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Processo nº 38/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 5 de Maio de 2022

ASSUNTO:
- Documento particular
- Prova Plena
- Prova por testemunhas
- Princípio de prova por escrito

SUMÁRIO:
- De acordo com o disposto nos artºs 368º e 370º do C.Civ. sem prejuízo da arguição e prova da falsidade, o documento particular que não haja sido impugnado pela parte contra quem tenha sido apresentado faz prova plena quanto às declarações nele constantes e atribuídas ao seu autor;
- Nos termos do artº 340º do C.Civ. a prova plena pode ser contrariada havendo contudo que recorrer a outro meio de prova que não apenas a testemunhal face à limitação do nº 2 do artº 387º do C.Civ.;
- Contudo a limitação do nº 2 do artº 387º do C.Civ. não impede que perante um princípio de prova escrita que contrarie o que resulta da prova plena os depoimentos testemunhais sejam admitidos no sentido de complementar e esclarecer o que já resulta daquele princípio de prova.


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Rui Pereira Ribeiro




















Processo nº 38/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 5 de Maio de 2022
Recorrente: Companhia de Promoção de Jogos A S.A.
Recorrido: B
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  B, com os demais sinais dos autos,
  veio deduzir embargos à execução em que é Exequente
  Companhia de Promoção de Jogos A S.A., também, com os demais sinais dos autos.
  O Embargante opõe-se à execução invocando que, pese embora tenha sido quem assinou a declaração de dívida, as fichas foram levantadas por conta de uma conta que pertence a C na Sala VIP A e que foi a pedido deste e com o respectivo consentimento que aquela quantia foi levantada para ser depositada na conta deste último.
  Proferida sentença a julgar os embargos procedentes veio a mesma a ser revogada por Acórdão deste Tribunal, confirmado por Acórdão do TUI que, ordenou a remessa dos autos à 1ª Instância para ampliação da matéria de facto.
  Ampliada a matéria de facto, realizado novo julgamento e proferida sentença a julgar os embargos procedentes, vem agora desta, novamente, interposto recurso pela embargada apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
1. O recorrente, fundamentando-se nas seguintes três razões, defende que os factos dos quesitos 6º a 9º da BI devem passar a ser considerados como não provados e, em consequência, pugnando pela improcedência dos embargos deduzidos pelo recorrido:
(1) O acórdão recorrido viola as disposições relativas à força probatória das provas dos art.ºs 368.º n.º 1, 370.º n.º 1, 387.º n.º 2 do Código Civil.
(2) A decisão da matéria de facto do Tribunal a quo enferma do vício do desvio grave na apreciação das provas documentais, violou as regras da experiência comum, bem como os art.ºs 335.º n.º 2 e 623.º e 1070.º do Código Civil, a Lei n.º 5/2004 e os art.ºs 436.º e 562.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
(3) A decisão da matéria de facto do Tribunal a quo não é correcto e apreciou erradamente as provas. Os depoimentos testemunhais, combinados com as regras da experiência comum e a prática operacional da sala VIP, permitem concluir que o dinheiro foi emprestado ao recorrido e não a C. Portanto, nos termos do art.º 599.º do Código de Processo Civil, vem impugnar a decisão da matéria de facto.
2. Em primeiro lugar, quanto à violação dos art.ºs 368.º n.º 1, 370.º n.º 1, 387.º n.º 2 do Código Civil relativamente à força probatória.
3. Consta expressamente do título executivo constante do Anexo n.º 10 ao processo principal que “O Sr./Sra. B, titular de n.º XXX, certifica-se, por este meio, que pede empréstimo à Companhia de Promoção de Jogos A, S.A., no valor de HKD$1.000.000,00”. Também se nota que “declaro ter recebido todas as fichas de jogo supracitadas e prometo restituir o dinheiro no prazo de 15 dias, sob pena de pagamento de juros de 48% por ano, até à sua integral restituição. O fiador e o devedor têm responsabilidade solidária ilimitada.” O título executivo demonstra lucidamente que o devedor da dívida em causa é o recorrido e o credor é a recorrente, existindo entre as duas partes relação de mútuo.
4. Na coluna “assinatura do creditado” do título executivo consta claramente “B”, e o recorrido não apresentou nenhuma impugnação ou reclamação em relação à assinatura.
5. De acordo com os art.ºs 356.º n.º 2, 368.º, n.º 1 e 370.º 1 do Código Civil, porquanto o recorrido não impugnou a assinatura “B” no título executivo, a mesma é considerada autentica e tem força probatória plena em relação ao recorrido.
6. E à luz do art.º 387.º n.º 2 do Código Civil, não é admitida prova por testemunhas para ilidir tal declaração. No entanto, na decisão da matéria de facto do Tribunal a quo, este afirma ter ilidido o facto de o recorrido pedir empréstimo à recorrente com base nos depoimentos testemunhais. O que viola o disposto nos art.ºs 368.º n.º 1, 370.º n.º 1 e 387.º n.º 2 do Código Civil.
7. Os factos dos quesitos 5º a 9º da BI não deviam ter sido considerados provados, uma vez que foi o recorrido quem assinou o título executivo, e o documento não menciona que o recorrido pediu o empréstimo em representação de C ou na qualidade de procurador de C; além disso, não há prova de que a recorrente sabia que foi C e não o recorrido quem pediu o empréstimo.
8. O acórdão devia ter aplicado os art.ºs 368.º n.º 1, 370.º n.º 1 e 387.º n.º 2 do Código Civil para jugar não provados os quesitos 5º a 9º e, consequentemente, improcedentes os embargos deduzidos pelo recorrido.
9. Em segundo lugar, quanto ao desvio grave na apreciação das provas documentais, omissão da análise crítica da prova, erro lógico, violação da presunção razoável e das regras da experiência comum, e ofensa ao disposto nos art.ºs 335.º n.º 2 e 623.º e 1070.º do Código Civil, Lei n.º 5/2004 e art.ºs 436.º e 562.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
10. Primeiro, na apreciação das provas documentais constantes de fls. 24 a 26 dos autos, verifica-se erro nos pressupostos de facto e erro lógico, interpretação excessiva da prova e falta de fundamento.
11. Na fundamentação do acórdão, o Tribunal recorrido defende que de acordo com os documentos constantes de fls. 24 a 26 dos autos, o recorrido pediu emprestado à recorrente HKD$1.000.000,00 (conforme demonstrado na declaração de dívida de fls. 26 dos autos), mas o respectivo empréstimo foi registado na conta de C (como mostram o registo de empréstimo constante de fls. 24 dos autos), assim, entende que tal prova documental mostra que a recorrente reconheceu C como devedor. Da mesma forma, considera que C é o devedor do título executivo em causa.
12. No entanto, o teor da declaração de dívida n.º 172183 de fls. 26 dos autos não é idêntico ao do título executivo. No primeiro documento, ao lado da data se encontram a nota “1029 C” e a observação “Autorizado pelo dono, # 3688 montante concedido (戶主批, # 3688 批額)”; ao passo que no segundo documento ao lado da data constam a nota “9938 D” e a observação “Autorizado pelo dono, Autorizado pelo dono #1029, transferência #1029m (戶主批,#1029戶主批,轉#1029m)”. Os significados de “Autorizado pelo dono(戶主批)” e de “Autorizado pelo dono #1029 (#1029戶主批)” são diferentes, caso contrário não há necessidade de repetição.
