Processo nº 827/2021
Data do Acórdão: 05MAIO2022
Assuntos:
Exame à sociedade comercial
Apresentação das contas anuais da sociedade comercial
SUMÁRIO
1. Aos próprios sócios-gerentes está reconhecido o exercício do direito à informação, o que bem se justifica, sabidos como são numerosos os casos de gerentes que só o são de nome ou que são impedidos pelos outros gerentes do acesso às informações e aos livros e documentos da sociedade.
2. Numa acção especial de exame à sociedade, não se mostra inepta a petição inicial por integrável em qualquer das alíneas do artº 139º/2 do CPC, se na causa de pedir tiverem sido alegada a não apresentação das contas anuais pela administração da sociedade Ré para aprovação em assembleia geral no período de tempo compreendido entre 2008 e 2017, e formulado o pedido de fixação de um prazo não inferior a 60 dias aos administradores da sociedade para a apresentação das contas anuais e respectivos relatórios de administração relativamente aos exercícios de administração relativamente aos exercícios de 2013 a 2017 da sociedade Ré, nos termos do artº 259º/1 do C. Comercial, ex vi do artº 1262º/3 do CPC.
3. Não há qualquer violação do princípio do dispositivo a viciar uma decisão quando nela tiver sido tido em conta um facto, não alegado na causa de pedir, mas inócuo para a decisão de direito.
4. Em face do disposto no artº 259º/1 do Código Comercial, a verificação do pressuposto de facto de que não forem apresentados as contas anuais e os relatórios da administração é fundamento necessário e suficiente para a determinação à administração de uma sociedade comercial para a apresentação das contas anuais em falta.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 827/2021
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A intentou a presente acção especial, que denomina acção de exame à sociedade, contra a sociedade comercial B Limitada, C e D, todos devidamente identificados nos autos.
A acção foi registada com o nº CV3-19-0043-CPE e correu os seus termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.
Citados, a 1ª Ré e o 2º Réu deduziram oposição, arguindo a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, suscitando a excepção da ilegitimidade activa, acusando a Autora de abuso do direito da acção e impugnado os fundamentos de facto e de direito da acção, e pedindo a absolvição da instância.
Ao que respondeu a Autora pugnando pela rejeição dos pedidos formulados pela 1ª Ré e o 2º Réu de declarar nulo o processo por ineptidão da petição inicial, julgar parte ilegítima a Autora, julgar verificado o abuso do direito da acção por parte da Autora.
Citado o 3º Réu, suscitou a questão do abuso do direito de acção por parte da Autora, pedindo a absolvição do pedido ou da instância e a condenação da Autora por litigância de má fé.
Cumprido o contraditório, foi proferido o seguinte despacho, julgando improcedentes a arguição da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e a excepção da ilegitimidade activa, e inverificado o abuso do direito da acção, suscitados pelos Réus, e julgando procedente a acção determinado a notificação dos Réus para a apresentação, no prazo de 60 dias, das contas anuais respeitantes aos exercícios de 2014 a 2018 da sociedade Ré:
Da ineptidão da petição inicial
Os Requeridos em sede da Oposição vêm excepcionar a ineptidão da petição inicial, argumentando que o pedido formulado na p.i., não tem nada a ver com a causa de pedir alegada na p.i., ou seja, na óptica dos Requeridos, o que a Requerente devia pedir é o exame à sociedade, em vez de apresentação das contas.
Não têm razão os Requeridos, salvo o devido respeito que é muito.
Como é bom de ver, no petitório, a pretensão da Requerente reside em, mediante a intervenção do tribunal, obrigar os Requeridos a apresentar as contas anuais e respectivos relatórios de administração com referência aos anos de 2014 a 2018, pedido esse se funda no artigo 259º, nº. 1 do Código Comercial de Macau, e não no artigo 211º do mesmo Código. O mecanismo consagrado no art.º 259º tem por finalidade principal a salvaguarda do direito ao acesso da informação dos sócios previsto no art.º 209 do CCom, podendo qualquer sócio requerer ao tribunal a fixação de um prazo para a apresentação das contas anuai e o relatório da administração, sem prejuízo de ter lugar ainda o exame judicial quando não havendo sido apresentados os mesmos no prazo fixado. É isso mesmo que a ora Requerente pretende obter através da instauração do presente processo, assim, não se verifica a aludida ineptidão da petição inicial. Improcedeu a excepção deduzida.
