Processo nº 590/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 12 de Maio de 2022
ASSUNTO:
- Cancelamento de BIRPM
- Nulidade
- Acto que constitua crime
- Efeito putativo do acto
SUMÁRIO:
- A interpretação extensiva de que são nulos os actos administrativos que envolvem na sua preparação ou execução a prática de um crime tem como limite os actos administrativos cujo destinatário é um terceiro de boa-fé alheio a toda a actividade criminosa que lhe possa ter estado subjacente;
- De igual modo é irrelevante a actividade criminosa que possa ter estado envolvida na preparação ou execução do acto se o acto com o mesmo conteúdo houvesse sido igualmente praticado embora com base noutros pressupostos que apenas não foram considerados por causa daqueles outros;
- Tendo sido praticado um acto constitutivo de direito ao qual não se imputa vício algum não pode o mesmo ser livremente revogado e menos ainda declarado nulo com base em eventuais vícios de um acto pretérito e praticado com base em pressupostos distintos;
- Seja porque a actividade criminosa não pode ser subjectivamente imputada ao Recorrente o qual lhe é totalmente alheio, seja porque aquela indicada actividade criminosa não foi em face de toda a situação subjacente aos autos determinante para que o Recorrente adquirisse e seja hoje titular do estatuto de Residente da RAEM verifica-se que é inexistente o pressuposto de facto – actividade criminosa – que está subjacente à prática dos actos impugnados de declaração de nulidade;
- Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse;
- Subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo por efeito do decurso do tempo estão os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que em face das circunstâncias do caso se reconheça a produção de efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos;
- O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA, implicando o exercício de um poder discricionário, pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade;
- Ao não reconhecer ao Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto;
- Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 590/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 12 de Maio de 2022
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Administração e Justiça
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça de 26.05.2021 que rejeitou o recurso hierárquico necessário interposto pelo Recorrente e manteve a decisão a declarar a nulidade da emissão ao Recorrente do Bilhete de Identidade de Residente de Macau e do Passaporte da RAEM, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a decisão de 26 de Maio de 2021 feita pela entidade recorrida, que manteve a declaração, por parte da Direcção dos Serviços de Identificação, da nulidade dos actos de emitir o BIRPM e o passaporte da RAEM ao recorrente, bem como o cancelamento dos mesmos (vide o doc. 1);
2. In casu, não foi o próprio recorrente que declarou, de má fé, a falsa paternidade para obter o BIRM, e o MP já afirmou expressamente que não havia indícios suficientes de que o recorrente tinha praticado o acto de prestar, dolosamente, declaração falsa sobre o nome do seu pai;
3. Em contrário, todo o acto foi praticado por B, que acabou por ser condenada pela prática dum “crime de falsificação de documento de especial valor”, numa pena que já se extinguiu;
4. Porém, quer no acórdão proferido no Processo n.º CR3-14-0112-PCC, quer na declaração n.º 214/DIR/2020 prestada por B na DSI, não se indicou que B tinha declarado a falsa paternidade do recorrente com intenção de obter o BIRM para este;
5. Resulta do ponto 6 dos factos provados na sentença cível n.º CV3-10-0017-CAO e do ponto 2 dos factos provados na sentença penal n.º CR3-14-0112-PCC que, na altura, B coabitou efectivamente com C, e dois meses após a coabitação, B descobriu que estava grávida de 5 meses;
6. Pode-se dizer que, B nunca tinha a intenção de obter a identidade de residente de Macau para o recorrente através da falsa declaração sobre a paternidade, mas apenas não queria que o então namorado C descobrisse que estava grávida do filho do ex-namorado D;
7. A filha F nasceu em Macau, obteve o TPT e podia permanecer legalmente em Macau, pelo que B não precisou declarar falsamente a paternidade do recorrente para obter a qualidade de residir ou permanecer em Macau para o recorrente;
8. Quando o recorrente nasceu em Macau em 5 de Maio de 1994, se B tivesse prestado declaração verdadeira sobre a paternidade do recorrente, este também teria obtido o BIRPM conforme as disposições no DL n.º 49/90/M e no Despacho n.º 46/GM/96, como no caso da irmã mais velha dele F, com fundamento em que o recorrente tem residido, estudado, trabalhado e vivido em Macau;
9. B coabitou efectivamente com C, e tal circunstância não pertenceu à obtenção do bilhete de identidade para os filhos através de “casamento falso”;
10. Resumindo as doutrinas e jurisprudências, a produção do efeito lateral pelos actos administrativos nulos, prevista pelo n.º 3 do art.º 123.º do CPA, pressupõe: o decurso do tempo relativamente longo, e a harmonia com os princípios gerais de direito, nomeadamente os princípios da protecção dos direitos adquiridos, da tutela da confiança de boa fé, e da protecção da expectativa legítima;
11. In casu, o recorrente é titular do BIRPM desde o nascimento, por mais de 26 anos, e tem sido renovado o seu BIRPM por várias vezes, verificando-se, assim, o requisito de decurso do tempo relativamente longo;
12. Desde o nascimento, o recorrente tem crescido em Macau, onde frequentou o jardim infantil, a escola primária, a escola secundária e a universidade, e após a graduação, trabalhou em Macau e tem todos os familiares e amigos aqui. Pode-se dizer que o recorrente tem o centro da vida em Macau, está completamente integrado na vida e cultura de Macau, e é um residente nativo de Macau;
13. O plano de vida desde pequeno do recorrente baseou-se no desenvolvimento em Macau, e o recorrente nunca tem intenção de procurar emprego ou fixar a residência no exterior de Macau, não tendo qualquer relação ou conexão com outros países ou regiões. Embora seja da nacionalidade chinesa, o recorrente não tem qualquer identidade no Interior da China, e se agora for viver no Interior da China, será um indivíduo vulgarmente designado por “pessoa com registo civil preto”, e não saberá como viver normalmente no Interior da China;
14. O mais importante é que, o recorrente tem usado o BIRPM possuído por ele para estabelecer inumerosas relações jurídicas e de facto com os serviços do Governo, as escolas, as instituições privadas e outras pessoas em Macau, o que nunca foi posto em causa;
15. Obviamente, de acordo com os princípios da boa fé, da confiança, da proporcionalidade e da justiça, devem ser legalmente protegidos os factos que aconteceram com o recorrente, e a situação do recorrente já preencheu os pressupostos da produção do efeito lateral pelos actos administrativos nulos, prevista pelo n.º 3 do art.º 123.º do CPA.
16. Às datas do nascimento e da substituição dos documentos de identificação, o recorrente ainda era menor, sendo impossível que ele soubesse da declaração falsa sobre a paternidade biológica prestada pela sua mãe B;
17. O recorrente nunca declarou, de má fé, a paternidade com informação falsa para obter o BIRM, e ao contrário, o recorrente, de boa fé, fez o seu melhor e tomou uma atitude activa e positiva para cooperar com a Administração Pública, de modo a corrigir as irregularidades existentes;
18. No ano de 2012, a DSI já teve conhecimento de que a informação do pai do recorrente foi rectificada para D, mas não indicou que seria cancelado o BIRPM do recorrente, e continuou a renovar o BIRPM do recorrente e rectificar a sua paternidade;
19. O certificado de identificação no doc. 23 da audiência escrita foi emitido pela então chefe do Departamento de Identificação de Residentes, que é a actual Directora da DSI;
20. Tendo conhecimento da rectificação da identificação do pai do recorrente, a DSI ainda renovou o bilhete de identidade do recorrente, conduta essa que deixou o recorrente ter a convicção de que era residente de Macau e titular do BIRM legal, residir e viver em Macau como um residente geral, e tornar-se um guarda do CPSP;
21. A nulidade do acto administrativo não é necessariamente declarável a todo o tempo pela Administração Pública, nomeadamente perante os princípios da boa fé e da razoabilidade;
22. Tudo o que o recorrente fez foi construído na confiança depositada na Administração Pública, porque nos 26 anos passados, o recorrente possuiu legalmente o BIRM, o que não foi posto em causa ou questionado por qualquer serviço ou órgão do Governo da RAEM, e tinha sempre a convicção de que não seria cancelado o seu documento de identificação;
23. Agora, ou seja cerca de 10 anos depois da rectificação da paternidade do recorrente, a entidade recorrida declarou nulos os actos administrativos de emitir e renovar o bilhete de identidade do recorrente, violando obviamente a confiança nela depositada pelo recorrente ao longo do tempo, e surpreendendo o recorrente;
24. Se a entidade recorrida entendesse que as respectivas informações falsas da paternidade determinou grave lesão do interesse público, quando tomou conhecimento do respectivo facto através do procedimento de alteração dos elementos de identificação em 2012, deveria ter dado, de imediato, início ao procedimento administrativo de declarar a nulidade do bilhete de identidade do recorrente e cancelar o mesmo;
25. E não deve, cerca de 10 anos depois, dar início ao procedimento administrativo de declarar a nulidade do bilhete de identidade do recorrente e cancelar o mesmo, após a graduação do recorrente da universidade em Macau e a nomeação como guarda do CPSP, quando tem trabalho estável, já prestou declaração verdadeira sobre a paternidade perante a DSI e obteve a renovação do bilhete de identidade;
26. Por isso, o acto recorrido violou obviamente o princípio da boa fé previsto pelo art.º 8.º do CPA, lesando a legítima expectativa e confiança do recorrente.