13. Mesmo que de ambos os documentos constem a expressão “Autorizado pelo dono(戶主批)”, as contas envolvidas são diferentes – a declaração de dívida n.º 172183 tem a ver com a conta n.º 1029, enquanto a conta no título executivo é a n.º 9938. Portanto, não são comparáveis as referidas notas e observações das duas declarações de dívida.
14. No entanto, o Tribunal a quo indica na decisão da matéria de facto que “igualmente com a nota de que foi autorizado pelo titular da conta 1029, e mais “#3688批額”. Tal juízo é manifestamente errado e não está apoiado por uma presunção razoável nem fundamentos fácticos.
15. Além disso, in casu, ninguém explicou o teor das notas e observações ao lado da data da declaração de dívida n.º 172183 constante de fls. 26 dos autos, nem existe qualquer prova sobre em que circunstância este documento foi assinado, por exemplo: como é que o recorrido B disse ao pessoal da recorrente que precisava de pedir empréstimo?
16. Ora, não é claro o sentido das referidas notas e observações da declaração de dívida n.º 172183, e o teor deste documento é diferente do do título executivo. No entanto, o Tribunal recorrido considera que os resultados são idênticos – o devedor é igualmente C. O que viola completamente a lógica e as regras da experiência comum.
17. Mesmo que o Tribunal a quo entenda que podem explicar isso por analogia, a explicação deve ser razoável. No entanto, nada se explicou a esse respeito. Portanto, entende o recorrido que o respectivo juízo incorre em desvio grave, devendo o tribunal dar por não provados os respectivos factos e julgar improcedentes os embargos.
18. Segundo, a testemunha E explicou na audiência a expressão “Autorizado pelo dono #1029 (#1029戶主批)” encontrada nas observações do título executivo (o seu depoimento encontra-se gravado no arquivo electrónico 21.2.23 CV3-15-0176-CEO-A#13 \ Translator 2 \ Recorded on 23-Feb-2021 at 10.38.18 (3AMT1A8102720319).wav., das 43:54 às 52:39.
19. De acordo com o depoimento da testemunha E, a respectiva expressão “Autorizado pelo dono #1029 (#1029戶主批)” no título executivo serve da garantia verbal do titular da conta n.º 1029, isto é, C, em relação à respectiva dívida. Se o próprio C quiser pedir emprestado dinheiro à recorrente, ele mesmo precisa de ir assinar o mesmo documento à tesouraria.
20. O teor da observação foi escrito pelo pessoal da recorrente, tal como a testemunha E. Salvo ela, não há nos autos mais nenhuma testemunha que tinha conhecimento do sentido das respectivas observações, ou que prestou depoimento detalhado a esse respeito. E não se pode adivinhar o sentido das expressões.
21. O Tribunal a quo não fez, nem no acórdão recorrido, nem na decisão da matéria de facto, qualquer apreciação da prova sobre o depoimento da testemunha E em relação ao teor da respectiva observação, nem explicou porque não acreditou no seu depoimento e fez um juízo em sentido oposto. O que violou o art.º 436.º do Código de Processo Civil.
22. Terceiro, o Juízo a quo, na decisão da matéria de facto, julgou que C é era o devedor de acordo com o documento constante de fls. 24 dos autos. No entanto, o mesmo documento pode provar que C não era o devedor do presente caso.
23. Entende o Juízo a quo que as notas da declaração de dívida n.º 172183 são idênticas às notas do título executivo e os registos de empréstimo constantes de fls. 24 dos autos mostram que C é o devedor da declaração de dívida n.º 172183, por conseguinte, deduziu que o devedor do título executivo também é C. Ao assim considerar incorre em erro nos pressupostos de facto, porque as notas e observações dos dois documentos são distintas.
24. Dos registos de crédito constantes de fls. 24 dos autos não consta registo de empréstimo do título executivo em causa. Se a convicção for feita com base naqueles registos, naturalmente que o devedor do título executivo não é C.
25. O Tribunal a quo só retirou um registo de empréstimo (isto é, as informações da declaração de dívida n.º 172183), sem considerar todos os outros elementos (designadamente não existe informações do registo de empréstimo no título executivo). Se uma parte for aceite e a restante não for, é necessário apresentar os fundamentos concretos e justificados, em vez de se basear na mera conjectura ou na probabilidade.
26. O Tribunal a quo julgou que um registo é facto (o empréstimo da declaração de dívida n.º 172183), ao mesmo tempo, considerou existir um registo de empréstimo que na verdade não existe (o empréstimo do título executivo em causa), convicção essa que enferma da contradição, viola a lógica e as regras da experiência comum.
27. Quarto, na decisão da matéria de facto, o Tribunal a quo indicou que tendo em conta os registos de mensagens telefónicas constantes de fls. 98 dos autos, a recorrente já notificou o titular da conta n.º 1029 para restituir o dinheiro.
28. Nos autos, não se verifica absolutamente nenhuma informação ou prova para comprovar quem enviou os registos de mensagens telefónicas, para já não falar em que os registos e mensagens telefónicas foram enviados pela recorrente ou pelo indivíduo em representação da recorrente. Também não se verifica os registos de clientes da companhia de telecomunicações para provar que tais mensagens telefónicas foram enviadas ao titular da conta n.º 1029.
29. As informações das mensagens telefónicas não são completas e os registos das mensagens na parte inferior não foram exibidos, quais são as mensagens nesta parte? Qual é a influência sobre a interpretação de todas as mensagens? A este respeito, não se verifica nenhuma informação nos autos.
30. Os registos das mensagens telefónicas são apenas um monte de palavras e números, não se verifica as provas de que as mensagens foram enviadas pela recorrente, nem se prova a autenticidade do teor destas mensagens.
31. Além disso, conforme o depoimento da testemunha E, C, como titular da conta, tem qualidade de fiador do devedor do empréstimo, assim, é razoável notificar o fiador da respectiva dívida, uma vez que o fiador tem obrigação de restituição da dívida.
32. Não existe nenhuma disposição legal que estabeleça que o credor só pode notificar o devedor da situação da dívida e quem recebe a notificação da dívida é o devedor. Também não se verifica nenhuma prova de que a recorrente apenas notificou C da respectiva dívida e não notificou o recorrido. De acordo com a lógica do Tribunal recorrido, a acção principal foi intentada contra o recorrido, então, será que o devedor do título executivo é ele mesmo?
33. A apreciação da referida prova documental enfermou do desvio grave, incorreu no erro de pressupostos de facto. Proferiu-se o mesmo juízo perante o teor contraditório e oposto da mesma prova documental, o que é contraditório, violador da lógica e das regras da experiência comum. Não se considerou o depoimento da testemunha E sobre as respectivas notas nem se verificou provas objectivas para ilidir o depoimento da mesma. Sobretudo não se verificou outras testemunhas para explicar as notas.