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Da ilegitimidade activa por parte da Requerente
Vêm ainda os Requeridos defender que a Requerente, uma vez sendo administradora da sociedade Requerida, não possui legitimidade activa para instaurar a presente acção nos termos do disposto no art.º 211º, n.º do CCom.
Cumpre apreciar e decidir.
Uma das questões aqui se coloca é a mesma que já fica decidida supra, ou seja, é de realçar que o que a Requerente vem pedir não é o exame judicial da sociedade, mas sim a apresentação, por via judicial, das contas anuais e relatório da administração, portanto, ao aferir da legitimidade activa há de basear-se no artigo 259º e não o art.º 211º do CCom.
No art.º 259º, n.º 1 do CCom estabelece que qualquer sócio pode requerer ao tribunal para a apresentação das contas anuais e relatório da administração se os mesmos não forem apresentados aos sócios até três meses após o termo do exercício a que respeitem, aqui a lei não se distingue os sócios, isto é, se são ou não sócios gerentes, no entanto, também não é menos verdade que existe divergência nas doutrinas e jurisprudências neste aspecto.
Raul Ventura defende o seguinte: “Sujeito activo desta relação é o sócio não gerente. (...) O sócio gerente não necessita deste direito porque a sua função dentro da sociedade envolve o poder de conhecer directamente todos os factos sociais e tem pessoalmente ao seu alcance aquilo que o sócio não gerente necessita de obter por meio daquele direito. Algum conflito entre gerentes resolve-se por outros processos e nada tem a ver com este direito à informação. Nem faria sentido que a lei instituísse o dever de os gerentes prestarem informação a outros sócios e, por outro lado, forçasse o gerente a dirigir-se a um colega quando aquele pretendesse, para si próprio, uma informação.” (in Sociedades por quotas, Vol. I, 1987, p. 286)
Em contraponto, diz Abílio Neto que o direito de requerer o inquérito judicial é um direito que também assiste aos sócios gerentes e justificando-se que “aos próprios sócios-gerentes está reconhecido o exercício do direito à informação, o que bem se justifica, sabidos como são numerosos os casos de gerentes que só o são de nome ou que são impedidos pelos outros gerentes do acesso às informações e aos livros e documentos da sociedade” (in Código Comercial e Código das Sociedades Comerciais Anotados, 15.ª ed., p. 619)
Aliás, ensina Armando Manuel Triunfante que o direito a solicitar inquérito acaba por ser "um direito individual atribuído aos sócios, não apenas para protecção dos seus interesses, mas também para a tutela de outros valores, também interessadas no correcto desenvolvimento da vida social". (in A Tutela das Minorias nas Sociedades Anónimas, p. 216 e 223).
Não exista uniformidade na jurisprudência, porém, somos a sufragar a posição de que o facto de o sócio ser gerente em nada pode afectar os seus direitos sociais, designadamente, o direito a ser informado sobre a vida da sociedade - vide v.g. o Ac. STJ de 23/03/23 e o Ac. RL de 18/11/20081.
Tal como o entendimento de Abílio Neto, os sócios mesmo que sejam gerentes, pode acontecer que as suas funções como gerentes são impedidos por outros gerentes, ou então os sócios são gerentes que só o são de nome, mas como sendo o sócio é lhe facultado por lei o direito ao acesso da informação, direito esse não deve ser privado por mera qualidade do administrador da sociedade.
Nesse contexto, julga-se que a ora Requerente possui legitimidade activa para a instauração desta acção ao abrigo do art.º 259º do CCom.
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Do abuso de direito
Os Requeridos entendem que a Requerente é sócia minoritária e que tem apenas uma quota de 10 e nunca participou na vida da sociedade, porém, vem hoje litigar contra a sociedade em vez de exercer os seus societários conferidos por lei no fora societário, constitui assim um abuso de direito de acção.