27. Por outro lado, a nulidade dos respectivos actos não equivale à inexistência de qualquer espaço para discricionariedade da Administração Pública, sobretudo no que diz respeito à aplicação do n.º 3 do art.º 123.º do CPA, para a qual tem a Administração Pública o poder discricionário;
28. É de reafirmar que, desde o nascimento, o recorrente tem crescido em Macau, onde frequentou o jardim infantil, a escola primária, a escola secundária e a universidade, e após a graduação, trabalhou em Macau, foi nomeado como guarda do CPSP, e tem todos os familiares e amigos em Macau. Pode-se dizer que o recorrente tem o centro da vida em Macau, está completamente integrado na vida e cultura de Macau, e é um residente nativo e talento formado em Macau;
29. O recorrente não tem qualquer relação ou conexão com outros países ou regiões. Embora seja da nacionalidade chinesa, o recorrente não tem qualquer identidade no Interior da China, e se agora for viver no Interior da China, será um indivíduo vulgarmente designado por “pessoa com registo civil preto”, e não saberá como viver normalmente no Interior da China;
30. Além disso, o recorrente tem um bom relacionamento com os familiares, e o acto recorrido significa que o recorrente terá de sair do local onde vive por 27 anos, deslocar-se para viver no exterior de Macau sem qualquer outro documento de identificação legal, e separar-se dos familiares;
31. Actualmente, o recorrente é um guarda do CPSP, que é o sonho dele desde pequeno, estando sempre dedicado a tornar-se um guarda policial que salvaguarda a segurança e serve a sociedade, a RAEM e os cidadãos. Se for executado o acto recorrido, o recorrente perderá a identidade de residente permanente de Macau, e não poderá continuar a exercer o cargo de guarda do CPSP, o que implica o desemprego do recorrente, bem como o ruir do seu sonho de ser guarda policial desde pequeno;
32. Por outro lado, o pai do recorrente D sofre de tumor maligno na amígdala, submeteu-se a quimioterapia e radioterapia, e agora ainda precisa receber tratamento periódico. Face à doença do pai, o recorrente, sendo o homem e o pilar económico da família, tem a seu cargo as despesas médicas do pai, e assume a responsabilidade de cuidar de toda a família. O acto recorrido causará ao recorrente a perda dos rendimentos de trabalho para suportar as despesas familiares, bem como a impossibilidade de cuidar do seu pai doente em Macau;
33. Por outra palavra, o acto recorrido causará ao recorrente a perda do direito de residência, a impossibilidade de reunião com a família, o desemprego, o ruir do sonho, a perda da qualidade de exercer funções públicas e cargo de guarda do CPSP, bem como a impossibilidade de alimentar e cuidar do seu pai doente em Macau;
34. Isso trará, sem dúvida, consequências graves, irreparáveis e irreversíveis para os direitos e interesses fundamentais do recorrente, até para toda a sua vida;
35. O recorrente entende que deve a entidade recorrida, sendo um órgão administrativo, prosseguir o interesse público. Porém, o último acto ilícito praticado por B foi a falsa declaração prestada em 2004 para substituir o bilhete de identidade do recorrente, ou seja, decorreu mais de 15 anos desde tal acto, B já foi condenada e a respectiva pena extinguiu-se no dia 14 de Dezembro de 2018;
36. De facto, no ano de 2012, depois da sentença proferida pelo Juízo Cível do TJB, e da rectificação, por parte do CRC, da paternidade constante do registo de nascimento do recorrente, B já requereu à DSI a rectificação das informações de identificação do pai do recorrente;
37. Pode-se dizer que, com o decurso do tempo e a extinção da pena aplicada a B, a ilicitude do respectivo acto e os danos causados ao interesse público já foram gradualmente reduzidos. O recorrente tem vivido em Macau sempre com observação da lei, e é um agente do CPSP de boa personalidade, o que pode reparar, em certo grau, o interesse público lesado;
38. Após ponderação do interesse público prosseguido pela entidade recorrida e o enorme prejuízo irreparável e irreversível a causar ao recorrente, deve prevalecer o interesse do recorrente, senão, verifica-se o grave desequilíbrio. Pode-se ver que é óbvia e totalmente desrazoável o exercício do poder discricionário pela entidade recorrida quanto ao n.º 3 do art.º 123.º do CPA;
39. O acto recorrido violou obviamente o princípio da proporcionalidade previsto pelo art.º 5.º, n.º 2 do CPA;
40. Com base nisso, a entidade recorrida interpretou e aplicou erradamente os art.ºs 123.º, n.º 3, 8.º e 5.º, n.º 2 do CPA, e o acto recorrido é anulável conforme o art.º 124.º do CPA.
Citada a entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Administração e Justiça contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. O recorrente A nasceu em Macau a 5 de Maio de 1994, do seu registo de nascimento consta que o pai é residente de Macau C. Dado que o seu pai é residente de Macau no momento de nascimento do recorrente, o recorrente tem qualidade de residente de Macau, assim, a DSI emitiu ao recorrente o BIRM e autorizou a respectiva substituição nos termos do art.º 5.º n.º 1 do D.L. n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro.
2. Em seguida, a DSI autorizou a substituição do BIRPM do recorrente nos termos do art.º 9.º n.º 2 da Lei n.º 8/1999 e do art.º 2.º n.º 2 al. 1) da Lei n.º 8/2002, e autorizou a substituição deste BIR nos termos do art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002.
3. Todavia, por sentença civil do Juízo Cível do TJB, declarou-se que o recorrente não é filho biológico de C e mandou-se o cancelamento do registo do pai biológico C no registo de nascimento do recorrente, bem como se declarou que D é pai biológico do recorrente e mandou-se a correcção do registo de nascimento do recorrente. A Conservatória do Registo Civil já corrigiu a certidão narrativa de registo de nascimento do recorrente conforme a sentença supracitada.
4. Além disso, o Juízo Criminal do TJB também confirmou que a mãe do recorrente fez constar dolosamente os elementos de identificação falsos no registo de nascimento e do BIRM do recorrente e foi condenada, por isso, pelo Juízo Criminal do TJB por crime criminal.
5. Dado que D e a mãe do recorrente não eram residentes de Macau no momento do seu nascimento, daí, o recorrente não satisfaz as normas legais supracitadas, assim, o recorrente não é residente permanente de Macau, nem lhe deve ser concedido o BIRPM.
6. O recorrente adquiriu a qualidade de residente de Macau através dos actos criminosos da sua mãe, e os actos consequentes da DSI da emissão do BIR ao recorrente ficaram nulos na medida em que a filiação não produz nenhum efeito, pelo que são nulos os actos administrativos da emissão e substituição do BIRM, da emissão e substituição do BIRPM ao recorrente e não produzem efeitos ad initio.
7. Além disso, dado que o recorrente não tem titularidade de residente permanente de Macau, não está satisfeito o art.º 5.º da Lei n.º 8/2009, a quem não pode ser concedido o passaporte da RAEM.
8. Nestes termos, ao abrigo do art.º 123.º n º 2 do Código do Procedimento Administrativo, a DSI deve declarar nulo um conjunto da emissão do BIR e cancelar o BIRPM e o passaporte da RAEM do recorrente nos termos legais.
9. A entidade recorrida reconheceu e confirmou os actos feitos pela DSI nos termos da lei.
10. Todavia, o advogado entende que o processo de cancelamento do BIR não foi desenvolvido oportunamente, ofendendo a expectativa legítima e a confiança depositada do recorrente e afectando a situação estável do recorrente, pelo que entende que o acto recorrido violou o princípio da boa fé.
11. A entidade recorrida discordou disso. De facto, a DSI explicou que na altura, apenas conforme o procedimento da correcção dos elementos de identificação, tratou do pedido deduzido pela mãe do recorrente a favor do recorrente em 2012.
12. É de salientar que, o recorrente não satisfaz as normas legais, não tem qualidade de residente permanente de Macau, e o acto da emissão do BIR da DSI está relacionado com o crime e é acto consequente do acto nulo, sendo acto vinculado, a DSI não tem alternativa sobre o conteúdo do acto, sem nenhum espaço discricionário. (cfr. o acórdão do TSI no Processo n.º 299/2013)
13. Relativamente ao acto vinculado, não se verifica a violação dos princípios fundamentos do Direito Administrativo (cfr. os acórdãos do TUI nos Processos n.ºs 14/2014 e 26/2019), pelo que não é procedente a impugnação do advogado sobre a violação do princípio da boa fé previsto no art.º 8.º do Código do Procedimento Administrativo.
14. O advogado indicou ainda que a demora do procedimento afectou o recorrente, apesar disso, o que não implica que o acto recorrido enfermou do vício da violação da lei, nem constitui motivo justificado da continuação da emissão do BIR ao recorrente.
15. O advogado indicou que embora o acto da emissão do BIR da DSI ao recorrente seja nulo, deve-se considerar a aplicação do art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo ao recorrente, mantendo os efeitos jurídicos da situação de facto já existente antes do acto nulo – isto é, manter o BIRPM do recorrente e continuar a emitir-lhe o BIRPM. A entidade recorrida discordou disso.
16. Uma vez que a Administração deve agir de forma prudente na aplicação do art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo, apenas podendo citar tal norma desde que estejam satisfeitos os princípios da boa fé, da tutela da confiança, da igualdade e da prossecução do interesse público. No caso da coacção ou crime, ou dos actos nulos feitos dolosamente ou de má fé pelo interessado, é absolutamente impossível produzir os efeitos jurídicos putativos favoráveis ao interessado.
17. O recorrente adquiriu a qualidade do BIR através do acto criminoso da sua mãe da declaração falsa dos elementos de identificação do seu pai, assim, ao recorrente não se aplicam os efeitos jurídicos putativos previstos no art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo. (cfr. o acórdão do TUI no Processo n.º 76/2015)
18. O advogado entende que os actos criminosos foram feitos pela mãe do recorrente e o recorrente não é agente do crime, ele nunca declarou de má fé os elementos de identificação falsos do seu pai, pelo que deve ser protegido.
19. Os elementos de identificação falsos não foram apresentados pelo recorrente, e o recorrente nunca participou no acto que deu a causa à nulidade do seu BIR, mas a mãe do recorrente praticou os actos criminosos no interesse do recorrente, a fim de dar-lhe um direito não devidamente adquirido para levá-lo a viver de forma permanente em Macau, ou seja, o pai ou a mãe correu o risco da responsabilidade criminal e o recorrente é o principal beneficiário do respectivo acto. (cfr. o acórdão do TSI no Processo n.º 1191/2019)
20. A entidade recorrida sabia que o recorrente não tinha culpa, mas o direito pretendido pelo recorrente está proveniente do acto criminoso feito dolosamente e de má fé pela sua mãe, por consequência, o acto da emissão do BIR da DSI é nulo nos termos do art.º 122.º n.º 2 al.s c) e i) do Código do Procedimento Administrativo.