34. Portanto, os factos reconhecidos com base nesta prova documental – os quesitos 5º a 9º da base instrutória – enfermaram do vício. Os factos em causa não deviam ser dados por provados, o Tribunal superior deve anular o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, julgando não provados os quesitos 5º a 9º da base instrutória e improcedentes os embargos do recorrido.
35. Quinto, na decisão da matéria de facto, o Tribunal a quo entende que da referida prova documental decorre que a recorrente achou que a dívida é de C e na prova documental supracitada não se mencionou nenhuma garantia ou fiança. Isso viola o art.º 624.º do Código Civil.
36. O título executivo no presente caso diz respeito ao mútuo, de acordo com os art.ºs 623 e 1070.º do Código Civil, e a Lei n.º 5/2004, o mútuo envolvido neste caso não exige a forma legal, por outras palavras, o empréstimo e garantia podem ser feitos por forma verbal ou escrita. Todavia, o Tribunal a quo julgou que a dívida é de C com fundamento na falta da menção da fiança ou garantia na prova documental supracitada e não achou que C é o fiador – o que violou manifestamente o disposto nos art.ºs 623.º e 1070.º do Código Civil e o disposto na Lei n.º 5/2004.
37. De acordo com o depoimento da testemunha E na audiência, constante do arquivo electrónico 21.2.23 CV3-15-0176-CEO-A#13 \ Translator 2 \ Recorded on 23-Feb-2021 at 10.38.18 (3AMT1A8102720319).wav, das 43:54 às 52:39, em conformidade com as regras da companhia, cabe ao pessoal responsável por empréstimo fazer chamada telefónica ao titular da conta, para confirmar se ele assume ou não a responsabilidade do fiador, tal como no presente caso, no momento de fazer empréstimo, fez chamada telefónica ao titular da conta C para confirmar se ele assumiu ou não a responsabilidade do fiador da dívida do recorrido.
38. O Tribunal a quo julgou que não existe o facto de “C é fiador” com base apenas na prova documental, ignorando o depoimento da testemunha E, e omitindo completamente a disposição legal de que o empréstimo e a fiança envolvidos no presente caso podem ser celebrados oralmente.
39. Atento o depoimento da testemunha E, e nos termos do art.º 599.º do Código de Processo Civil, vem impugnar a decisão de facto – relativamente aos quesitos 6º e 8º da base instrutória, deve julgar que “C não é o devedor”, que os quesitos 6º e 8º não são provados e, consequentemente, que os embargos são improcedentes.
40. Sexto, ao proferir o acórdão, o Tribunal a quo devia apreciar as provas e avaliar o seu valor, no entanto, o Tribunal a quo não apreciou o teor do depoimento da testemunha E com relevância para a causa, nem ponderou o valor do depoimento sobre a interpretação das notas do título executivo. O reconhecimento de factos com base na referida prova documental incorreu na contradição e no erro da lógica e violou as regras da experiência comum, portanto, violou o art.º 562.º n.º 3 do Código de Processo Civil, assim, não deviam julgar que C é o devedor do título executivo, mas sim condenar improcedente o embargo do recorrido.
41. Em terceiro lugar, a decisão da matéria de facto do Tribunal a quo não é correcto e apreciou erradamente as provas, combinando com o depoimento da testemunha, bem como conforme as regras da experiência comum e a prática operacional da sala VIP, podem julgar que o dinheiro foi emprestado ao recorrido e não a C. Portanto, nos termos do art.º 599.º do Código de Processo Civil, impugnou a decisão da matéria de facto.
42. Primeiro, o Tribunal a quo entende, na decisão da matéria de facto, que ficam provados os quesitos 6º a 8º da BI, que a recorrente apenas emprestou dinheiro a C. A apreciação de provas incorreu em erro grave, porque não há qualquer prova de que a recorrente recebeu a declaração do empréstimo de C.
43. C não estava presente quando o recorrido assinou o título executivo. Isso pode ser provado pelo depoimento de C (encontra-se gravado no ficheiro electrónico 21.2.23 CV3-15-0176-CEO-A#13/Translator 2/Recorded on 23-Feb-2021 at 10.38.18 (3AMT1A8102720319).wav, 0:00 a 5:00).
44. Assim sendo, como lhe foi possível pedir dinheiro emprestado ao tesoureiro da recorrente? Não há qualquer prova de ele ter pedido dinheiro emprestado ao testemunho ou tesoureiro descritos no título executivo, que foi assinado pelo recorrido. Mesmo que se considere provado que os factos descritos nos quesitos 4º e 5º da BI realmente aconteceram, trata-se apenas de coisas ocorridas entre o recorrido e C. Não há prova de a recorrente ter tomado parte nesses factos ou deles estar ciente.
45. O mútuo tem lugar entre o mutuante e o mutuário. Para descobrir quem é o mutuário, temos de olhar para a declaração feita pelo mutuário ao mutuante bem como a declaração que o mutuante recebe do mutuário.
46. Como se pode ver do título executivo, o recorrido assinou-o na qualidade de devedor, e o testemunho e tesoureiro também assinaram. Portanto, estes últimos foram quem receberam o pedido de empréstimo do devedor.
47. No caso dos autos, não há qualquer testemunha a dizer que foi C quem pediu crédito aos testemunho e tesoureiro. De acordo com o artigo 335.º, n.º 2 do Código Civil (CC), que regula o regime do ónus da prova, compete ao recorrido provar que o respectivo pedido foi apresentado por C, e não ele. No entanto, não há qualquer prova disso.
48. O Tribunal a quo entende, na decisão da matéria de facto, que do depoimento de C pode concluir-se que a recorrente emprestou as fichas através de D (D), facto que constituiu a obrigação aqui em causa. No entanto, D não foi ouvida nos autos, e o Tribunal a quo também não averiguou se D era competente para representar a recorrente em emprestar fichas aos mutuários, ou se ela deu instruções ao testemunho ou o tesoureiro descritos no título executivo no sentido de emprestar fichas ao recorrido ou a C.
49. Na hipótese de ela realmente lhes ter dado tais instruções, a quem (recorrente ou C) as fichas deviam ser emprestadas? Qual a declaração de vontade que o testemunho ou o tesoureiro recebeu dela? Se houve declaração de outra pessoa? Nenhuma dessas questões foi investigada.
50. Um mero facto eventualmente ocorrido entre a testemunha C e a testemunha D não basta por si só para se presumir que o testemunho ou o tesoureiro recebeu a mesma declaração de vontade, isto é, a declaração de vontade de próprio C em pedir empréstimo.
51. Pelo contrário, do teor do título executivo e do facto de este conter as assinaturas, tanto do recorrido e como dos testemunho e tesoureiro, resulta que o teor do referido documento tinha força probatória plena em relação ao recorrido.
52. Tal como se referiu anteriormente, incumbe ao recorrido provar que o testemunho e o tesoureiro receberam a declaração de vontade de empréstimo do próprio C e sabiam claramente que o devedor era C e não o recorrido. Conduto, não existe nos autos nenhuma prova disso mesmo.