Salvo o devido respeito por opinião diversa, ao Requeridos não assiste razão, isto porque, não bastam os motivos ora sustentados pelos Requeridos para chegar à conclusão como tal, por outras palavras, o facto de ser a sócia minoritária e a pretensa inércia na participação da vida da sociedade por parte da Requerente não são capazes de demonstrar um excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social, no caso em que numa sociedade por quota não foram elaborados as contas anuais durante vários anos. Portanto, não se verifica o alegado abuso de direito e muito menos a litigância de má-fé prevista no art.º 385º, nº 2, al. d).
Pelo, improcedeu esta argumentação dos Requeridos.
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Após ter sido feita uma análise atenta da Oposição dos Requeridos, embora tenham sido impugnados quase todos os factos alegados na petição inicial, era irrefutável que as contas anuais e os relatórios da administração, particularmente com referência aos anos 2008 a 2018, não foram efectivamente elaborados nem aprovados dentro de três meses após o termo do exercício a que respeitam, basta com esta realidade para motivar a procedência do pedido da Requerente.
Não se diga que a sociedade não se obriga a organizar as contas anuais na situação de que todos os sócios são administradores e a sociedade não tem conselho fiscal nem fiscal único por força do disposto no art.º 254º do CCm, isto porque, com aquela norma apenas se dispensam a elaboração do relatório respeitante ao exercício e a proposta de aplicação de resultados, não incluindo as contas anuais, os quais são sempre preparados no fim de cada exercício.
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Nestes termos e pelo exposto, julga-se procedente a acção, e por conseguinte, ordeno notificar as Requeridas para no prazo de 60 dias apresentarem as contas anuais respeitantes aos exercícios de 2013 a 2017 da sociedade B, Limitada, tal como se requer na p.i. da Requerente.
Custas pelas Requeridas.
Notifique e D.N..
Inconformado com esse despacho, os Réus recorreram do mesmo para este TSI, concluindo e pedindo que:
a. A petição é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir, e incorre em erro na formade processo, tudo por aplicação conjugada dos arts. 211º e 259º do C. Com e arts. 139º/2-b), 145º e 1262º do CPC, levando à nulidade da sentença (art. 139º/1) do CPC).
b. A Sentença assenta a sua decisão em factos distintos dos constantes da causa de pedir alegada da petição, o que constitui violação do princípio do dispositivo, previsto no art. 5º/1 e 2 do CPC, redundando em nulidade da mesma, indo além do objecto da acção (arts. 147º e 571º/1 do CPC).
c. A requerente/recorrida não é titular do direito de acção previsto nos arts. 211º e/ou 259º do C. Com aplicado, conjugadamente ou não, com o art. 1262º do CPC, pelo facto de (apesar de ser sócia) ser gerente da sociedade requerida. Não tem, consequentemente, legitimidade substantiva para instaurar esta acção ou outra destinada a obter o que peticionou.
d. Ocorre na esfera jurídica da recorrida a confusão de direitos (como sócia) e deveres (como gerente) que tem, necessariamente, quando cumulados na esfera jurídica da mesma pessoa, o efeito de extinguir o direito de exigir de outros gerentes aquilo se tem o dever de fazer como gerente (art. 859º do Cód. Civil): a sua qualidade de sócio ab-roga os direitos que este tem de agir, enquanto tal, contra os outros gerentes.
e. O incumprimento de um dever por um gerente não isenta os outros gerentes do dever de cumprir os seus deveres. Ao aceitar a sua designação como gerente, o sócio prescinde do direito de fazer uso das suas prerrogativas de sócio contra os gerentes, pois passa a ter ele mesmo as obrigações que como sócio lhe cabe exigir dos gerentes.
f. Tal resultaria na criação jurisprudencial de um terceiro género (para além da qualidade de sócia e da de gerente) no direito societário: a figura de um "super-sócio" ou de um "super-gerente" que beneficiaria dos poderes do gerente acumulados com os direitos do sócio, o que implicaria ainda a contradição de poder exigir dos outros o que deveria praticar por si mesmo, eximindo-se, porém, de o fazer, tomando a posição activa em acção judicial em que deveria tomar a posição passiva. Esta conduta cria uma desigualdade entre gerentes e entre sócios inexistente na lei, incentivando o "gerente de sofá".