21. Tal como se indicou anteriormente, a Administração deve agir de forma prudente ao citar o art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo. A nulidade da emissão do BIR está relacionada com os actos criminosos feitos dolosamente e de má fé, não satisfaz manifestamente os princípios fundamentais da boa fé, da tutela da confiança e da igualdade, pelo que nunca deve produzir os efeitos jurídicos putativos favoráveis ao recorrente.
22. Além disso, os principais efeitos da declaração da nulidade consistem em não reconhecer a qualidade de residente permanente do recorrente e cancelar o BIRPM e o passaporte da RAEM do recorrente nos termos legais, pelo que não se deve invocar os principais efeitos do acto nulo como os efeitos jurídicos putativos previstos no art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
23. É de salientar que depois de ser denunciado o assunto da obtenção da qualidade de residente de Macau através dos elementos de identificação falsos, caso o recorrente ainda seja reconhecido como residente permanente de Macau e continue a ser titular do BIRPM, o público acreditará erradamente que o BIRPM pode ser obtido mediante a apresentação dos elementos falsos, o que equivale a encorajar os outros a usarem este meio para atingir o mesmo propósito, contribui para os actos ilícitos e cria um mau ambiente social, bem como afecta gravemente a credibilidade do documento comprovativo de identidade, daí, a respectiva prática não satisfez o princípio da procuração do interesse público previsto no art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo e violou manifestamente o art.º 24.º da Lei Básica e o disposto da Lei n.º 8/1999.
24. O advogado indicou que por decurso de um longo tempo e de acordo com os princípios gerais da lei (direito adquirido, confiança da boa fé, boa expectativa), podem atribuir ao recorrente os efeitos jurídicos putativos do acto nulo e a entidade recorrida pode tomar decisão em função das circunstâncias diferentes em cada caso concreto, em vez de tratar todos os casos semelhantes da mesma maneira.
25. Tal como indicou o acórdão do Processo n.º 76/2015 supracitado, “o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer《de harmonia com os princípios gerais de direito》”. (cfr. o acórdão do TUI no Processo de Recurso
26. É de salientar que relativamente ao acto da obtenção do BIRM através dos elementos de identificação falsos, a DSI declara a nulidade do acto e cancela o respectivo BIR nos termos da lei. Se o caso do recorrente for tratado de maneira diferente em relação aos casos semelhantes, isso violará o princípio da igualdade previsto no art.º 5.º do Código do Procedimento Administrativo e prejudicará a confiança do público na Administração.
27. E o advogado entende que o cancelamento do BIR do recorrente afectará os direitos de residência e de trabalho em Macau do recorrente. Tais direitos enquadram-se no Capítulo III da Lei Básica da RAEM – direitos e deveres fundamentais dos residentes, através das epígrafes e das normas deste Capítulo, o destinatário é os residentes de Macau, daí, manifestamente um conjunto de direitos, liberdades e garantias destina-se exclusivamente aos residentes de Macau, a Lei não consagrou aos indivíduos não residentes de Macau os direitos exclusivos gozados pelos residentes de Macau.
28. O recorrente não tem qualidade de residente de Macau, ele nunca gozou dos direitos fundamentais consagrados pela lei aos residentes de Macau ad initio (incluindo residir, andar na escola, ser titular do BIR e assumir as funções públicas), portanto, a declaração da nulidade do acto da emissão do BIR ao recorrente não prejudica os direitos fundamentais do recorrente.
29. O recorrente não tem qualidade de residente permanente da RAEM, o que não pode ser alterado apenas porque ele acredita subjectivamente que ele é titular legítima e legal do BIRPM.
30. Além disso, a qualidade do recorrente não foi posta em causa, mas o que não significa que a sua qualidade se tornou legal automaticamente, nem implica que o acto da obtenção do BIRM com elementos de identificação falsos não prejudica os interesses públicos.
31. Além disso, a situação supracitada não constitui a eficácia e a relação já obtidas pelo recorrente a nível fáctico, por consequência, não pode ser admitida juridicamente.
32. O recorrente, como menor, tem plena capacidade de exercício, mesmo que não tenha qualidade de residente de Macau, o que não obsta a que ele escolhe profissão e emprego em Macau, no Interior da China ou em qualquer outra região.
33. Se o recorrente pretenda desenvolver-se em Macau e se ele nunca pretenda deslocar-se a outros locais para trabalhar ou fixar a residência, o que é apenas a sua vontade pessoal, não é o fundamento principal ou o factor a ter em consideração para a emissão do BIR pela DSI.
34. Além disso, o cancelamento do BIRPM do recorrente pela DSI não impede o recorrente de requerer a residência em Macau junto da entidade competente nos termos da outra lei.
35. O advogado indicou que os pais do recorrente não obtiveram, de má fé, o BIR a favor do seu filho por meio do “casamento falso”, e o respectivo indivíduo apenas agiu com dolo quando ele praticou o crime de falsificação de documentos através do “casamento falso”, mas este caso não se enquadra na situação supracitada.
36. No entanto, a mãe do recorrente praticou dolosamente os actos criminosos (crime de falsificação de documento de valor especial) para fazer o recorrente a adquirir o BIRM, a má fé da mãe do recorrente já foi confirmada pelo Juízo Criminal.
37. O advogado entende que se no momento do nascimento do recorrente a sua mãe declarou verdadeiramente os elementos de identificação do pai do recorrente, em conformidade com a lei vigente, o recorrente acabaria por adquirir o BIRPM, tal como aconteceu no caso da irmã mais velha do recorrente F.
38. Nos termos do art.º 4.º n.º 2 do D.L. n.º 49/90/M, de 27 de Agosto, aos portadores de título de permanência temporária não é reconhecida a qualidade de residente ... ..... Portanto, mesmo que ao recorrente seja atribuído o título de permanência temporária, ele não tem qualidade de residente de Macau. (cfr. o acórdão do TUI no Processo de Recurso n.º 76/2015)
39. É de salientar que o recorrente nunca tinha o título de permanência temporária, pelo que o procedimento da substituição do BIRM por título de permanência temporária não se aplica ao recorrente. Por enquanto, a legislação que regula o título de permanência temporária já foi revogada e a qualidade de residente de Macau do recorrente só pode ser apreciada conforme a lei vigente.
40. De facto, a mãe do recorrente pode declarar, com verdade, os elementos de identificação do pai no momento do nascimento do recorrente, tal como aconteceu a irmã mais velha do recorrente, e pode substituir o BIRM por título de permanência temporária, mas na altura a sua mãe escolheu a declaração de elementos de identificação do pai falsos, levando o recorrente a adquirir o BIRM e o BIRPM.
41. Daí, a respectiva hipótese deduzida pelo advogado não é procedente e é infundada.
42. O advogado entende que a não atribuição da entidade recorrida ao recorrente dos efeitos jurídicos putativos do acto nulo nos termos do art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo representa o erro e a irrazoabilidade absoluta do exercício do poder discricionário e violaram o princípio da proporcionalidade.
43. É de salientar que, a questão de atribuir ou não os efeitos jurídicos putativos ao recorrente prende-se com o poder discricionário da Administração, não está submetida à impugnação a escolha da Administração de não atribuição à parte dos efeitos jurídicos putativos tendo em conta a prossecução dos interesses públicos, não se verificou o erro manifesto ou a irrazoabilidade absoluta, nem violou o princípio orientador das actividades administrativas. (cfr. o acórdão do TSI no Processo n.º 782/2017)
44. A lei consagrou à Administração as competências, mas não obrigou a Administração a fazer tal decisão, e o Tribunal também não pode obrigar a Administração a aplicar as respectivas normas no caso concreto. Ou seja, a não atribuição dos efeitos jurídicos putativos ao acto administrativo nulo não violou o princípio da proporcionalidade indicado pelo advogado.
45. Para procurar os interesses públicos, a Administração deve obedecer ao princípio da prossecução dos interesses públicos previsto no art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo, a fim de atribuir ou não ao recorrente dos efeitos jurídicos putativos por força do art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
46. Do ponto de vista dos interesses públicos, após a declaração da nulidade de uma série de actos da emissão do documento ao recorrente, a manutenção da identidade do recorrente causará inevitavelmente a ofensa do regime social e dos interesses públicos da RAEM e não alcançará os efeitos da prevenção do crime.
47. Além disso, a continuação da emissão do BIRPM e do passaporte de Macau ao indivíduo quem não satisfaz os requisitos legais não só viola os princípios da legalidade e da prossecução dos interesses públicos, mas também viola o princípio da igualdade em relação a outros residentes permanentes de Macau quem satisfazem as disposições legais, assim, a não atribuição ao recorrente os efeitos jurídicos putativos reflecte justamente o respeito a um conjunto de princípios do Direito Administrativo.
48. A fim de ponderar e combater contra a obtenção da qualidade de residente de Macau através dos elementos falsos, de cumprir os princípios do Direito Administrativo e de assegurar os interesses do recorrente para continuar a residir em Macau, a entidade recorrida entende que ao recorrente não foi atribuído os efeitos jurídicos putativos nos termos do art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
49. Nestes termos, a decisão da Administração de não atribuição dos efeitos jurídicos putativos ao recorrente no exercício do poder discricionário não enfermou dos vícios do desvio do poder, do erro manifesto ou da irrazoabilidade absoluta, nem violou os princípios da proporcionalidade, da confiança e da boa fé, de facto, os principais efeitos da declaração da nulidade residem em não reconhecer a qualidade de residente permanente de Macau do recorrente e cancelar o BIRPM e do passaporte de Macau nos termos legais, pelo que é irracional a invocação do advogado que considera os principais efeitos da nulidade do acto como os efeitos jurídicos putativos previstos no art.º 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
50. Por fim, é de repetir que o cancelamento do BIPRM do recorrente pela DSI não impede o recorrente de requerer a residência em Macau junto da entidade competente conforme outro fundamento legal.
51. Face ao exposto, o acto recorrido não tem a interpretação e a aplicação erradas nos art.ºs 5.º n.º 2, 8.º e 123.º n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo indicadas pelo advogado, assim, a impugnação do advogado é improcedente.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
«1.