53. É de reiterar que nenhuma testemunha esteve presente no momento da assinatura do título executivo. Não há, portanto, nenhuma prova de que no momento da assinatura do título executivo, o recorrido tenha dito ao representante legal da recorrente, testemunho ou tesoureiro, que foi C, mas não ele, quem pediu o empréstimo.
54. A testemunha C depôs que não conhecia as regras internas da recorrente (ficheiro electrónico 21.2.23 CV3-15-0176-CEO-A#13/Translator 2/Recorded on 23-Feb-2021 at 10.38.18 (3AMT1A8102720319).wav, 21:24 a 22:17).
55. Daí se pode ver que não existe nenhuma prova que permita concluir que o devedor era C.
56. Segundo, na decisão da matéria de facto, o Tribunal considera provados os quesitos 7º a 9º da BI. Trata-se dum erro grosseiro na apreciação da prova, pois os respectivos factos não deviam ter sido dados como provados.
57. Conforme o teor do título executivo em causa, o recorrido admitiu ter recebido todas as fichas. Tal como atrás se referiu, nenhuma testemunha estava presente quando o recorrido assinou o título executivo. Portanto, não há qualquer prova de as fichas não ter sido entregues ao mesmo.
58. Apesar da quantia ter sido depositada na conta n.º 1029, isso não significa que o empréstimo foi pedido pelo dono da conta. O depoimento da testemunha E (E) explicou detalhadamente as regras da recorrente sobre como se concede os empréstimos (o respectivo depoimento encontra-se gravado no ficheiro electrónico 21.2.23 CV3-15-0176-CEO-A#13/Translator 2/Recorded on 23-Feb-2021 at 10.38.18 (3AMT1A8102720319).wav, 43:54 a 52:39). Segundo a testemunha, a empresa recorrente normalmente só permite ao dono da conta pedir emprestadas fichas. Caso contrário, é necessária a garantia do dono. No caso vertente, o recorrido B não é dono da conta, pelo que precisa da garantia de C.
59. Não há lei que diga que só os donos de contas podem pedir fichas emprestadas. Trata-se apenas duma regra da empresa em causa, estabelecida para proteger os interesses da mesma. Mas isso não significa que só os próprios donos de contas podem ser devedores, e a lei também não diz assim.
60. Embora a testemunha não tenha participado pessoalmente no processo de concessão do empréstimo em causa, pode-se saber das regras da experiência e das práticas usuais das Salas VIP que cada Sala VIP tem as suas próprias regras sobre como se deve conceder os empréstimos, regras essas que a testemunha E, enquanto funcionária da tesouraria, tem que respeitar.
61. Com a excepção de E, nenhuma das testemunhas apresentadas pelo recorrido é funcionário da recorrente ou participou no processo de tomada de decisão desta, e ninguém estava presente quando o facto teve lugar. Razão pela qual, os depoimentos das outras testemunhas quanto ao processo de concessão de empréstimo são pouco fiáveis.
62. No caso em apreço, não há qualquer prova de o recorrido ter sido o procurador de C ou ter pedido empréstimo em nome deste.
63. De acordo com as práticas habituais das Salas VIP de Macau, quem pedir empréstimo para jogar tem de assinar o MARKER (o recibo e título executivo nos presentes autos). O jogador assina o MARKER, admitindo, por escrito, ter tomado por empréstimo as fichas e prometendo devolvê-las. Os funcionários da Sala VIP pedem-lhes para assinar o recibo e depois entregar-lhes as fichas. O valor desses empréstimos pode muitas vezes ser de centenas de milhares, milhões ou até dezenas de milhões, pelo que é impossível – sobretudo aos promotores de jogo, que exercem, entre outras, a actividade de mútuo para fins de jogo – estabelecer tais relações de mútuo só por forma verbal.
64. Após a assinatura pelo jogador do recibo, o tesoureiro do promotor de jogo entregue-lhe as fichas no valor indicado no recibo, e também assina enquanto testemunho para confirmar que o jogador assinou o recibo e recebeu as fichas.
65. Portanto, à recorrente, promotora de jogo, é completamente impossível estabelecer uma relação de mútuo só por forma verbal. O que vai fazer, como anteriormente nos mostraram as práticas usuais, é exigir aos mutuários a assinatura dum recibo, ou no presente caso, o MARKER (título executivo em causa). Cumpre ainda salientar que o valor do empréstimo em causa é muito elevado (um milhão de dólares de Hong Kong).
66. No caso dos autos, o recorrido assinou o título executivo, e não há qualquer prova de C ter assinado qualquer recibo. Atentas as práticas habituais acima referidas e as regras da experiência, constatamos que a recorrente estabeleceu a respectiva relação jurídica de mútuo com o mutuário através de lhe solicitar a assinatura do MARKER, título executivo dos presentes autos, que serve de prova ao empréstimo. Desta forma, é de concluir que a recorrente considerou o recorrido B, e não C, como mutuário.
67. De resto, também de acordo com as regras da experiência comum, e como referiu a testemunha E, como seria possível a um promotor de jogo entregar um empréstimo de valor tão elevado a alguém que não seja o próprio mutuário? Além disso, as fichas emprestadas são normalmente entregues aos mutuários por funcionários comuns da tesouraria do promotor de jogo, através dos quais fichas na ordem de milhões ou até dezenas de milhões de dólares são movimentadas diariamente, a responsabilidade de qualquer eventual erro poderia acabar por ser assumida pelo próprio trabalhador. Como é que lhes é possível, então, entregar as fichas a outra pessoa?
68. É de reiterar que nenhuma das testemunhas estava presente no local do facto quando as fichas foram recebidas. No entanto, temos a prova documental, ou seja, o título executivo, que demonstra que o recorrido admitiu ter recebido as fichas no valor de um milhão de dólares de Hong Kong. Esta prova, conjugada com o depoimento da testemunha E e as regras da experiência, impõe concluir que as respectivas fichas foram recebidas pelo recorrido.
69. O Tribunal a quo errou e incorreu em desvio grosseiro quanto à apreciação dos factos descritos nos quesitos 7º a 9º da BI. Devia ter considerado provado que o empréstimo indicado no título executivo foi concedido através da conta 1029, mas o mutuário/devedor era o recorrido, a quem foi entregue, em fichas, todo o montante que pediu emprestado. Por outras palavras, os referidos factos dos quesitos 7º a 9º da BI deviam ter sido dados como não provados, e os embargos julgados improcedentes.
70. Face ao expendido, no caso vertente, o devedor deve ser o recorrido B, e não C, os factos descritos nos quesitos 6º a 9º da BI devem ser todos dados como não provados, e a decisão recorrida do Tribunal a quo deve ser alterada no sentido de julgar improcedentes os embargos à execução.
Face ao supra exposto, pede-se aos Venerandos Juízes que,
i. Nos termos do artigo 599.º do CPC, julguem que a decisão da matéria de facto do Tribunal a quo errou na apreciação da prova ao considerar provados todos os factos da BI com base nos depoimentos testemunhais, e consequentemente, alterem a decisão no sentido de julgar não provados os factos dos quesitos 6º a 9º da BI e julgar improcedentes os embargos do recorrido.