g. Haveria, ainda, consequentemente, ilegitimidade plural por preterição de litisconsórcio necessário passivo, uma vez que a sócia XXX não instaurou acção contra um dos gerentes: a gerente XXX. Nem poderia um administrador instaurar acção e depois ser ouvido, nos termos do art. 211º/2 do C. Com.
h. Isto decorre dos arts. 211º/1 e/ou 259º do C. Com, acção que pode ser instaurada por "sócio": não por "administrador sócio", acção gizada para assegurar direitos de não administradores a exercer contra os administradores, pois os administradores têm ao seu dispor os meios para regularizar a vida da sociedade, sendo a eles que a cabe gerir. Se fosse outra a intenção da lei, teria provavelmente feito - como faz no art. 345º do C. Com, - referência também ao "administrador sócio", o que não sucede nos arts. 211º e 259º do C. Com e nos arts. 1262º e ss. do CPC.
i. Tal consubstancia a tese da ilegitimidade tout court, que deveria ter sido sufragada na Sentença recorrida, nos termos da qual o sócio gerente não tem, em circunstância alguma, direito de fazer uso do direito de sócio contra os gerentes, cabendo-lhe antes, na sua qualidade de gerente, fazer uso dos meios processuais existentes para assegurar a restabelecimento do exercício efectivo dos seus poderes de gerência.
j. O Tribunal aplicou a tese da legitimidade tout court (ou ilimitada), de acordo com a qual o sócio gerente teria direito de solicitar a apresentação de contas independentemente da factualidade alegada e provada: bastaria o facto de ser sócio, que o facto de ser gerente em nada impediria o exercício dos seus direitos de sócio, não tendo que demonstrar que foi impedido como gerente de exercer os seus deveres, em particular, o dever que tem de apresentar contas. Esta tese consubstancia, com o devido respeito, uma incorrecta interpretação dos arts. 211º e 259º do C. Com e dos arts. 1262º e ss. do CPC, entre outros referidos nestas alegações, para onde se remete.
k. Apesar de ter aplicado efectivamente a tese referida na conclusão anterior, o Tribunal parece ter sufragado a tese da legitimidade qualificada ou limitada, a qual entende que um sócio gerente que tenha logrado provar a factualidade demonstrativa de que foi impedido de apresentar contas e que não exerce a gerência de facto por factos ilícitos imputáveis aos outros gerentes (que o impedem de exercer as suas funções e de apresentar contas) pode fazer uso do direito conferido pelos arts. 211º e/ou 259º do Cód. Com.
l. A tese expressa na conclusão j) não tem qualquer base doutrinária ou jurisprudencial, não tendo, com o devido respeito, mérito. Já a tese da legitimidade qualificada é defendida por alguns autores e jurisprudência. Porém, para ser aplicada, teria de ter sido alegado e provado nos autos que a requerente tinha sido impedida pelos requeridos de cumprir os seus deveres - a elaboração e apresentação das contas - ou que era, por factos imputáveis aos requeridos, mera gerente só de nome e não de facto.
m. Tal facto é falso, não foi alegado (só foi alegado que não lhe foi autorizado participar numa reunião da administração acompanhada de um advogado), nem foi provado. Que não foi provado resulta inequívoco da Sentença (fls. 127): o único facto tido por provado (e erradamente, pois houve impugnação especificada) foi que as contas "não foram efectivamente elaboradas e apresentadas".
n. Assim, não estão verificados os pressupostos de facto que permitam aplicar os arts. 259º e 211º/1 do C. Com., tal como interpretado pela jurisprudência formada na Sentença recorrida pelo que não cabe aplicação do referido preceito legal ao caso dos autos, resultando, também por este motivo, a ilegitimidade substantiva singular activa por parte da recorrida.
o. Consequentemente, a sentença é nula por insuficiência da matéria de facto dada por provada para, nos termos da lei aplicável correctamente interpretada, dar provimento ao pedido.
p. Assim, a recorrida, atendendo à sua qualidade de gerente e à factualidade dada como provada, não beneficia do direito de instaurar a acção instaurada (ao abrigo dos arts. 1º e 1262º do CPC e/ou arts. 211º e/ou 259º do Cód, Com, ou direito de instaurar outra acção destinada a obter a mesma finalidade). Caso beneficiasse desse direito, o que não se admite e só subsidiariamente se alega a mero benefício de raciocínio, tratar-se-ia de um exercício ilegítimo por abuso de direito de acção nos termos do art. 326º do Cód. Civil, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, de modo que a acção não poderia, também por esse motivo, ter provimento.