A, melhor identificado nos autos, vem interpor recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Administração e Justiça, de 26 de Maio de 2021, que indeferiu o recurso hierárquico interposto do acto da Directora dos Serviços de Identificação que declarou nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Residente (BIR) e do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM) e bem assim os actos da respectiva substituição e renovação, pedindo a respectiva anulação.
2.
2.1
Como já noutras ocasiões tivemos oportunidade de referir, pensamos que, não obstante a aparência de unicidade do acto recorrido e, consequentemente, da respectiva impugnação, o certo é que não é assim.
Estamos, em rigor, perante uma cumulação de impugnações de diversos actos que, face ao disposto no artigo 44.º do CPAC, atenta a conexão que existe entre os respectivos objectos, se nos afigura legal.
2.2.
(i)
As declarações de nulidade agora impugnadas fundam-se na alínea c) e na alínea i) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo. No entender da Administração, o Recorrente beneficiou da emissão do BIR e do passaporte da RAEM porque, quando nasceu, ficou a constar do respectivo assento de nascimento como seu pai um residente de Macau. Entretanto, veio a verificar-se, na sequência da propositura de uma acção judicial de impugnação de paternidade que o pai do Recorrente não é aquele que inicialmente ficou a constar do registo civil (C), mas um outro individuo que à data do nascimento do Recorrente não era residente de Macau (D), embora, mais tarde, tenha vindo a adquirir esse estatuto.
Além disso, a mãe do Recorrente foi condenada por sentença proferida em 11 de Fevereiro de 2015 no processo crime n.º CR3-14-0112-PCC em virtude de ter declarado que o Recorrente era filho de C.
Por isso, a Administração considerou que os actos originários de emissão de BIR e de emissão de passaporte são nulos porque o seu objecto constituiu crime [artigo 122.º, n.º 2, alínea c) do CPA] e os actos de renovação que se lhe seguiram são também nulos por se tratarem de actos consequentes daqueles actos nulos [artigo 122.º, n.º 2, alínea c) do CPA].
Estamos em crer que não é assim. Pelas razões que procuraremos explicitar de seguida.
(ii)
Vamos admitir, para encurtar razões, que o acto de emissão do primeiro bilhete de identidade de residente a favor do aqui Recorrente, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, que então se encontrava em vigor (aí se preceituava: «Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento»), é nulo pelas razões invocadas pela Administração na fundamentação do acto agora impugnado.
A verdade é que, com base neste pressuposto, a Administração não podia ter extraído, como extraiu, a conclusão seguinte, qual seja a de que essa nulidade implica, como que por arrastamento, a nulidade de todos os actos de renovação do BIR a favor do Recorrente que se seguiram àquela primeira emissão, ao abrigo do disposto da alínea i) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA, pela simples razão de que tais actos não são actos consequentes desse primeiro acto.
Com efeito, a nosso ver e salvo o devido respeito, a Administração não terá ponderado devidamente que, a partir do dia 20 de Dezembro de 1999, o estatuto pessoal do Recorrente sofreu uma mudança fundamental com directa relevância relativamente à questão que aqui se discute.
É que com entrada em vigor da Lei Básica e da Lei n.º 8/1999, o Recorrente adquiriu, ex lege e ex novo, portanto, e não na sequência de um qualquer acto administrativo, o estatuto de residente permanente da RAEM, porquanto, o mesmo é um cidadão chinês que nasceu em Macau antes do estabelecimento da RAEM e cujo pai, à data do seu nascimento, residia legalmente em Macau (cfr. artigo 24.º, n.º 1 da Lei Básica e artigo 1.º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 8/1999).
Importa sublinhar este ponto: à data da entrada em vigor da Lei Básica e da Lei n.º 8/1999, a paternidade do Recorrente encontrava-se plenamente estabelecida e uma vez que dela resultava que o seu pai residia legalmente em Macau à data do seu nascimento, isso originou que na sua esfera jurídica se tivesse radicado o direito à residência permanente na RAEM (cfr. artigo 1650.º, n.º 1 do Código Civil).
Foi, portanto, por ter o estatuto de residente permanente da RAEM e só por isso, que, após 20 de Dezembro de 1999, o Recorrente obteve o Bilhete de Identidade de residente permanente da RAEM (BIRPM) em substituição (ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 1 da Lei n.º 8/2002. Não se tratou, pois, de uma renovação) do anterior BIR e bem assim as suas sucessivas renovações, nos termos resultantes das normas dos artigos 2.º, n.º 2, alínea 1) e 3.º, n.º 1 da Lei n.º 8/2002.
Daí que se imponha a conclusão por nós acima antecipada de que a substituição do BIR pelo BIRPM e as renovações deste e, nomeadamente, a última de que, actualmente, o Recorrente é titular não são actos consequentes do acto emissão do BIR ocorrida no ano de 1994, mas, antes, a concretização de um direito do Recorrente directamente emergente da Lei em virtude da aquisição do estatuto de residente permanente que para si ocorreu no dia 20 de Dezembro de 1999.
Esta conclusão, sempre se diga, não é afectada, de nenhuma forma, pelos eventuais reflexos que a sentença proferida na acção de impugnação da paternidade do Recorrente e da qual resultou ser seu pai biológico aquele que figurava no Registo Civil e relativamente ao qual a paternidade se encontrava estabelecida possa ter sobre a aquisição do estatuto de residente permanente.
Assim, não sendo os actos de emissão do BIRPM a favor do Recorrente posteriores a 20 de Dezembro de 1999, actos administrativos consequentes de um qualquer acto administrativo, nomeadamente do acto de emissão do BIR que teve lugar no ano de 1994 e que a Administração declarou nulo, parece-nos que se impõe concluir que os actos recorridos que os declaram nulos procederam a uma qualificação jurídica errada dos mesmos e por via disso incorreu em erro de direito invalidante ao declarar a sua nulidade com esse fundamento, pelo que, em nosso modesto entender, não poderão deixar de ser anulados.
(iv)
Sem prejuízo do que vimos de dizer, não deixaremos por abordar a questão antes mencionada dos reflexos da procedência da acção de impugnação da paternidade sobre o estatuto de residente permanente do Recorrente.
Como referimos, a pessoa que, à data do nascimento do Recorrente figurava no Registo Civil como seu pai não é o seu pai biológico, tal como veio a ser decidido pelo Tribunal Judicial de Base por sentença transitada em julgado.
Mas terá resultado daí a perda do estatuto de residente permanente por parte do Recorrente, tal como pretende a Administração com a implicação do cancelamento do BIR e do passaporte da RAEM (cfr. artigo 55.º da contestação)?
Cremos, convictamente, que não.
Resulta do disposto na alínea 2) do artigo 6.º da Lei n.º 13/2009, que a matéria atinente ao estatuto de residente de Macau está sujeita a reserva de lei. E a verdade é nem a Lei Básica nem a Lei n.º 8/1999 prevêem que a impugnação com êxito da maternidade ou da paternidade com base nas quais tenha produzido a aquisição do estatuto de residente permanente implique a perda automática desse estatuto (aliás, na Lei n.º 8/1999 apenas se encontra prevista uma situação de perda do estatuto de residente permanente relativamente aos residentes referidos nas alíneas 9) e 10) do n.º 1 do artigo 1.º que perdem o direito de residência se deixarem de residir habitualmente em Macau por um período superior a 36 meses consecutivos).
Assim, sem lei que expressamente preveja uma tal consequência, ou seja, a perda automática e a todo o tempo do estatuto de residente permanente por mero efeito da procedência de uma acção de impugnação de maternidade ou paternidade estabelecidas, não pode a Administração extrair tal consequência, ainda que indirectamente, como no caso em apreço (diferentemente se passam as coisas quando o estatuto de residente não é adquirido originariamente, por força do nascimento em Macau, mas, ao invés, tem na base um acto administrativo de autorização de residência. Nestas situações, é claro que a revogação, a anulação administrativa ou a declaração de nulidade do acto e autorização de residência farão cair o estatuto de residente permanente. Mas não é essa a situação do Recorrente. Este não adquiriu o estatuto de residente permanente por ter residido habitualmente em Macau durante 7 anos consecutivos à sombra de um acto administrativo de autorização de residência, mas, antes, porque nasceu em Macau e o seu pai, ou, melhor, a pessoa que no seu assento de nascimento figurava como seu pai, o que vai dar ao mesmo, residia legalmente em Macau).
A isto se poderá contrapor que a norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil permite dar cobertura à falada consequência ablativa sobre o direito fundamental à residência permanente. Não nos parece.
Ainda que da norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil decorra que o estabelecimento da filiação tem eficácia retroactiva, daí não se pode extrair, parece-nos, uma consequência directa em matéria de direito de residência, já que dela não resulta, expressamente, que o estabelecimento da filiação que seja consequência da procedência de uma acção de impugnação de paternidade estabelecida tenha qualquer implicação no estatuto de residente permanente adquirido pelo filho com base na paternidade estabelecida à data do seu nascimento (a regra da eficácia retroactiva do estabelecimento da filiação contida no n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil significa apenas que, em princípio, todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas e que não se produziram antes, produzem-se no momento do estabelecimento da filiação como se esta tivesse sido estabelecida desde o nascimento: assim, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, Coimbra, 2019, p. 21).
Mas mesmo que, sem conceder, admitamos que a regra do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil tem uma implicação directa sobre o direito fundamental de residência permanente na RAEM, podendo, nomeadamente, levar à sua perda, estamos em crer que essa consequência não pode operar a todo o tempo, por elementares razões de Estado de Direito.
Com efeito, a nosso ver, regra da retroactividade dos efeitos da filiação exige uma aplicação criteriosa. Como a doutrina assinala, «a retroactividade é uma técnica jurídica não uma ficção da realidade» e a realidade é esta: no momento do nascimento do Recorrente, aquele a que lei confere relevância, o vínculo jurídico da sua filiação estava estabelecido em relação a um residente de Macau.
O efeito que a Lei Básica e a Lei n.º 8/1999 associam a esse facto produziu-se com a atribuição, ex lege, ao Recorrente do estatuto de residente permanente que o mesmo manteve, pacificamente, durante cerca de 26 anos.
