo de causalidade que constitui fundamento do seu direito de indemnização.
Na óptica da recorrente, o aborto que sofreu foi causado culposamente pelas Rés que, mesmo sabendo que ela estava grávida, continuaram a ministrar-lhe tratamento de fisioterapia excessivamente exigente em termos físicos, que acabou por provocar a morte do feto, pelo que tem a recorrente o direito de ser indemnizada, nos termos dos art.ºs 577.º, 477.º, 489.º n.º 1, 558.º, 556.º e 560.º do Código Civil.
O acórdão ora recorrido confirmou a decisão de primeira instância, a cujos fundamentos aderiu, por entender que nos autos não se fez a prova de que “a fisioterapia era contra-indicada para uma mulher grávida –, ou que haja sido violado um qualquer dever profissional que tenha sido causa directa e necessária da morte do feto”, ao lado que, “de igual modo, não se demonstrou que a morte do feto tivesse resultado da fisioterapia”. Daí que, “ainda antes de se falar em nexo de causalidade não se prova tão que a actuação das Rés haja sido ilícita, no sentido de ter sido contrária à legis artis e subsequentemente ter causado a morte do feto, violando os direitos da Autora”.
Lida a matéria de facto dada como assente pelas duas instâncias e analisada a situação concreta reportada nos presentes autos, não se nos afigura merecer censura a decisão ora posta em causa, que deve ser mantida.
Desde logo, é de salientar que, tal como reparou o Tribunal recorrido, não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto, pois não decorre das conclusões de recurso apresentadas pela Autora para o TSI (nem tão pouco nas alegações) que ela chegou a atacar tal decisão nos termos do art.º 599.º do CPC, pelo que fica inalterada a matéria de facto considerada provada pela primeira instância.
E mesmo no recurso interposto para este TUI, também não se denota nas alegações de recurso a impugnação da matéria de facto, limitando-se a Autora recorrente a dar como integralmente reproduzidos os factos dados como provados no acórdão de 22 de Outubro de 2020 do TJB sobre a matéria de facto e os constantes de fls. 495v a 496 dos autos – al.s A a F6 dos factos assentes (1.ª alínea das conclusões formuladas pela recorrente).
É verdade que a recorrente solicitou o envio de toda a gravação da audiência de julgamento a este TUI e indicou, na apresentação das alegações, o n.º 6 do art.º 613.º do CPC (fls. 1123 e 1124 dos autos), parecendo que pretendia a reapreciação da prova gravada.
No entanto, por não se ter impugnado a matéria de facto na segunda instância nos termos do art.º 599.º do CPC nem se ver preenchidos os pressupostos legais referidos nos art.ºs 649.º n.º 2 e 650.º do CPC, sendo consabido que fica limitado o poder de cognição deste TUI quanto à matéria de facto, não há lugar, mais que evidente, à reapreciação da prova.

Passamos à questão de indemnização.
Nos termos do art.º 477.º n.º 1 do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Daí que são pressupostos da responsabilidade civil de indemnização o facto ilícito, a culpa do lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos, todos os pressupostos da responsabilidade (ilicitude do facto, culpa, dano e nexo de causalidade) devem ser provados pelo lesado, autor da acção de responsabilidade, na medida em que são factos constitutivos do direito alegado.
Preceitua o art.º 480.º do Código Civil o seguinte:
“1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.”
Sobre o nexo de causalidade, dispõe o art.º 557.º do Código Civil que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse lesado”.
Como se sabe, na determinação da obrigação de indemnização é actualmente adoptada a teoria de causalidade adequada entre o facto e o dano, segundo a qual o facto tem de ser adequado para produzir o dano, sendo este efeito adequado daquele facto.
Para o Prof. Almeida Costa, “não há que ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão só os que ele tenha na realidade ocasionado, os que possam considerar-se pelo mesmo produzidos”.
Escreve o mesmo autor que a ideia fulcral da doutrina da causalidade adequada é a seguinte: “considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra adequada a produzi-lo”.1
Na opinião do Prof. Pessoa Jorge, “a teoria da causalidade adequada … parte da situação real posterior ao facto e, normalmente, ao dano e afirma a conexão entre um e outro, desde que seja razoável admitir que o segundo decorreria do primeiro, pela evolução normal das coisas. Numa fórmula sintética, embora pouco elegante, poderíamos dizer que a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que, tendo resultado da lesão, provavelmente (ou seja, em termos de um juízo de probabilidade ex post) dela teriam resultado; ou, numa versão negativa, a obrigação de indemnizar não existe em relação aos danos que, tendo resultado da lesão, todavia, em termos de juízo de probabilidade, dela não resultariam”.