ii. Caso assim se não entenda, pede-se que o acórdão recorrido seja anulado por violação do disposto nos artigos 335.º, n.º 2, 368.º, n.º 1, 370.º, n.º 1, 387.º, n.º 2, 623.º e 1070.º do CC, artigos 436.º e 562.º, n.º 3 do CPC, e Lei n.º 5/2004, assim como ofensa às regras da experiência comum e violação da lógica.
  Pelo Embargante e Recorrido foram apresentadas contra-alegações de onde constam as seguintes conclusões:
1. Para que o tribunal superior possa proferir uma boa decisão com menos tempo, vem o recorrido formular as seguintes conclusões da presente resposta ao recurso:
***
2. O Tribunal a quo não violou os artigos 368.º n.º 1, 370.º n.º 1 e 387.º n.º 2 do Código Civil.
3. A recorrente desvirtuou por completo a definição jurídica da “força probatória plena”, limitando-se a reflectir suas próprias conclusão e vontade no referido título executivo (Doc. 10 - fls. 94 do processo principal), na tentativa de provar directamente que o documento expressamente assinado tem juridicamente “força probatória plena”; porém, o recorrido crê que nenhum operador de Direito dá concordância com a tentativa da recorrente.
4. Dado que o título executivo é um documento particular sem força probatória plena, o Tribunal Colectivo a quo precisou de discutir na audiência de julgamento nove factos constantes da base instrutória.
5. Após audiência de julgamento, só o 3.º facto da base instrutória “O Embargante mantém há vários anos uma relação de grande amizade com C?” não foi dado como provado e os restantes oito factos da base instrutória foram dados como provados.
6. O recorrido tem de invocar aqui uma questão muito importante e merecedor da nossa atenção “
➢ Acredita-se que sendo uma companhia de promoção de jogos de grande dimensão, a recorrente Companhia de Promoção de Jogos A, SA possui muitos assessores jurídicos para lhe prestar aconselhamento jurídico profissional, porém, a Companhia de Promoção de Jogos A SA não sabe que os documentos por si fornecidos todos os dias aos seus clientes para estes assinarem são documentos particulares sem força probatória plena.
➢ Nem sequer sabe quais os critérios que determinam que a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos lhe concedeu a licença de promotor de jogo.
➢ Face ao modo de funcionamento da Companhia de Promoção de Jogos A, SA no caso em apreço, o recorrido questiona muito se a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos fiscalizou o funcionamento dos promotores de jogo, nomeadamente se o modo de funcionamento da Companhia de Promoção de Jogos A, SA, como o título executivo (Doc. 10 - fls. 94 do processo principal), violou as orientações sobre o funcionamento definidas pela Administração?
➢ É de perguntar, se a Companhia de Promoção de Jogos A, SA pode “fazer o que quer” e operar arbitrariamente a companhia? Se pode deduzir acção contra o executado que tem bens ou pedir penhora arbitrariamente?
7. O acórdão do Tribunal a quo não violou o ónus da prova previsto no artigo 335.º n.º 2 do Código Civil, os artigos 623.º e 1070.º do Código Civil, a Lei n.º 5/2004 e os artigos 436.º e 562.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
8. A recorrente requereu a audição da testemunha E e esta referiu claramente não ter tratado o processo de empréstimo do presente caso (cfr. fls. 11 da recorrente (sic) – antepenúltima e penúltima linhas).
9. Cabe perguntar, quando a testemunha E não tratou o processo de empréstimo do presente caso, como é que conseguiu convencer o tribunal de provar o sujeito da relação de empréstimo do presente caso? Não será isso uma dificuldade que lhe deu?
10. Crê-se que o Tribunal Colectivo a quo já conheceu de inúmeras acções executivas movidas pelas salas de jogos, pelo que, já tem suficientes experiências e fundamentos jurídicos para o tribunal apreciar os documentos executivos das salas de jogos, valorizar os depoimentos testemunhais e documentais e formar a sua convicção.
11. Contrariamente, sendo uma companhia de promoção de jogos de grande dimensão, a recorrente Companhia de Promoção de Jogos A, SA não conseguiu oferecer, no mínimo, um funcionário responsável pelo processo de empréstimo do presente caso para esclarecer perante o tribunal a relação de empréstimo do presente caso, porém, afinal, foram as duas testemunhas arroladas pelo recorrido que comprovaram o início e o fim da referida relação de empréstimo e ajudaram o Tribunal Colectivo a quo a investigar os factos e formar a convicção.
***
12. O acórdão do Tribunal Colectivo a quo é inimpugnável (artigo 599.º do Código de Processo Civil)
13. É de salientar que do certificado apresentado antes da audiência de julgamento dos embargos (certificado apresentado em 22 de Fevereiro de 2021 – CV3-16-0170-CEO) pode resultar que os devedores da Companhia de Promoção de Jogos A, SA devem ser registados nos arquivos da referida Companhia, sendo impossível que a referida Companhia concede empréstimo arbitrariamente aos terceiros que não conhece.
14. Para além disso, ao reclamar dívidas aos seus devedores ou fazer liquidação, a Companhia de Promoção de Jogos A, SA emite-lhes mensagens, cujo conteúdo é na seguinte ordem:
Companhia de Promoção de Jogos A, SA – Aviso do prazo da dívida
Conta: N.º ________ Nome do devedor_________
Montante:______________
(Vence-se em ___/___/_____)
Título n.º: ____ Local da concessão de empréstimo:_____
15. O documento que serve de título executivo do presente processo (Doc. 10 - fls. 94 do processo principal), MARKER n.º 172253, corresponde à prova constante de fls. 98 dos embargos
Companhia de Promoção de Jogos A, SA – Aviso do prazo da dívida
Conta: 1029 C
Montante: 10
(Vence-se em 06/12/2013)
Título n.º 172253 Venetian
16. A recorrente declarou que o recorrido tinha assinado outro MARKER N.º 172183 e já devolveu a referida verba. Ao apresentar as provas em sede de embargos, a recorrente tentou convencer o Tribunal a quo de que – existe outra relação de empréstimo entre o recorrido e a recorrente e a presente acção executiva foi movida por o recorrido não ter devolvido a verba emprestada (cfr. fls. 60 a 61 dos embargos).
17. A justiça tarda mas não falha, na audiência de discussão dos embargos, o recorrido descobriu que entre as provas apresentadas pela recorrente em sede de embargos, o Doc. 2 da réplica pode ajudar o recorrido a comprovar que o empréstimo constante do MARKER n.º 172183 foi devolvido por C e não pelo recorrido. (cfr. fls. 15 a 26, 24 dos embargos)
18. O dito MARKER n.º 172183 ajudou ainda o Tribunal a quo a acreditar nos depoimentos prestados pelas testemunhas do embargante na audiência.
19. Dizendo mais simplesmente, o recorrido B assinou o documento só para levantar as fichas através da conta de C n.º 1029. (cfr. fls. 24 dos embargos – Formulário 2.º quadrado, título n.º 172183, montante a devolver 100, saldo na Companhia 380, data da concessão de empréstimo: 2013/11/14)
20. Pelos acima expostos, o acórdão do Tribunal a quo não padece de qualquer vício, devendo ser mantido.