q. A conduta da recorrida nestes autos constitui litigância de má fé, em especial, mas não só, no que respeita ao terceiro recorrente, pelo que deveria ter sido condenada, em multa e indemnização, nos termos dos arts. 385º/1 e 386º/1 e 2-a) do CPC, devendo ser condenada agora por esse Alto Tribunal em sede de recurso.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exªs mui doutamente suprirão, deverá ser revogada a Sentença recorrida e substituída por outra que:
(1) Negue provimento à acção e absolva as recorrentes do pedido;
Assim não se entendendo, o que alegam subsidiariamente e por cuidado,
(2) Absolva as recorrentes da instância;
E, em qualquer caso,
(3) Condene a recorrida em multa e indemnização como litigante de má fé,
(4) Bem como em custas e procuradoria condigna.
Assim fazendo a habitual justiça.
Notificada das alegações de recurso, a Autora respondeu pugnando pela improcedência do recurso.
II
Foram colhidos os vistos.
Então apreciemos.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
In casu, não houve questões de conhecimento oficioso.
De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso final, o Autor, ora recorrente, reagiu contra a sentença recorrida, reiterando as questões da ineptidão da petição inicial, da ilegitimidade activa, da litigância de má fé e do abuso do direito da acção, já suscitadas em sede de contestação, para além de assacar ao despacho recorrido a violação do princípio do dispositivo e da insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa.
Para nós, as questões suscitadas em sede de contestação já foram ai devidamente apreciadas e decididas no despacho recorrido.
Conforme se vê na Douta decisão ora recorrida, foi demonstrada, com raciocínio inteligível e razões sensatas e convincentes, a improcedência da contestação na parte respeitante às mesmas questões, não se nos afigura outra solução melhor do que a de louvar aqui a decisão recorrida e, nos termos autorizados pelo artº 631º/5 do CPC, remeter para os fundamentos invocados na decisão recorrida, julgando improcedente o recurso dos Réus nesta parte.
Ao que se nos afigura conveniente acrescentar o seguinte em relação à arguida nulidade do processo de ineptidão da petição inicial.
Os recorrentes limitaram-se a agarrar na denominação (exame à sociedade) atribuída pela Autora à presente acção e nos alguns factos, para nós inócuos, alegados na petição inicial, nomeadamente os que se prendem com a alegada intenção por parte da sociedade Ré de colocar o imóvel de que é proprietária no mercado para ser vendido, para suscitar arguir a nulidade do processo por ineptidão.
Todavia, os recorrentes não podem ignorar que numa acção especial de exame à sociedade, o CPC manda no seu artº 1262º/3 seguir os termos previstos no artº 259º do C. Comercial.
In casu, na causa de pedir foi alegada a não apresentação das contas anuais pela administração da sociedade Ré para aprovação em assembleia geral no período de tempo compreendido entre 2008 e 2017, e formulado o pedido de fixação de um prazo não inferior a 60 dias aos administradores da 1ª Ré para apresentação das contas anuais e respectivos relatórios de administração relativamente aos exercícios de 2013 a 2017 da sociedade Ré, nos termos do artº 259º/1 do C. Comercial.
Ora, diz o artº 259º/1 do C. Comercial que se as contas anuais e o relatório da administração não forem apresentados aos sócios até três meses após o termo do exercício a que respeitem, pode qualquer sócio requerer ao tribunal a fixação de um prazo, não superior a 60 dias, para a sua apresentação.
Por sua vez, o artº 139º/2 do CPC dispõe que é inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Ora, tendo em conta o fim a que visa uma acção especial da exame à sociedade e as condições da sua procedibilidade, prescritos nos acima referidos artº 259º/1 do C. Comercial e artº 1262º/3 do CPC, não se nos mostra a petição inicial integrável em qualquer das alíneas do artº 139º/2 do CPC.