E reconhece-se que no art.º 563.º do Código Civil de Portugal (correspondente ao art.º 557.º do Código Civil de Macau) “se consagrou a teoria da causalidade adequada, pois, ao empregar a palavra «provavelmente», o legislador quis afirmar uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade, entre o facto lesivo e o dano”.2
No ensinamento do Prof. Antunes Varela, do conceito de causalidade adequada, múltiplos corolários úteis se podem extrair:
i) Para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano;
ii) Para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto não é necessário que ele seja previsível para o autor desse facto. Essencial é apenas que o facto constitua, em relação aos danos, uma causa (objectivamente) adequada; e
iii) A causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há de caber na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano.
E “para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é essencial que o facto tenha actuado como condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano”.3
O Prof. Galvão Telles acha que a melhor formulação da teoria da causa adequada é, talvez, a seguinte: “Como causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela irrelevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o risco de verificação do dano”.
“Numa palavra, a acção que é condição ou pressuposto de um dano deixa de ser, e só deixa de ser, sua causa, sob o prisma do Direito, quando com ela concorra, para a produção desse dano, uma circunstância anómala ou extraordinária, sem a qual não haveria um risco, maior do que o comum, de o prejuízo se verificar.”4

Expostas tais considerações doutrinais, é de voltar ao caso concreto.
É inegável que a recorrente sofreu de danos, patrimoniais e não patrimoniais.
Discute-se se as Rés violaram ilicitamente, com culpa, o direito da recorrente.
Há que apurar se as Rés tiveram culpa na ministração dos exercícios físicos de fisioterapia, sabendo que a Autora estava grávida, e se tais exercícios provocaram dano na esfera jurídica da Autora recorrente.
A factualidade assente revela que:
- A Autora, durante o seu trabalho, sofreu um acidente que lhe causou lesões no pé direito.
- Após o acidente de trabalho ocorrido em 04/02/2014, a Autora dirigiu-se ao “X CENTRE” para receber fisioterapia.
- Alguns dias depois, a Autora foi a consulta médica onde se concluiu que em 07/03/2014 a Autora estava grávida com uma gestação de 5 semanas e 3 dias na altura e não se registou anormalidade no estado físico da Autora e do embrião.
- Em 29/04/2014, a autora dirigiu-se ao [Centro de Saúde] de Macau para o efeito de exame obstétrico; na altura, não foi registada qualquer anomalia no estado físico da autora e do feto.
- A Autora fez exames médicos nos Serviços de Saúde de Macau nos quais não foi registada qualquer anomalia no estado físico do feto.
- No dia 03/06/2014 a Autora dirigiu-se ao Hospital Conde de S. Januário para a consulta.
- Após o diagnóstico, verificou-se que o feto da Autora se encontrava morto; assim, precisou de se submeter a uma cesariana, a fim de remover o feto.
- O serviço de anatomia patológica do Complexo Hospitalar Conde de S. Januário de Macau, emitiu em 23/09/2014, um relatório quanto ao resultado da anatomia do feto, revelando que o feto não tinha qualquer deformação principal ou secundária, mas sofrera autólise e lesão hipóxico-isquémica.
- No feto da Autora não havia deficiência congénita.
- Não se verificou qualquer problema de fertilidade na Autora e no marido.
- Em 2016, a Autora engravidou pela terceira vez, porém, com 9 semanas de gestação, sofreu aborto.
- No dia 29 de Março de 2014 a Autora deslocou-se à policlínica da 1.a Ré (Centro de Fisioterapia X) e foi recebida pela 2.a Ré para a primeira avaliação e exame da lesão.
- De acordo com os procedimentos usualmente seguidos neste tipo de situações a 2.a Ré inquiriu a Autora sobre as circunstâncias do acidente, qual a parte do corpo afectada e as dores que sentia assim como o grau de dificuldade que tinha em andar, em movimentar-se e sobre a sua história clínica recente.
- A Autora respondeu que, de um modo geral, era saudável, ressalvando que se encontrava grávida, com um período de gestação de cerca 8 semanas.
- Após a observação feita pela 2.a Ré e de acordo com as respostas dadas pela Autora às questões colocadas pela 2.a Ré e do diagnóstico efectuado, foi elaborado por este o Relatório de avaliação inicial (Injury Assessment form), em que se concluiu que a Autora sofria de uma contusão no pé direito.
- Considerando a observação do tornozelo, o resultado do questionário Orebro musculoskeletal e o tempo de gestação da Autora (cerca de 8 meses de gravidez), a 2.a Ré elaborou um plano de tratamento e reabilitação da Autora, a ser realizado 3 vezes por semana, no período de 29 Março até finais de Abril de 2014 (cerca de 4 semanas), que incluíam os exercícios descritos nos factos provados.