  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. FACTOS
  
  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
  Factos assentes:
- A exequente deu à execução o documento 10 junto com o r.i. da execução, subscrito pelo executado e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais e devidos efeitos, titulando o valor de HKD$1.000.000,00 (alínea A) dos factos assentes)
  Base instrutória:
- C é um jogador habitual de casino. (resposta ao quesito 1.º da base instrutória)
- C é o titular da conta n.º 1029 aberta na sala VIP operada pela embargada. (resposta ao quesito 2.º da base instrutória)
- Em 16 de Novembro de 2013, o Embargante recebeu uma chamada telefónica de C dizendo este àquele ter urgência em que fosse depositado na sua conta n.º 1029 o montante de HKD1.000.000,00. (resposta ao quesito 4.º da base instrutória)
- Nesse mesmo telefonema de 16 de Novembro de 2013, C pediu ao Embargante que fosse à Sala VIP da Embargada para aí assinar uma declaração de dívida a fim de possibilitar o depósito na sua conta n.º 1029 do montante de HKD$1.000.000,00. (resposta ao quesito 5.º da base instrutória)
- Foi C que pediu o empréstimo de HKD1.000.000,00 à Embargada. (resposta ao quesito 6.º da base instrutória)
- Através de depósito feito na conta n.º 1029, foi a C que a Embargada entregou o montante emprestado de HKD$1.000.000,00. (resposta ao quesito 7.º da base instrutória)
- O Embargante nunca teve a intenção de contrair perante a Embargada qualquer dívida de empréstimo. (resposta ao quesito 8.º da base instrutória)
- O Embargante não recebeu da Embargada a título de empréstimo a quantia de HKD$1.000.000,00. (resposta ao quesito 9.º da base instrutória)
  
  Da impugnação das respostas dadas aos quesitos 6º a 9º da Base Instrutória.
  O primeiro fundamento da impugnação deduzida pela Recorrente quanto às respostas dadas aos indicados quesitos, resulta em síntese de não tendo o Embargante impugnado a assinatura do título executivo, este (o título executivo) é considerado autêntico e tem força probatória plena, pelo que, não era admissível a prova em contrário através de testemunhas nos termos do nº 2 do artº 387º do C.Civ..
  
  No Acórdão do TUI proferido nestes autos, na sua fundamentação, após se concluir pela correcção do Acórdão deste Tribunal em mandar ampliar a matéria de facto e repetir o julgamento, fazia-se referência no último parágrafo a que «Aquando do julgamento há que ter em atenção o disposto nos artigos 370º, nº 2, 387º e 388º do Código Civil.» - cf. fls. 303 verso -.
  
  Vejamos então.
  
  A alínea A) dos factos assentes e primeiro facto enunciado na sentença recorrida tem a seguinte redacção:
  «A exequente deu à execução o documento 10 junto com o r.i. da execução, subscrito pelo executado e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais e devidos efeitos, titulando o valor de HKD$1.000.000,00».
  O teor deste documento 10 junto com a p.i. é o seguinte:
A GROUP
(logótipo: vd. o original)
Companhia de Promoção de Jogos A, S.A.
Clube de VIP A
Código de barras *M172253*
(vd. o original)


n.º 172253
Título de empréstimo oficial
(estipulado ao abrigo da Lei n.º 5/2004)
Licença de Promotor de Jogo n.º E206

