--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). -----------------------
--- Data: 27/05/2022 ---------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kuong Seng -----------------------------------------------------------------------------
Processo n.º 1009/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Inconformada com a sentença proferida a fls. 153 a 161 do Processo Comum Singular n.o CR4-21-0203-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que a condenou como autora material de um crime consumado de fuga à responsabilidade, p. e p. sobretudo pelo art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário, em sessenta dias de multa, à quantia diária de duzentas patacas, no total, pois, de doze mil patacas de multa (convertível em quarenta dias de prisão, no caso de não pagamento nem substituição pelo trabalho), com inibição efectiva de condução pelo período de quatro meses, veio a arguida A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), assacando, na motivação apresentada a fls. 172 a 194 dos presentes autos correspondentes, àquela decisão condenatória penal, a título principal, o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) com violação do princípio de in dubio pro reo, para rogar a absolvição dela daquele crime (por alegada falta de prova suficiente a demonstrar que ela tenha tomado conhecimento da colisão de veículos e após isto tenha intenção de se furtar à sua responsabilidade por essa colisão), para além de pedir, a título subsidiário, que passasse a ser condenada em pena de multa não superior a quarenta dias (por ser excessivo, atentas as circunstâncias do caso, o número de dias da multa fixado na sentença recorrida), e que fosse ordenada a não transcrição da sentença condenatória para o seu registo criminal findo o prazo de aplicação da pena acessória de inibição de condução, conforme previsto no art.o 27.o do Decreto-Lei n.o 27/96/M.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 202 a 205 dos presentes autos, no sentido de insubsistência dos argumentos do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 214 a 216 dos autos, opinando pela manutenção da decisão recorrida.
Cumpre agora rejeitar o recurso, nos termos permitidos pelos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do CPP, dada a manifesta improcedência do mesmo, por razões a expor em seguida.
2. Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 153 a 161, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que a arguida recorrente começou por imputar à decisão condenatória penal recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova.
Sobre esse esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova, é de relembrar, desde já, os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador, o qual já explicou congruente e convincentemente, sobretudo a partir do antepenúltimo parágrafo da página 9 até ao terceiro parágrafo da página 10 do mesmo texto decisório, a fl. 157 a 157v dos autos, as razões sustentadoras da sua livre convicção formada, sob aval do art.o 114.o do CPP, sobre os factos mormente respeitantes não só ao conhecimento, pela arguida, do embate do veículo automóvel ligeiro n.o MQ-**-** (então por si conduzido) no autocarro em causa nos autos, bem como à intenção dela de fugir à responsabilidade correspondente.
Aliás, frisa-se, o argumento inclusivamente tecido na motivação do recurso no sentido de que a própria recorrente “circulava de janelas fechadas e estava a ouvir música, e canalizava a sua concentração para o cruzamento para o qual se dirigia e que apresenta uma complexidade acima da média” não tem a pretendida virtude de suportar a sua versão fáctica de não ter percepção da ocorrência do embate do seu veículo no autocarro dos autos. Desde logo, pela alguma contradição na lógica desse argumento: estando ela a ouvir música aquando da condução, como terá ela conseguido canalizar a sua concentração para aquele cruzamento com uma complexidade acima da média? E o mais importante é o seguinte: tendo a colisão entre os dois veículos ocorrido na parte lateral direita do veículo conduzido por ela (sentada no assento de condutor à direita), e na parte frontal esquerda do autocarro, no momento de novo arranque dos dois veículos, depois de parados em paralelo em frente do mesmo cruzamento de vias públicas por causa dos sinais dos semáforos, é manifestamente contra-senso, por contrariar as regras da experiência da vida humana, a tese dela de desconhecer qual o objecto em que embateu o seu veículo (pelo que é inteiramente não plausível o argumento invocado no sentido de que ela não se tenha apercebido do embate e de que o tenha confundido com um solavanco causado por um obstáculo ou por um buraco na estrada).
Naufraga manifestamente a primeira parte do recurso, por o Tribunal sentenciador não ter cometido qualquer erro notório na apreciação da prova, nem violado o princípio de in dubio pro reo.
E agora da rogada diminuição do número de dias de multa: na falta de confissão dos factos sobre o conhecimento do embate e a intenção de fugir à responsabilidade, por um lado, e, por outro lado, sendo inegáveis as exigências de prevenção geral do delito penal de fuga à responsabilidade, não se vislumbra que a pena de sessenta dias de multa, fixada na sentença recorrida, seja excessiva aos padrões conjugados dos art.os 45.o, n.o 1, 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal.
Por fim, quanto ao pedido de não transcrição da decisão condenatória penal no registo criminal “findo o prazo de aplicação da pena acessória de inibição de condução”, esta pretensão foi indevidamente dirigida ao TSI na presente lide recursória, atentos o sentido e o alcance da norma expressa do n.o 2 do art.o 27.o do Decreto-Lei n.o 27/96/M.
É, pois, evidentemente infundado o recurso, sem mais indagação por desnecessária, até também pelo espírito da norma do n.o 2 do art.o 410.o do CPP.
4. Dest’arte, decide-se em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
Custas do recurso pela arguida, com três UC de taxa de justiça e três UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso), e duas mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Após o trânsito em julgado, comunique a presente decisão, com cópia da sentença recorrida, à Companhia dona do autocarro, e também ao Instituto Cultural como entidade patronal da arguida.
Macau, 27 de Maio de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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