Arrumadas as questões da ineptidão da petição inicial, da ilegitimidade activa, da litigância de má fé e do abuso do direito da acção, restam-nos as questões da violação do princípio do dispositivo e da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
1. Violação do princípio do dispositivo
Para a fundamentação da decisão determinando a notificação dos Réus para a apresentação das contas anuais, o Tribunal a quo diz que após ter sido feita uma análise atenta da Oposição dos Requeridos, embora tenham sido impugnados quase todos os factos alegados na petição inicial, era irrefutável que as contas anuais e os relatórios da administração, particularmente com referência aos anos 2008 a 2018, não foram efectivamente elaborados nem aprovados dentro de três meses após o termo do exercício a que respeitam, basta com esta realidade para motivar a procedência do pedido da Requerente.
Os recorrentes entendem que, ao considerar “que as anuais……não foram efectivamente elaboradas nem aprovadas”, o Tribunal a quo está assentar a sua decisão numa causa de pedir distinta da causa de pedir constante da petição.
O que, na óptica dos recorrentes, viola o princípio do dispositivo.
Não têm razão os recorrentes.
Conforme se vê na petição inicial, foi efectivamente alegado no artº 7º que ……no período compreendido entre 2009 e 2018, não foram apresentadas aos sócios, por parte da administração, as contas anuais para aprovação em Assembleia Geral, com referência aos exercícios compreendidos entre 2008 e 2017.
Não obstante a não alegação ipso verbis do facto de não terem sido elaboradas as contas anuais, este facto de que as contas não foram elaboradas pode resultar claro da petição inicial, quando globalmente interpretada.
De qualquer maneira, o facto de ter sido elaboradas ou não as contas anuais não releva para a decisão da causa, pois, em face ao disposto no artº 259º do C. Comercial, basta a verificação do pressuposto de facto de que não forem apresentados as contas anuais e os relatórios da administração para determinar à administração de uma sociedade comercial a apresentar as contas anuais em falta.
Sendo assim, a expressão “não foram efectivamente elaborados” é inócua e portanto não tem a virtude de invalidar a decisão recorrida.
2. Insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito
Entendem os recorrentes que não estando verificados os pressupostos de facto que permitam aplicar os artºs 259º e 211º/1 do C. Comercial, a decisão recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Pelo que foi por nós dito supra em relação à questão da violação do princípio do dispositivo, é de improceder o recurso nesta parte.
Pois, tal como salientámos supra, a verificação do pressuposto de facto de que não forem apresentados as contas anuais e os relatórios da administração é fundamento necessário e suficiente para determinar à administração de uma sociedade comercial para a apresentação das contas anuais em falta.
Em conclusão:
1. Aos próprios sócios-gerentes está reconhecido o exercício do direito à informação, o que bem se justifica, sabidos como são numerosos os casos de gerentes que só o são de nome ou que são impedidos pelos outros gerentes do acesso às informações e aos livros e documentos da sociedade.
2. Numa acção especial de exame à sociedade, não se mostra inepta a petição inicial por integrável em qualquer das alíneas do artº 139º/2 do CPC, se na causa de pedir tiverem sido alegada a não apresentação das contas anuais pela administração da sociedade Ré para aprovação em assembleia geral no período de tempo compreendido entre 2008 e 2017, e formulado o pedido de fixação de um prazo não inferior a 60 dias aos administradores da sociedade para a apresentação das contas anuais e respectivos relatórios de administração relativamente aos exercícios de administração relativamente aos exercícios de 2013 a 2017 da sociedade Ré, nos termos do artº 259º/1 do C. Comercial, ex vi do artº 1262º/3 do CPC.
3. Não há qualquer violação do princípio do dispositivo a viciar uma decisão quando nela tiver sido tido em conta um facto, não alegado na causa de pedir, mas inócuo para a decisão de direito.
4. Em face do disposto no artº 259º/1 do Código Comercial, a verificação do pressuposto de facto de que não forem apresentados as contas anuais e os relatórios da administração é fundamento necessário e suficiente para a determinação à administração de uma sociedade comercial para a apresentação das contas anuais em falta.
Tudo visto, resta decidir.
IV
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente in totum o recurso.
Custas pelos Réus, em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
RAEM, 05MAIO2022
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
1 Aqui citados nos termos do Direito Comparado.
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Ac. 827/2021-18