9933 D
Data: 16/11/2013
Hora: 18h16
Sr. / Sr.ª B, portador de ______ n.º XXX, por meio do presente instrumento
pede à Companhia de Promoção de Jogos A, S.A. um empréstimo na quantia de um milhão de dólares de Hong Kong
HK$ 1.000.000,00.
N.B. MK vencimento da dívida 20 dias -- autorizada pelo titular da conta, autorizada pelo titular da conta # 1029, encaminhado # 1029m
Declaro ter já recebido todas as fichas de jogo acima referidas e prometo reembolsar toda a quantia emprestada dentro de 15 dias. No caso de não pagamento depois da data de vencimento, serão cobrados juros calculados à taxa anual de 48% até ao pagamento integral da dívida. Incumbe ao fiador do empréstimo a responsabilidade solidária e ilimitada com o creditado.
(ass.: vd. o original)
(ass.: vd. o original)
______________
B
(ass.: vd. o original)
A testemunha presencial
O contabilista executante
O fiador
O creditado
  Dispõe o nº 1 do artº 368º do C.Civ:
  1. A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.
  Reza o artº 370º do C.Civ. o seguinte:
Artigo 370.º
(Força probatória)
  1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
  2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
  3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
  No caso sub judice, o título executivo é um documento particular assinado pelo Executado em que este declara que pediu emprestado à Embargada a quantia de HKD1.000.000,00 a qual se comprometia a pagar no prazo de 20 dias e declara que recebeu as fichas naquele valor.
  O Executado e Embargante em momento algum impugna o documento particular por si assinado, vindo até várias vezes reconhecer que é verdadeiro e que o assinou.
  Invocou contudo, aquela que foi considerada matéria exceptiva e foi ordenado que se ampliasse a base instrutória para apurar da mesma.
  Ampliada a base instrutória e realizado o julgamento veio a matéria exceptiva a ser dada como provada nos seguintes termos:
  «1º
  C (C) é um jogador habitual de casino?
  PROVADO.
  2º
  C (C) é o titular da conta n.º 1029 aberta na sala VIP operada pela embargada?
  PROVADO.
  3º
  O Embargante mantém há vários anos uma relação de grande amizade com C (C)?
  NÃO PROVADO.
  4º
  Em 16 de Novembro de 2013, o Embargante recebeu uma chamada telefónica de C (C) dizendo este àquele ter urgência em que fosse depositado na sua conta n.º 1029 o montante de HKD$1.000.000,00?
  PROVADO.
  5º
  Nesse mesmo telefonema de 16 de Novembro de 2013, C (C) pediu ao Embargante que fosse à Sala VIP da Embargada para aí assinar uma declaração de dívida a fim de possibilitar o depósito na sua conta n.º 1029 do montante de HKD$1.000.000,00?
  PROVADO.
  6º
  Foi C (C) que pediu o empréstimo de HKD$1.000.000,00 à Embargada?
  PROVADO.
  7º
  Através de depósito feito na conta n.º 1029, foi a C (C) que a Embargada entregou o montante emprestado de HKD$1.000.000,00?
  PROVADO.
  8º
  O Embargante nunca teve a intenção de contrair perante a Embargada qualquer dívida de empréstimo?
  PROVADO.
  9º
  O Embargante não recebeu da Embargada a título de empréstimo a quantia de HKD$1.000.000,00?
***
  A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, nomeadamente os de fls. 8 a 9, 23 a 26, 98 a 100 e 105 a 108 dos autos, no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
  Discute-se, nesses autos, essencialmente sobre se a embargada emprestou, efectivamente, a quantia de HKD1.000.000,00 ao embargante, tal como consta do título executivo, ou se o empréstimo foi feito ao titular da conta n°1029, mas as fichas de jogo foram entregues ao embargante.
  Conforme o teor do título executivo (declaração de dívida) assinado pelo embargante, consta a declaração de que este pediu emprestar à embargada a quantia de HKD1.000.000,00, com a nota de prazo de vinte dias de devolução, assim como a expressão “戶主批, #1029, 轉#1029”.
  De acordo com o disposto do n°2 do art°370°, os factos compreendidos na declaração cuja autoria é reconhecida considerarm-se provados na medida em que foram contrários aos interesses do declarante.
  Por outro lado, por forca do disposto do n° 2 do art°388° do C.C., não é admissível a produção de prova testemunhal sobre as declarações contrários ao conteúdo dessas declarações.
  Todavia, vêm entendido a doutrina e a jurisprudência que essa regra prevista no preceituado acima referido não deverá ser aplicada sem restrições, admite-se o recurso à prova testemunhal nalguns casos excepcionais, nomeadamente, já haver um começo de prova por escrito que torna verosímil a convenção contrário ou adicional ao conteúdo do documento, é permitida a prova testemunhal para complementar ou consolidar essa verosimilhança. (cfr. a título exemplificativo, Ac. do S.T.J., de 07/02/2008)
  Perfilhamos por essa posição na aplicação do n°2 do art°388° do C.C., portanto, a inadmissibilidade da prova testemunhal não é absoluta, dependendo se existe ou não começo de prova por escrito ou outro meio.
  De acordo com o teor dos documentos de fls. 24 e 26, apresentados pela embargada, consta aí uma oura declaração da dívida com o n°172183, em que o ora embargante também declarou pedir emprestar à embargada a quantia de HKD1.000.000,00, igualmente com a nota de que foi autorizado pelo titular da conta 1029, e mais “#3688 批額”.
  No entanto, esse empréstimo foi registado pela a própria embargada na conta do C, sendo o mesmo tratado como empréstimo pedido pelo titular da conta e não pelo embargante.
  Ademais, conforme o registo da mensagem telefónica (de fls. 98), através da qual a embargada notificou (ao titular da conta) o prazo de pagamento dos empréstimos já concedidos ao titular da conta n°1029, nos quais inclui o empréstimo titulado pela declaração de dívida n°172253
  Com essas provas documentais, demonstram que a embargada tem considerado o C como o devedor do empréstimo em causa.
  Existe, no caso, o começo de prova por escrito que torna verosímil que o empréstimo foi concedido pela embargada ao C e não ao embargante. Por existência da aparência da prova por escrito, é admissível prova testemunhal para a consolidar.
  Das provas testemunhais resulta que:
  A testemunha C, deu conta de que era bate-fichas e titular da conta 1029 aberta na sala VIP operada pela embargada, o empréstimo foi concedido a ele pela embargada, através de colaboradora do negócio D. Ele mandou o embargante ir a tesouraria da sala VIP para levantar as fichas de jogo e assinou a declaração de dívida por conta dele, com prévia concordância da embargada, confirmando que a embargada lhe enviou uma mensagem telefónica quanto à quantia dos empréstimso ainda por devolver, constante de fls. 98. A 2ª testemunha deu conta de que é regra da Sala VIP que só concedeu crédito ao titular da conta, permitindo, no entanto, que as fichas de jogos fossem entregues ao terceiro indicado pelo titular, ela própria ajudou, por várias vezes, o C levantar fichas de jogo e assinou também a declaração de dívida por conta do D.