Aceitar uma aplicação indiscriminada da regra da retroactividade dos efeitos do estabelecimento da filiação no caso em apreço, compromete irremediável e intoleravelmente esse elemento essencial do Estado de Direito que é o da segurança jurídica (neste último mesmo sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 22. Ainda que a Lei Básica não consagre expressamente uma referência ao princípio da segurança jurídica, deve entender-se que esse é um princípio essencial integrador do tecido normativo material de natureza constitucional que vigora na Região, porquanto reveste um carácter imprescindível a uma estruturação da vida social em paz jurídica. Neste sentido, JORGE REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra 2019, p. 149).
Ora, a situação que os presentes autos documentam parece-nos ser uma daquelas em que o princípio da segurança jurídica reclama uma desaplicação daquela norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil em toda a sua extensão. De contrário estar-se-ia a destruir, de forma absolutamente injustificada, o vínculo pessoal à Região que o Recorrente, desde o seu nascimento, ocorrido há cerca de 28 anos, legitimamente mantém.
(v)
Mais. O caso em apreço apresente especificidades que não podemos deixar de ser salientar no presente contexto.
A primeira, prende-se com o facto de, quando o Recorrente nasceu a sua mãe ser portadora de Título de Permanência Temporária (TPT). Significa isto que, acaso a paternidade do Recorrente constante do registo correspondesse ab initio à paternidade biológica, ter-lhe-ia sido atribuído, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 49/90/M, de 27 de Agosto, um TPT (preceituava a referida norma: «aos filhos dos portadores de título de permanência temporária, nascidos no Território, que, nos termos da legislação em vigor não tenham direito a outro documento, será igualmente concedido o título de permanência temporária»).
Além disso, da mesma forma que a mãe e a irmã mais velha do Recorrente substituíram os respectivos TPT por Bilhetes de Identidade de Residente, no ano de 1996, ao abrigo do disposto no ponto 1 do Despacho n.º 46/GM/96, tal também teria sucedido, com toda a certeza, com o Recorrente, pelo que o mesmo, desde essa altura, teria passado a residir legalmente em Macau com todas as consequências daí decorrentes, nomeadamente a de vir a adquirir a residência permanente ao cabo de sete anos de residência habitual nos termos previstos no artigo 24.º, alínea 2) da Lei Básica e no artigo 1.º, n.º 1, alínea 2) da Lei n.º 8/1999.
A segunda especificidade tem que ver com o tempo da actuação administrativa sindicada.
Na verdade, a sentença que julgou procedente a impugnação da paternidade do Recorrente foi proferida em 23 de Maio de 2011 e transitou em julgado em 9 de Junho de 2011.
Em 15 de Fevereiro de 2012, a mãe do Recorrente apresentou à Direcção dos Serviços de Identificação (DSI) a sua (dele) certidão narrativa do assento de nascimento donde consta que o seu pai é D e que o nome do Recorrente passou a ser A. Na sequência, a DSI emitiu um novo BIR do Recorrente no qual fez constar o seu novo nome.
Em 26 de Janeiro de 2017, dois anos depois de a mãe do Recorrente ter sido condenada pela prática do crime de falsificação de documento de especial valor, o Recorrente requereu a renovação seu BIR, declarando que o seu pai é D e a DSI renovou esse documento.
No ano de 2020, a DSI desencadeou o procedimento que culminou, em 26 de Maio de 2021, cerca de 10 anos depois da prolação da sentença que jugou procedente a impugnação de paternidade e mais de 8 anos depois da alteração do BIR do Recorrente, a pedido da mãe deste.
(vi)
O que se disse relativamente aos actos de emissão de BIR vale, mutatis mutandis e até por maioria de razão, relativamente ao acto de emissão do passaporte da RAEM.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado procedente.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. No dia 5 de Maio de 1994 em Macau nasceu um sujeito do sexo masculino que foi registado como sendo G filho de C e B conforme assento de nascimento nº ****;
2. C era residente de Macau e titular do BIRPM n.º 7******(0)
3. B era titular do anterior Título de Permanência Temporária n.º 64**** e a partir de 25 de Outubro de 1996 passou a ser titular do BIRPM n.º 1******(6);
4. Em 23 de Maio de 1994 C pediu pela primeira vez a emissão do BIRM G tendo sido emitido pela primeira vez o BIRM n.º 1/******/2, o qual foi renovado em 9 de Fevereiro de 1996 e em 22 de Junho de 1998;
5. Posteriormente, em dia 15 de Dezembro de 2004 foi emitido a G o BIRPM n.º 1******(2), o qual foi renovado em 29 de Outubro de 2009;
6. Por sentença datada de 23 de Maio de 2011, transitada em julgado em 9 de Junho de 2011 foi declarado que G não é filho de C, mas é filho de D, ordenando-se que se procedesse à correspondente rectificação no respectivo registo de nascimento;
7. Em 15 de Fevereiro de 2012, B apresentou o original da Certidão Narrativa de Registo de Nascimento n.º ****/1994/R da qual consta que G tinha o nome de A e que o é D e a mãe é B, pedindo a renovação do BIRPM do agora Recorrente e que se fizesse constar a paternidade de D, o que foi deferido sendo emitido o bilhete de identidade, fazendo-se constar que o nome do Recorrente é A e o pai é D;
8. Pela Direcção dos Serviços de Identificação foram tomadas declarações a B no dia 11 de Maio de 2020, na qual declarou que “3. Logo depois do casamento com D, decidimos separar-se por causa da ruptura da relação conjugal. Eu vivi em Macau com a filha, e D viveu em Zhongshan e Guangxi. Quando F tinha 2 anos de idade, namorei com C. Uns meses depois, fiquei grávida, mas através de cálculo, achei que era filho de D. Mas na altura, namorei com C e quis divorciar-se com D, pelo que depois do nascimento do filho, dei-lhe o nome de G, e declarei que o seu pai é C. O filho também nasceu em Macau … 4 … Quando o filho tinha mais de 1 ano, C sabia que ele não era pai biológico, pelo que separou-se de mim, e eu cuidei sozinha dos filhos… 6 … Quando o filho frequentou a escola secundária, eu decidi rectificar o nome e as informações do pai biológico dele. O nome do filho passou a ser A, e o pai biológico passou a ser D. Na altura, apresentei requerimento ao tribunal, foi realizado o teste de paternidade, e ficou provado que o pai biológico do filho era D. O tribunal autorizou a rectificação das informações de identificação do filho, e já foi efectuada a rectificação na Conservatória do Registo Civil…”;
9. D era residente do Interior da China, entrou em Macau no ano de 2002 usando o Salvo-Conduto Singular para Deslocação a Hong Kong e Macau, e no dia 11 de Fevereiro de 2002, foi lhe emitido pela primeira vez o BIRM;
10. Por Despacho de dia 22 de Março de 2021 do Director dos Serviços de Identificação foram declarados nulos os actos de emitir e renovar o BIRM do aqui Recorrente, de substituir e renovar o BIRPM, e de emitir o passaporte da RAEM, e ordenado o cancelamento do BIRPM n.º 1******(2) e do passaporte da RAEM n.º MA01***** dos quais aquele era titular, tudo com os fundamentos constantes de fls. 218 a 244 do PA apenso e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
11. Em 24 de Março de 2021 foi expedida a notificação do Recorrente daquela decisão o qual veio a interpor recurso hierárquico da mesma em 6 de Maio de 2021 – cf. fls. 245 a 266 -;
12. Por despacho de 26 de Maio de 2021 do Secretário para a Administração da Justiça foi o recurso hierárquico indeferido e mantida a decisão recorrida tudo conforme consta de fls. 270 a 302 do PA apenso e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
13. O Recorrente foi notificado daquela decisão por carta registada com aviso de recepção assinado este em 5 de Junho de 2021 – cf. fls. 312 do PA -;
b) Do Direito
Vem o recorrente imputar ao acto recorrido os seguintes vícios:
1. Violação de lei quanto à aplicação da al. c) do nº2 do artº 122º do CPA;
2. Violação de lei quanto aos efeitos putativos da situação de facto decorrente do acto nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA;
3. Violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
Por facilidade de análise aderimos integralmente à posição do Ilustre Magistrado do Ministério Público expressa no seu Parecer de que estamos perante uma cumulação de impugnações de diversos actos a qual se mostra legal nos termos do artº 44º do CPAC face à conexão existente entre os respectivos objectos.
1. Violação de lei quanto à aplicação da al. c) do nº2 do artº 122º do CPA
A este respeito invoca o Recorrente que pese embora se tenha demonstrado que a sua mãe cometeu o crime de falsas declarações aquando do registo do seu nascimento indicando ser o seu pai outro que não o seu pai biológico, não ficou demonstrado na sentença criminal que o haja feito para que o Recorrente obtivesse o bilhete de identidade de Macau mas apenas para ocultar do seu namorado que estava grávida do ex-namorado, bem como que o Recorrente é alheio à actuação criminal que dali tenha resultado.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Haverá erro por vício de violação de lei sempre que forem inexistentes os pressupostos de facto que determinam a prática do acto administrativo.
Os actos administrativos impugnados têm como fundamento a nulidade decorrente da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA de que o crime de falsas declarações quanto à paternidade do recorrente foi o pressuposto do acto.
Na parte que releva para estes autos dispõe o artº 122º do CPA:
Artigo 122.º
(Actos nulos)
1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) …
b)…
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d)…
e)…
f)…
g)…
h)…
i)…
Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 30.05.2018, Processo nº 29/2018:
«Relativamente à interpretação desta alínea, dissemos o seguinte nos acórdãos de 25 de Abril e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 11/2012 e 48/2012:
«O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto1, é o efeito jurídico criado ou declarado2.
No caso dos autos, o objecto do despacho de … não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS3 sustentam que:
“A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime»tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM4 escrevem:
“Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”».