- No período compreendido entre 29 de Março e 30 de Maio de 2014, a Autora foi submetida a diversos exercícios moderados, em face da sua gravidez, com vista à sua recuperação.
- Os exercícios de fisioterapia aplicados à Autora tomaram em consideração o esforço físico recomendável em pacientes gestantes, atendendo que os mesmos não acarretam qualquer risco para as futuras mães nem para o próprio feto.
Ora, atentos os factos supra relatados, conjugados com os restantes também provados, cremos que não se demonstra a culpa das Rés na ministração dos exercícios de fisioterapia que a Autora grávida tinha feito nem a ilicitude do facto e muito menos o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Sem intenção de ignorar o entendimento exposto no acórdão de 13 de Novembro de 2013, proferido no Processo n.º 34/2013 deste TUI, invocado pela Autora ora recorrente, no sentido de que “o médico não se obriga apenas a usar a sua melhor diligência para obter um diagnóstico ou conseguir uma terapia adequada, antes se vincula a fazer uso da sua ciência e aptidão profissional para a realização do diagnóstico e para a definição da terapia aconselhável. Ainda que o médico não possa responder pela obtenção de um resultado, ele é responsável perante o paciente pelos meios que usa (ou deve usar) no diagnóstico ou no tratamento”5, certo é que, para efeitos de fixar uma indemnização por facto ilícito, há que provar que, com o uso dos meios incorrectos e indevidos, o médico teve culpa no diagnóstico ou no tratamento do paciente.
Não havendo presunção legal de culpa, cabe à Autora recorrente provar que a 2.ª Ré teve culpa, o que não conseguiu.
E para concluir pela existência de nexo de causalidade, não é bastante invocar que a Autora teve aborto depois de ter feito, durante um determinado período de tempo, os exercícios físicos de fisioterapia exigidos pela 2.ª Ré; o que importa, antes, é provar que a Autora provavelmente não teria tido aborto se não fizesse tais exercícios.
Não ficou provado.
Na realidade, resulta da factualidade assente que a 2.ª Ré não ignorou a situação clínica da Autora, ciente do seu estado de gravidez, sendo certo que “a Autora foi submetida a diversos exercícios moderados, em face da sua gravidez, com vista à sua recuperação” e “os exercícios de fisioterapia aplicados à Autora tomaram em consideração o esforço físico recomendável em pacientes gestantes, atendendo que os mesmos não acarretam qualquer risco para as futuras mães nem para o próprio feto”.
Acresce que, tal como se pode constatar no acórdão sobre a matéria de facto proferido pelo TJB, não ficou provado que “a morte e a extracção do feto da autora foram provocadas pela terapia, exigida pela 2.ª Ré à autora” (quesito 22, fls. 968 dos autos).
É verdade que, também conforme a factualidade assente, não se registou anormalidade no estado físico da Autora e do feto, que não tinha qualquer deformação principal ou secundária (mas sofrera autólise e lesão hipóxico-isquémica), nem se verificou qualquer problema de fertilidade na Autora e no seu marido.
No entanto, desse facto não pode deduzir que a morte do feto foi provocada pelos exercícios físicos de fisioterapia que a Autora tinha feito, sendo de conhecimento geral que a procriação é um “processo” complexo e complicado, incluindo a gestação, durante o qual pode acontecer situações imprevisíveis, indesejáveis e até imperceptíveis, o que explica também o evento muito triste ocorrido nos casos do 2.º filho e 3.º feto da recorrente, alegado pela própria recorrente nos artigos 35.º e 36.º das alegações do recurso.
Sentimo-nos muito com o sofrimento que a Autora teve e continua a ter pela perda do feto, o que não é, porém, razão suficiente para fixar uma indemnização pretendida pela recorrente, que exige, como atrás se referiu, a verificação dos pressupostos legais.
Assim sendo, aderindo também às considerações expostas nas decisões do TJB e do TSI, entendemos que não estão preenchidos todos os pressupostos necessários para a responsabilidade civil por facto ilícito, razão pela qual se deve negar provimento ao presente recurso jurisdicional.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido pela Comissão de Apoio Judiciário.

Macau, 1 de Abril de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
1 Direito das Obrigações, 8.ª edição, p. 545 e 697.
2 Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 1999, p. 411 a 413.
3 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, Vol. I, p. 893 a 895 e 898 a 899.
4 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, p. 404 e seguintes.
5 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Sobre o ónus da prova…, p. 126.
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Processo n.º 10/2022