  A testemunha da embargada também confirmou que a sala VIP apenas concedeu empréstimo ao titular da conta e que, se o titular da conta autorizasse, é permitido o não titular da conta levantar as fichas de jogo, complementando, nesse caso, a sala VIP sempre considera o titular da conta como fiador, ignorando o terceiro quem levanta as fichas de jogo actua em representação ou não em representação do titular da conta.
  Ora, as provas documentais reportam-se que a própria embargada considerou que o empréstimo foi concedido ao C, repara que não houve aqui qualquer menção do fiador ou garantia, ao contrário do que foi dito pela testemunha da embargada, em conjugação com o depoimento do C que admitiu ser ele quem pediu à embargada o empréstimo e que mandou o embargante para levantar as fichas de jogo por conta dele, com o conhecimento e consentimento da embargada, assim como a testemunha da embargada não negou que a embargada não concedesse crédito à quem que não teria conta aberta na sala VIP, como o caso do embargante, o que levamos a convencer que o empréstimo foi celebrado, na substância, pela embargada com o C, titular da conta n°1029 e não com o embargante, sendo as fichas de jogo entregues a este por conta do C sob autorização dele e com o prévio consentimento da embargada.
  Dest’arte, deram-ser por provados ou não provados os factos nos termos respondidos.».
  A matéria constante das respostas dadas aos itens 6º a 9º contraria integralmente o que consta do título executivo quanto ao sujeito que pede e contrai o empréstimo e recebe as fichas.
  Ora, esta matéria – reconhecimento da dívida e recebimento da quantia – sendo factos contrários ao interesse do declarante executado/embargante está provada plenamente pelo documento em causa, dado que o documento não foi impugnado.
  Por sua vez os artºs 387º e 388º do C.Civ. dispõem que:
Artigo 387.º
(Inadmissibilidade da prova testemunhal)
  1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
  2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.
  3. As regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento.
Artigo 388.º
(Convenções contra o conteúdo de documentos ou além dele)
  1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 367.º a 373.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
  2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
  3. O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.
  A prova plena resultante do documento – título executivo – pode ser contrariada de acordo com o disposto no artº 340º do C.Civ., mas para que se demonstre a excepção invocada afastando o que resulta da prova plena é necessário recorrer a outro meio de prova que não a testemunhal face à limitação do nº 2 do artº 387º do C.Civ.
  No entanto tem vindo a ser sustentado pela Doutrina e Jurisprudência que esta solução levada ao extremo conduzirá a resultados injustos impedindo as partes de fazer prova de pactos ou cláusulas que hajam acordado em contrário ao que consta do documento.
  Daí que venha a Jurisprudência na sequência do que se consagra no artº 1347 do Código Civil Francês «Deve exceptuar-se das regras anteriores o caso em que haja um princípio de prova por escrito. Chama-se assim todo o acto por escrito emanado daquele contra quem se dirige a demanda ou o seu representante e que torna possível o facto que se alega.»1, a sustentar que, desde que haja um princípio de prova escrita se deve aceitar que este depois possa ser complementado com o depoimento das testemunhas completando o entendimento dos factos.
  Neste sentido já se pronunciou o Acórdão deste Tribunal de 07.11.2013 proferido no Processo nº 950/2012/A.
  Ora no caso dos autos, como se salienta na fundamentação do Tribunal “a quo” quanto à decisão da matéria de facto há documentos emitidos pela Embargada que iniciam a existência do pacto em contrário ao que consta do título executivo.
  Veja-se o Marker nº 172183 cuja cópia consta de fls. 26 e que a fls. 24 linha 2 é relacionado pela Embargada como dívida do C pese embora seja assinado pelo aqui Embargante e a mensagem enviada pela Embargada ao C dos empréstimos que estavam para pagar onde se refere o Marker a que estes autos respeitam nº 172253.
  Com base nesses dois elementos inscritos que a fundamentação do tribunal “a quo” identifica, acrescido de outros factos instrumentais referidos pelas testemunhas entre eles o próprio depoimento da testemunha da Embargada a qual nas passagens transcritas nas suas alegações de recurso relata que estes empréstimos só eram concedidos se coubessem dentro do crédito que havia sido concedido ao titular da conta, o que pressupõe que o crédito é concedido em função da capacidade de pagamento deste e mediante autorização deste.
  A par disto faz parte do conhecimento comum resultante das regras da experiência em Macau que estas contas existentes nas salas VIP que tanto servem para o depósito de fichas como para a compra de fichas com recurso ao crédito são movimentadas muitas das vezes apenas mediante a realização de um telefonema para o titular da conta o qual autoriza o levantamento ou a realização da operação a crédito não havendo dúvidas que é esse que é o responsável pelo respectivo pagamento, sem prejuízo de que, o Marker possa ser assinado por alguém da sua confiança.
  No caso sub judice a documentação existente permite-nos concluir ser esta a situação dos autos a qual era conhecida pelo Embargado, pela Embargante e pelo C.
  Assim sendo, pese embora a força probatória plena do título executivo havendo um princípio de prova escrita nos autos, bem andou o Tribunal “a quo” ao concluir no sentido de estarem provados os factos dos quesitos 6º a 9º da Base instrutória.
  Assim se concluindo fica prejudicado tudo o mais quanto se invoca no que concerne à impugnação da matéria de facto, uma vez que, mais não é do que a interpretação que a Embargante pretende fazer da prova testemunhal produzida, a qual tendo sido esclarecedora e complementar da prova documental apresentada, não é por si só determinante da convicção do tribunal.
  
2. DO DIREITO
  
  Na execução a que estes autos de embargos de Executado respeitam é reclamado o pagamento de uma dívida cujo título executivo, como se viu supra, faz prova plena da confissão de dívida por banda do Executado bem como de que recebeu o montante mutuado.
  Contudo da prova produzida resulta demonstrado a existência de um pacto entre as partes de onde resulta que o devedor é outrem que não o aqui Executado.
  Destarte, demonstrada a excepção invocada pelo Embargante e que não é este o devedor do crédito reclamado nada mais se oferece à acrescentar para além do que consta da decisão recorrida para cujos fundamentos remetemos aos mesmos aderindo sem reservas.
  
III. DECISÃO

  Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
  Custas pela Recorrente.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 5 de Maio de 2022
  
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  Lai Kin Hong
  Fong Man Chong

1 Citado em Código Civil de Macau Anotado e Comentado Jurisprudência, Livro I, Parte Geral, Volume V, pág. 576.
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38/2022 CÍVEL 32