Pois bem, tendo o despacho do Chefe do Executivo, de 26 de Dezembro de 2000, que autorizou a residência temporária da 2.ª recorrente e os despachos do Secretário para a Economia e Finanças, de 6 de Abril de 2004, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente, por 3 anos e de 16 de Fevereiro de 2007, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente até 31 de Maio de 2008, sido proferidos com base em documentos de identificação de uma interessada que eram falsos, com nome falso, com data de nascimento e identidade do pai que não coincidiam com os verdadeiros elementos de identificação da 2.ª recorrente, podemos dizer que tais actos administrativos apenas foram produzidos porque tinham na sua base a prática de crimes, por parte da 2.ª recorrente.
E pergunta-se, se a 2.ª recorrente tivesse exibido a sua verdadeira identidade, tais actos ter-lhe-iam concedido a residência de Macau? Não sabemos. Provavelmente, não, já que tendo a 2.ª recorrente de nacionalidade chinesa, residente no Interior da China, face ao disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º14/95/M, de 27 de Março, vigente ao tempo, teria de entregar documento comprovativo da autorização para requerer a fixação de residência em Macau, emitido pelas autoridades competentes da República Popular da China, o que não seria possível, porque tal documento nunca foi emitido.
Ou seja, a 2.ª recorrente obteve a residência em Macau usando uma identidade falsa, por razões não inteiramente claras e que em si não são relevantes, mas que provavelmente estão relacionadas com o que se disse atrás. Quando já era residente permanente, veio, então, pretender regressar à sua identidade verdadeira, pedindo a alteração do nome no seu bilhete de identidade de residente. Parece evidente que não pode ser.
Afigura-se-nos que o acto recorrido interpretou devidamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.»
Como expressamente se diz no trecho citado o entendimento seguido resulta de que «a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma».
Na situação do Acórdão citado a falsificação dos documentos foi cometida pela destinatário do acto, ou seja, a beneficiária da actuação da administração levou a que esta praticasse um acto que lhe era favorável e constitutivo de direitos com base em pressupostos de facto falsos e criminalmente puníveis. Nos dois Acórdãos que ali se citam a situação subjacente à prática do acto administrativo que veio a ser julgado nulo era uma situação de corrupção passiva cometida também com o objectivo de conduzir à prática do acto que veio a ser julgado nulo.
Dúvidas não assistem de que a solução Doutrinária adoptada é a melhor interpretação para o preceito em causa.
Contudo, a essa interpretação extensiva não é alheia os princípios fundamentais que enfermam o nosso sistema jurídico o qual assenta no que à responsabilidade concerne no princípio da culpa e na protecção de terceiros de boa-fé, havendo as formas de responsabilidade objectiva que ser expressamente previstas na lei.
Ora, aquilo que a Doutrina sustenta é que choca à sensibilidade do jurista que um acto praticado com base em pressupostos de facto forjados, numa actuação que é criminalmente punida, pudesse gerar quaisquer efeitos havendo que ser sancionado com a nulidade.
Porém, no caso que nos ocupa o destinatário do acto é um terceiro totalmente alheio à actividade criminosa que levou a que o pressuposto de facto que eventualmente conduziu à prática do acto administrativo fosse forjado. Concretizando, o sujeito a favor de quem os actos administrativos anulados foram constitutivos de direito era uma criança recém nascida que sem necessidade de qualquer outra prova é manifestamente alheia às falsas declarações que a mãe haja prestado a seu favor.
Destarte, se é correcta a interpretação no sentido de a actividade criminal prevista na letra da lei tanto pode ser a que se resulta da prática do acto – como expressamente resulta da disposição legal – como também, aquela que haja estado na sua génese, também porque a expressão usada é “crime” nada autoriza que a interpretação extensiva vá tão longe que possa entender que ainda que os sujeitos envolvidos na prática do acto – administração pública e cidadão sujeito do acto - actuem de boa-fé, a actuação crimonosa de terceiros possa vir a inquinar o acto de tal forma que o fira de nulidade.
O que a lei diz é que são nulos: Os actos cujo objecto seja impossível, os actos cujo objecto seja ininteligível, os actos cujo objecto constitua crime. A interpretação literal do preceito não pode ser outra que não esta, o que se pretende acautelar é que o objecto do acto administrativo possa constituir crime, contudo, alguma doutrina veio a fazer uma “interpretação extensiva” do preceito no sentido de considerar que quando os pressupostos do acto foram forjados de forma que constitua crime, também ai aquele é cominado com a nulidade, mas há que pressupor que essa actuação criminosa tenha uma conexão com os sujeitos a quem o acto se dirige.
Salvo melhor opinião, em nenhum dos Acórdãos do TUI a questão “sub judice” tem por objecto sujeitos que sejam alheios à actividade criminosa que levou à prática do acto, pelo que, em situações como aquela que ocorre nestes autos haverá que ponderar também o princípio da protecção dos sujeitos de boa-fé não levando a interpretação extensiva a um ponto que nos parece já estar – no caso de desconsiderar os interesses de sujeitos de boa-fé – num nível muito para além daquele que resulta da letra da lei.
Mais invoca o Recorrente que não está demonstrado que a actuação criminosa haja tido em vista a prática do acto administrativo mas apenas esconder que a paternidade cabia a outro sujeito.
Não concordamos com este entendimento, pois, ainda que não o tivesse feito com essa intenção ou apenas com essa intenção, não deixava de ser alheio, segundo as regras da experiência que com essa actuação ainda que por esse motivo alcançava também este outro desiderato.
A outra questão que se coloca, seja em sede de conclusões de recurso, seja no Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público, é se o resultado obtido – o Recorrente ao tempo recém nascido passar a ser residente de Macau - não seria também alcançado mesmo que aquela actividade criminosa não tivesse sido ocorrido.
De acordo com o disposto no nº 2 do artº 2º do Decreto-Lei nº 49/90/M sendo a mãe do Recorrente ao tempo do seu nascimento portadora do Título de Permanência Temporária, também o seu filho e agora aqui Recorrente tinha direito a que lhe fosse emitido Título de Permanência Temporária (TPT), o qual por força do Despacho nº 46/GM/96 veio a permitir que os seus titulares viessem a ter Bilhetes de Identidade de Residente, como sucedeu com a mãe do Recorrente e ao que parece também como a sua irmã.
Logo, haveria que indagar se na ausência da indicada actividade criminosa o aqui Recorrente teria ou não beneficiado do Título de Permanência Temporária e posteriormente do Bilhete de Identidade de Residente o que não constando dos actos administrativos impugnados nos leva também, a ter de concluir não ter sido a indicada actividade criminosa determinante do estatuto de Residente do Recorrente o qual por ter nascido em Macau filho de mãe portadora de TPT àquele estatuto viria também a ter direito por força da legislação vigente e posterior.
Mas ainda que ainda assim não fosse, aderimos integralmente ao entendimento do Ilustre Magistrado do Ministério Público de que «com entrada em vigor da Lei Básica e da Lei n.º 8/1999, o Recorrente adquiriu, ex lege e ex novo, portanto, e não na sequência de um qualquer acto administrativo, o estatuto de residente permanente da RAEM, porquanto, o mesmo é um cidadão chinês que nasceu em Macau antes do estabelecimento da RAEM e cujo pai, à data do seu nascimento, residia legalmente em Macau (cfr. artigo 24.º, n.º 1 da Lei Básica e artigo 1.º, n.º 1, alínea 1) da Lei n.º 8/1999)», o qual aqui damos por reproduzido e de onde mais uma vez resulta que o estatuto de Residente Permanente do Recorrente actualmente, conexão alguma mantém com a indicada actividade criminosa que fundamentou as declarações de nulidade.
Por fim cabe ainda dizer que, como resulta da matéria de facto apurada em 15.02.2012 a mãe do Recorrente entregou na entidade competente a certidão de nascimento deste de onde consta a alteração do nome do Recorrente e da menção da paternidade pedindo a renovação do BIRPM o que foi deferido.
Ora, ainda que se sustente que o primeiro acto de emissão de BIRM do Recorrente foi emitido com base na actividade criminosa, o certo é que, está igualmente demonstrado que posteriormente veio a ser emitido o BIRPM ao Recorrente já expurgado daquela actuação e sem que se haja feito menção alguma.
Este acto de Fevereiro de 2012 de emissão do BIRPM parte de pressupostos completamente distintos do acto inicial e que está na base da declaração de nulidade não sendo um acto subsequente daquele. É um acto administrativo completamente novo e que parte de pressupostos completamente distintos.
Em Fevereiro de 2012 a Administração sabia que a paternidade do Recorrente tinha sido alterada, pelo que, se entendia que algo de errado se tinha passado, esse haveria de ter sido o momento para agir em conformidade.
Contudo, o que se fez foi emitir o BIRPM ao Recorrente.
A este acto não se lhe imputa vício algum e sendo válido e constitutivo de direitos para o Recorrente face ao disposto na alínea b) do nº 1 do artº 129º do CPA não pode ser livremente revogado, menos ainda declarado nulo e, se anulável fosse – o que não concedemos – há muito que se mostra ultrapassado o prazo para o efeito previsto no nº 1 do artº 130º do CPA.
Logo, estando a ser emitidos os Bilhetes de Identidade ao Recorrente desde aquela data com base na paternidade que foi fixada na sequência da impugnação, não sendo este acto subsequente do acto inicial de atribuição de Bilhete de Identidade é inócua e irrelevante a declaração de nulidade deste outro uma vez que ao Recorrente já foi reconhecido o direito de Residente Permanente com a emissão do BIRPM de 2012 em face desta paternidade original.
Aqui chegados impõe-se extrair uma conclusão.
Seja porque a actividade criminosa não pode ser subjectivamente imputada ao Recorrente o qual lhe é totalmente alheio, seja porque pelas razões indicadas supra aquela indicada actividade criminosa não foi em face de toda a situação subjacente aos autos determinante para que o Recorrente adquirisse e seja hoje titular do estatuto de Residente da RAEM verifica-se que é inexistente o pressuposto de facto – actividade criminosa – que está subjacente à prática dos actos impugnados de declaração de nulidade.
Assim sendo, procede o invocado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, sendo os actos impugnados anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.
2. Violação de lei quanto aos efeitos putativos da situação de facto decorrente do acto nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA e
3. Violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.
Mas ainda que se entendesse e concluísse pela nulidade dos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM, sempre haveria que avaliar dos efeitos putativos do acto.
Sendo o acto nulo não produz efeitos, pelo que, segundo o purismo dos conceitos nada mais haveria a discutir a não ser retirar da nulidade as consequências devidas.
É tradicionalmente aceite pela Jurisprudência e Doutrina que o reconhecimento por banda da Administração da nulidade do acto é um acto vinculado.
Contudo, o nº 3 do artº 123º do CPA, a propósito da não produção de efeitos jurídicos do acto nulo, consagra que não fica prejudicada «a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
Veja-se a este respeito José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” na obra supra indicada a pág. 776:
«O panorama apocalíptico associado ao regime legal da nulidade compreender-se-á numa perspectiva histórica, na medida em que o regime foi elaborado tendo em mente os actos da “administração agressiva” (e, entre nós, da administração local) e com base numa enumeração, taxativa e concreta, das situações ou dos vícios geradores de nulidade – mas é excessivamente radical e não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje, em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos actos administrativos.
Por um lado, o regime puro não funciona bem perante o alargamento do conceito e das espécies de acto administrativo, agora muitas vezes actos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, que exigem a produtividade ou merecem a estabilidade da situação de facto originada pelo acto. Por outro lado, não se coaduna com a definição qualitativa das nulidades por natureza e com o consequente carácter problemático da qualificação da invalidade – menos ainda entre nós, quando a definição legal de nulidade substancial se refere à falta de elementos essenciais, em termos que abrangem uma diversidade relevante de situações.
Como vimos, a questão da invalidade dos actos administrativos e dos respectivos efeitos constitui um problema, a resolver através da ponderação entre os valores da legalidade, de um lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões, por outro lado – sendo especialmente relevante a protecção da boa fé e da confiança dos cidadãos quando estejam em causa decisões que lhes sejam favoráveis.».
A questão tem normalmente sido abordada a propósito dos agentes putativos e de questões de urbanismo, contudo não se limita a essas situações, podendo a aplicabilidade da norma abranger outras situações de facto que hajam sido geradas por actos que se venha apurar ao fim de determinado espaço de tempo que são nulos.
Sendo certo que, no caso dos actos putativos não se trata do aproveitamento do acto nulo (o que por força da nulidade é impossível) mas do aproveitamento dos efeitos (do acto) – veja-se Inês Ramalho em “O Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”, Tese de Mestrado, Faculdade Direito de Lisboa em CJP, CIDP.
Relativamente ao anterior Código do Procedimento Administrativo de Macau aprovado pelo Decreto-Lei nº 35/94/M de 18 de Julho, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho em anotação ao nº 3 do artº 115º5 escreviam que:
«O disposto no n.º 3 do artigo 115.º veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. À transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
O caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, que são pessoas que actuando, em circunstância normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal. (…).
Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
As relações entre o agente putativo (aquele que se faz acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298.º, alínea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, contínuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado.».
Em sentido idêntico já sustentava o Prof. Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 517.
Mais recente, Luiz S. Cabral de Moncada6 em anotação ao nº 3 do artº 162º do Código do Procedimento Administrativo Português, diz:
«2. Os efeitos do acto nulo
2.1. Segundo a doutrina tradicional, o acto nulo não gera efeitos. Parte-se do princípio segundo o qual o acto nulo não gera efeitos. O princípio é lógico mas não corresponde à realidade. Trata-se um belo exemplo da metodologia hermenêutica da jurisprudência dos conceitos e do «método da inversão» dela própria que consiste em deduzir as consequências dogmáticas apenas das abstracções conceituais desprezando os dados empíricos. Apenas se admite que do acto nulo resultem efeitos «putativos», que a Administração poderá resguardar, se for caso disso, em homenagem a determinados valores, como vimos, valendo o acto como se fosse válido. Ora, se assim é, também os efeitos do acto nulo, mesmo que só envergonhadamente «putativos», poderão ter de ser retroactivamente destruídos para garantir a reconstituição de uma situação hipotética actual favorável a um beneficiário, precisamente porque o prejudicaram, mesmo que só putativamente para não chocar os mais ortodoxos, tal como sucede se o acto for apenas anulável. A final, tendo em conta razões de justiça material, os regimes do acto nulo e do acto anulável, este à frente versado, aproximam-se em vez de se afastarem.
E há outro argumento, à frente exposto; é que os actos nulos são agora susceptíveis de reforma ou conversão, de acordo com o n.º 2 do art. 164.º. E porquê? Por não terem efeitos? Não certamente.
Nesta conformidade se entende agora a ampla possibilidade de atribuir efeitos a situações de facto resultantes de actos nulos não apenas pelo decurso de tempo mas em atenção aos princípios gerais de direito administrativo.
2.2. Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse, ficando ainda apoiados nos poderes de hierarquia de que o superior faz uso para impor actos nulos quiçá por ele próprio praticados. O direito de resistência a actos nulos, salvo nos casos em que co-envolvem a prática de um crime, é fraco paliativo para tais efeitos tema, contudo, que aqui não pode ser desenvolvido.».
Como tem vindo a ser desenvolvido pela Doutrina mais recente subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo subjazem os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que se aceite a produção de efeitos decorrido que seja determinado espaço de tempo.
Ora, no caso em apreço o que aconteceu é que o Recorrente, quando nasceu em Maio de 1994 foi registado como sendo filho de um residente de Macau tendo-lhe sido atribuído o estatuto de residente permanente de Macau.
Passados 17 anos, em Maio de 2011 veio a ser proferida decisão que manda eliminar aquela menção de paternidade e inscrever uma outra passando a figurar como pai um sujeito que ao tempo do nascimento do Recorrente não era residente de Macau.
A mãe do Recorrente desde 25.10.1996 e o seu pai desde 11.02.2002 que têm o estatuto de residentes de Macau.
Ou seja, em termos práticos o que ocorre é que sendo o Recorrente um recém-nascido, por força da natureza não tem qualquer intervenção nos actos que (eventualmente) indevidamente hajam sido praticados quanto ao registo da filiação e que segundo a Administração levam à nulidade dos actos recorridos.
Isto é, dúvidas não há quanto à boa-fé do Recorrente, até porque, como já se viu há 10 anos que lhe é emitido o BIRPM nele se fazendo constar a actual paternidade mencionada na certidão de nascimento.
No entanto o resultado prático é que o Recorrente que não tendo qualquer participação activa na prática dos actos que levam à nulidade, depois de cerca de 27 anos a viver, a estudar e já a trabalhar em Macau perde o estatuto de residente, sem que subjectivamente lhe possa ser assacada responsabilidade alguma.
Ora, se outros argumentos já antes expendidos não fossem já suficientes para determinar a anulação dos actos impugnados, entendemos que o decurso do tempo é argumento bastante para em face das circunstâncias do caso concluir que deve ser reconhecido efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos que eventualmente hajam sido praticados.
Embora o objecto desta acção seja um acto administrativo isso não nos pode impedir de ver para além disso e ponderar as consequências que dele decorrem que na prática são a perda do estatuto de residente da RAEM a alguém que aqui nasceu, viveu, estudou, trabalha e onde tem as suas raízes e está culturalmente ligada sem que tenha contribuído em nada, seja para beneficiar desse estatuto, seja para as razões que agora se invocam para o perder.
Acrescendo, porque a isso também não se pode ser alheio que é de ascendência Chinesa, os quais nos termos da legislação aplicável gozam de um estatuto diferenciado, para além de que, Macau não é outra coisa que não seja parte integrante da Republica Popular da China sem prejuízo do seu estauto de Região Especial.
Chamando à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade parece-nos que a situação pode e deve ser enquadrada na previsão do nº 3 do artº 123º do CPA.
Sobre a relevância dos princípios da boa-fé e da confiança, com consagração legal no artº 8º do CPA e a sua relevância para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto é abundante a Doutrina e Jurisprudência a respeito, nada havendo a acrescentar, remetendo-se, pela sua clareza, para o trabalho de Ana Gouveia Martins em “Responsabilidade da Administração com Fundamento na Declaração de Nulidade ou Revogação de Actos Inválidos”, in Colecção de Estudos, Nº1, Instituto do Conhecimento AB.
Reconhecendo-se, com base em tudo antes exposto, a boa-fé do Recorrente, a questão que agora se coloca é como é que se torna efectiva a produção dos efeitos putativos do acto nulo.
Para o Professor Doutor Marcello Caetano a tutela dos efeitos putativos do acto era feita com recurso às regras da usucapião.
Vieira de Andrade vem dar mais relevância aos interesses em causa deixando a fixação do período de tempo necessário para a produção de efeitos para o intérprete.
«O rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, n.º 1 do CPA) e quanto ao regime de imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial (artigo 134.º, n.º 2 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (designadamente, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima ou o princípio da proporcionalidade) – prevista no n.º 3 do artigo 134.º do CPA.» - Cit. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, pág. 201 -.
Entre a exigência de instauração de uma acção para o efeito, a possibilidade de serem reconhecidos os efeitos do acto em sede de execução, a necessidade de juridificação do reconhecimento dos efeitos ou a possibilidade de ser a própria a administração a fazê-lo, entre as mais sugeridas soluções, tem a Doutrina e a Jurisprudência procurado soluções para um direito que consagrado na lei cabe encontrar como o reconhecer numa jurisdição que começando a ser de anulação tem vindo a evoluir no sentido da plena jurisdição.
Segundo Vieira de Andrade na já citada obra “A nulidade Administrativa essa Desconhecida” a pág. 780/781, «Nas situações em que se ponha o problema do reconhecimento jurídico da situação de facto decorrente do acto nulo o juiz não pode alegar que a sua tarefa é meramente hermenêutica, que só visa aplicar uma solução previamente definida na lei – ele não se limita a conhecer, decide a solução do caso concreto e é juridicamente responsável por ela, devendo, para além de evitar injustiças extremas e situações de impraticabilidade (…), respeitar a proibição do excesso, pois só atendendo aos efeitos reais da decisão se alcança a paz social que a justiça almeja.».
Como vem sendo esclarecido o que está em causa não é a produção de efeitos de um acto nulo, o qual por força da nulidade nunca poderia produzir efeitos.
O que está em causa é reconhecerem-se efeitos jurídicos às situações de facto geradas pelo acto nulo.
Ora este efeito tanto pode ser conseguido através da administração e aqui no exercício de um poder discricionário ou pelo tribunal.
No caso em apreço está em causa o estatuto de residente da RAEM.
Não colhe qualquer sucesso a argumentação da Autoridade Recorrida quando demanda ainda que veladamente o interesse público para a não emissão do BIRPM e do Passaporte com base numa situação criminal que de modo algum pode ser imputada ao interessado e que como vimos, uma vez expurgada, o mesmo havia adquirido o estatuto de residente com base noutros fundamentos – o qual até, com base noutros pressupostos como já referimos até lhe foi reconhecido -. Menos ainda, será sustentável a imposição de consequências de um acto por outros praticado a quem a ele é alheio (neste caso o Recorrente) em manifesta violação do princípio da culpa, égide de um estado de direito, em prol da defesa do interesse público e da prevenção criminal.
Para além de que, está apenas em causa o reconhecimento de uma situação pretérita, decorrida há 27 anos, em que as circunstâncias e os meios eram completamente distintos dos que hoje existem, sendo que, actualmente este género de situações podem ser – e na prática são – evitadas com recurso a testes de ADN, bastando para o efeito se necessário legislar-se nesse sentido.
Logo, o reconhecimento da situação subjacente aos autos em nada belisca o interesse público.
No que concerne aos princípios fundamentais de direito da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança consagrados nos artº 5º e 8º do CPA demandam o reconhecimento da situação – o estatuto de residente – a quem ao longo de toda a vida, actualmente com 28 anos sempre usufruiu do estatuto de residente de Macau e adequou a sua vida a Macau como resulta dos sinais dos autos.
Entendemos também, que na senda do que tem vindo a ser sustentado pela Doutrina mais hodierna, neste tipo de situação não importa tanto o tempo decorrido desde a prática do acto, mas sim a situação existente no momento em que se conclui pela nulidade, sendo certo que, o comando contido no nº 3 do artº 123º do CPA manda dar relevância ao tempo.
Porém, se a pessoa a quem foi concedido o estatuto de residente da RAEM quando se vem a apurar que o acto é nulo por não ser descendente de residentes de Macau ainda é menor, por força da dependência dos progenitores, do exercício do poder paternal e a guarda que lhe está associada, antes de atingida a maioridade nada justifica que se reconheçam efeitos ao acto independentemente do tempo que haja decorrido.
No entanto, se entretanto tiver atingido a maioridade, entendemos que devem ser reconhecidos efeitos ao acto, havendo aqui, por força da exigência feita no nº 3 do artº 123º do CPA de fixar um espaço de tempo que se entenda razoável para o efeito, o qual entendemos poder ser igual aos 7 anos exigidos pela lei para a atribuição do estatuto de residente permanente – Lei nº 8/1999, artº 1º, nº 1, 2) -, contados desde da prática do acto que se tem por nulo.
Destarte, em face da factualidade apurada e tendo em consideração os princípios supra indicados que no caso em apreço se verificam, haveria de, nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA ter sido reconhecidos efeitos aos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM à Recorrente, mantendo-os.
Não tendo sido feito como concluir?
Aqui chegados e sem prejuízo do reconhecimento da nulidade ser um acto vinculado – caso concluíssemos nesse sentido o que não é o caso - o certo é que, o nº 3 do artº 123º do CPA atribui à administração um campo de discricionariedade que lhe permitiria ter actuado de outra forma.
O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA implicando um poder discricionário pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade.
Ao não reconhecer à Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto.
Nada tendo feito a Administração, num contencioso de anulação ficaria o tribunal impossibilitado de corrigir a situação reconhecendo efeitos ao acto.
A solução encontramo-la no já citado trabalho “Responsabilidade da Administração …” de Ana Gouveia Martins, a pág. 67/68 com a figura da supressão do poder de declarar a nulidade:
«Todavia, uma vez declarada a nulidade, nada obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações de facto decorrentes de actos nulos, se, por força do decurso de tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação (art. 134.º, n.º 3 do CPA). Indispensável para tanto é que seja praticado um acto que, reconhecendo e declarando a nulidade, justifique a atribuição desses efeitos putativos e declare quais os efeitos que se devem considerar consolidados pelo decurso de tempo.
Acresce que, apesar de a boa-fé não ter, em geral, por efeito neutralizar a ilegalidade cometida, convalidando o acto ilegal, tem-se admitido a título excepcional que quando a administração considerou, «durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade», que a boa-fé obste à declaração dessa nulidade. Com efeito, o princípio da boa-fé proíbe actuações que consubstanciem um «venire contra factum proprium (ou proibição de comportamento contraditório) – de acordo com a qual se veda (ou impõe) o exercício de uma competência ou de um direito, quando tal exercício (ou não exercício) entra em flagrante e injustificada contradição com o comportamento anterior do titular, por este ter suscitado na outra parte uma fundada e legítima expectativa de que já não seriam (ou o seriam irreversivelmente) exercidas – a supressio ou verwirkung (que da anterior se distingue pelo facto de a dimensão temporal ganhar uma relevância autónoma), etc.»
Com efeito, em determinadas e circunscritas constelações de casos o princípio da boa-fé pode obstar à revogação ou à declaração da nulidade de actos administrativos ilegais por consubstanciar um exercício inadmissível de direitos. Nomeadamente é possível invocar a figura da supressio que determina a paralisação ou redução do conteúdo de certas posições jurídicas em função do seu não exercício durante um amplo lapso temporal, in casu, uma supressão de competências.».
Ou seja, tudo se reconduziria a que por força do tempo decorrido os efeitos do acto (nulo) se haviam consolidado na esfera jurídica do particular não produzindo a nulidade todos os seus efeitos.
Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.
Não sendo argumentável em sentido contrário que o acto de declaração de nulidade é um acto vinculado e como tal não é susceptível de ser apreciado em função dos indicados princípios, pois o que está em causa não é a declaração de nulidade mas o reconhecimento dos efeitos fácticos do acto os quais demandavam uma abstenção de agir a que não se obedeceu em violação dos referidos princípios, e nesta parte já estamos no domínio da discricionariedade.
A não se entender assim nunca o acto de reconhecimento de efeitos putativos do acto nulo poderia ser objecto de decisão e apreciação do tribunal uma vez que não pode ser objecto de acção para a prática do acto administrativo devido porque não é um acto vinculado mas discricionário. O que levaria a que só haveria possibilidade de apreciar os efeitos putativos do acto se a administração o reconhecesse e desse acto fosse interposto recurso para o tribunal, mas se nada reconhecer já não haveria acção judicial para o efeito.
Logo não se aceitando que esta questão possa ser apreciada através do instituto da supressão do poder de declarar a nulidade, seria o mesmo que declarar que ao direito consagrado no nº 3 do artº 123º não corresponde acção judicial alguma o que viola o princípio do acesso à justiça consagrado no artº 14º do CPA.
Em igual sentido veja-se e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público, Vol. 1, nº 2, Lisboa Junho 2014 “Os efeitos putativos da nulidade dos actos urbanísticos: entre a tutela da confiança e o interesse público”: «Todavia, não excluímos que mesmo em sede de acção administrativa especial de impugnação do acto, o juiz possa atribuir efeitos jurídicos à situação de facto, desde que os requisitos que acima elencámos se encontrem cumpridos, em particular o decurso do tempo.».
Concluindo, entendemos que no caso em apreço não se tendo a administração abstido de declarar a nulidade dos actos reconhecendo implicitamente ao Recorrente o direito a beneficiar do estatuto de residente da RAEM e consequentemente, emitindo-lhe o BIRPM e o Passaporte de Macau, enfermam os actos impugnados do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, sendo anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.
Tudo visto, seja porque entendemos que os actos impugnados enfermam de vício de lei e consequentemente são anuláveis, seja porque se impunha o reconhecimento do estatuto de residente, e seja ainda porque esse estatuto até já foi reconhecido em 2012 depois da correcção da paternidade nos elementos de identificação do Recorrente, impõe-se decidir em conformidade, anulano-se os actos impugnados.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anulam-se os actos recorridos.
Sem custas por delas estar isenta a entidade recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 12 de Maio de 2022
Relator
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
Segundo Juiz-Adjunto
Fong Man Chong
(Com declaração de voto).
Vencido nos exactos termos do Acórdão do TSI tirado em 10DEZ2020, no processo nº 1191/2019.
Primeiro Juiz-Adjunto
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
Processo nº 590/2021
Declaração de voto
Tendo em conta a diversidade de situações factuais recentemente submetidas ao julgamento deste TSI e as discussões jurídicas nesta matéria (reconhecimento de estatuto de residente permanente da RAEM e emissão do respectivo Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau), e algumas reflexões mais maduras recentemente realizadas sobre a mesma, entendo que a análise de toda a problemática ligada aos factos eventualmente ilícitos que determinaram o reconhecimento do estatuto de residente permanente e a emissão do BIRM de algumas pessoas, deve ser feita num prisma mais amplo e mais profundo, e em nome de justiça material, deve, caso sejam verificados os pressupostos legalmente previstos, fazer-se apelo à teoria de efeitos putativos previstos no artigo 123º/3 do CPA para resolver os litígios nascidos neste domínio, sob pena de a justiça passar a ser entortada e dar origem a uma injustiça dificilmente (ou impossivelmente) corrigida, “punindo-se” uma pessoa, que adquiriu o estatuto de residente permanente de RAEM mais de 10 ou 20 anos e que não contribuiu nem interveio nos alegados factos ilícitos (ex. falsa declarações sobre a paternidade ou maternidade, ou falso casamento…etc), ou seja, uma pessoa “inocente” (sem culpa nem ilicitude que lhe possa ser imputada), razão pela qual subscrevo a decisão proferida neste acórdão.
TSI, aos 12 de Maio de 2022.
Segundo Juiz-Adjunto
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Fong Man Chong
1 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481
2 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
3 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
4 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.
5 A redacção daquele preceito corresponde hoje ao nº 3 do artº 123º do CPA.
6 Em Código de Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, pág. 512.
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590/2021 REC CONT 66