Processo nº 809/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 16 de Junho de 2022
ASSUNTO:
- Cancelamento de BIRPM
- Acto que constitua crime
- Princípio dispositivo
- Vícios que integrem a causa de pedir
SUMÁRIO:
- A interpretação extensiva de que são nulos os actos administrativos que envolvem na sua preparação ou execução a prática de um crime tem como limite os actos administrativos cujo destinatário é um terceiro de boa-fé alheio a toda a actividade criminosa que lhe possa ter estado subjacente;
- Em matéria de recurso contencioso o tribunal só pode apreciar vícios determinantes da anulabilidade do acto impugnado que façam parte da causa de pedir, não bastando a alegação vaga e genérica de que o acto enferma do vício de violação de lei sem que se haja concretizado.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 809/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 16 de Junho de 2022
Recorrente: A A
Entidade Recorrida: Secretário para a Administração e Justiça
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça de 19.08.2021 que negou provimento ao recurso hierárquico e manteve a decisão a declarar a nulidade da emissão à Recorrente do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, formulando as seguintes conclusões:
O presente recurso contencioso tem por objecto a decisão proferida pelo Secretário para a Administração e Justiça em 19/8/2021, que declarou a nulidade do acto de emitir o bilhete de identidade de residente de Macau e dos actos de substituir e renovar do bilhete de identidade de residente permanente de Macau da recorrente contenciosa, além disso, declarou o cancelamento da primeira emissão do seu bilhete de identidade de residente permanente de Macau nº 1******(4), efectuada em 9/5/2000 (vd. Anexo 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
1. A recorrente contenciosa entende que a decisão recorrida enferma dos vícios de violação do princípio da legalidade e do princípio do inquisitório, devendo ser anulada.
2. Em primeiro lugar, pode-se afirmar que os ditos actos de emissão do BIR foram praticados pela mãe da recorrente contenciosa e B antes do nascimento dela (vd. acórdão do processo CR1-20-0010-PCC). A recorrente contenciosa nunca se envolveu nos actos em questão.
3. Em segundo lugar, o local de nascimento da recorrente contenciosa é a Freguesia da Sé, conforme o seu actual registo de nascimento.
4. A recorrente contenciosa nasceu em 30/04/2000, desde então até agora (mais de 21 anos) reside habitualmente em Macau. Mesmo que o nome no lugar destinado ao nome do pai no assento de nascimento tivesse sido alterado para ***, não existe qualquer decisão judicial que tenha declarado ilegal a permanência da recorrente contenciosa em Macau durante esse período de 21 anos. Além do que foi dito, a mesma nunca participou em qualquer acto ilícito de emissão de documentos e, face ao facto de a recorrente contenciosa possuir sempre o bilhete de identidade de residente de Macau, deve-se considerar que ela tem residido habitualmente em Macau pelo menos 7 anos consecutivos.
5. A recorrente contenciosa é de nacionalidade chinesa, é cidadã chinesa.
6. O actual assento de nascimento da recorrente não revela quem é o pai dela. Por outro lado, sem a confirmação do tribunal ou da entidade competente não se pode confirmar quem é o pai da recorrente contenciosa apenas com base na factualidade dum processo criminal. Pelo que, actualmente, não foi apurada a identidade do pai da recorrente contenciosa.
7. Pelo exposto, a recorrente contenciosa deve reunir os requisitos indicados nos artº 1/nº 1/al. 2) e artº 4º da Lei nº 8/1999 (os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutives) e é residente permanente de Macau e tem direito a residir na RAEM ao abrigo do artº 2º da mesma Lei.
8. No registo de nascimento não foi confirmado quem é o pai da recorrente contenciosa (no lugar destinado ao nome do pai no assento de nascimento foram colocados ***). E a Autoridade Administrativa manifestou que vai declarar que à recorrente contencioso não deve ser atribuído o estatuto de residente permanente de Macau. Dito por outras palavras, logicamente a Administração reconheceu que o pai do recorrente contenciosa não é residente de Macau (senão a recorrente contenciosa deveria ter o estatuto de residente permanente da RAEM), cabe à Administração o ónus da prova quanto a esta questão conforme o princípio do requisitório estabelecido no artº 86º do CPA.
9. A identidade do pai é um assunto de natureza pessoal, portanto, não se deve reconhecer a identidade do pai da recorrente contenciosa tão somente com base na factualidade de um processo criminal e sem outra prova objectiva para o sustentar.
10. Apenas pela factualidade exposta num processo criminal a Administração entende que há grande possibilidade de o pai da recorrente contenciosa ser o residente do Interior da China C C (cfr. acórdão do processo CR1-20-0010-PCC) e, sem realização de investigação suficiente, concluiu que não se deve reconhecer o estatuto de residente permanente da RAEM da recorrente hierárquica, o que viola o citado princípio do inquisitório. Pelo que a referida decisão estará viciada por violação do princípio da legalidade consagrado no artº 3º do CPA.
11. A Administração ainda entende que os actos de emissão dos documentos são ilícitos, pelo que são nulos nos termos do artº 122º, nº 1 e nº 2, als. c) e i) do CPA.
12. Todavia, a recorrente contenciosa não participou nos ditos actos criminosos e o referido objecto (actos de emissão dos documentos) é apenas no âmbito do interesse da recorrente e não no da sua mãe ou B. Deste modo, os actos criminosos praticados pela mãe dela ou Bn não devem implicar a nulidade dos actos que emitiram documentos de identidade à recorrente contenciosa.
13. A decisão da Administração baseia-se nos actos criminosos em que a recorrente não participou, o que prejudica o direito dela.
14. Assim sendo, a referida decisão estará viciada por violação do princípio da legalidade consagrado no artº 3º do CPA.
15. Pelo exposto, a decisão recorrida sofre dos vícios de violação do princípio da legalidade e princípio do inquisitório, devendo ser anulada nos termos do artº 124º do CPA.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Administração e Justiça contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. A recorrente A (A) nasceu em Macau em 30 de Abril de 2000, portadora do registo de nascimento, dele constando que é filha de B (B). Ao abrigo do art.º 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 19/99/M de 10 de Maio e art.º 1.º n.º 1 alínea 1) e n.º 2 da Lei n.º 8/1999, no momento de nascimento da recorrente, o seu pai é residente de Macau, portanto, ela tem a qualidade de residente de Macau, em 9 de Maio de 2000, a Direcção dos Serviços de Identificação emitiu, pela primeira vez, à recorrente o bilhete de identidade de residente de Macau n.º1/******/4.
2. Posteriormente, ao abrigo do art.º 2.º n.º 2 alínea 1) da Lei n.º 8/2002 e art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 23/2002, a DSI, em 1 de Agosto de 2006, autorizou a substituição do RIRM n.º1******(4) da recorrente, bem como sucessivamente em 8 de Agosto de 2011 e 4 de Agosto de 2016, autorizou a renovação do supracitado BIRM.
3. Contudo, em 9 de Setembro de 2020, o Juízo de Família e de Menores do TJB proferiu sentença, tendo em conta o facto provado que a recorrente não é filha biológica de B, declarando nulo o registo de nascimento da recorrente onde consta o pai B, e ordenando o cancelamento do registo. A Conservatória do Registo Civil também procedeu à rectificação do registo de nascimento da recorrente.
4. Tendo em consideração que é incógnita a identidade do pai da recorrente, ao tempo do seu nascimento e, que também não se consegue provar que a mãe como residente ou vivia legalmente em Macau, a recorrente não reúne as disposições legais referidas e não possui a qualidade de residente permanente de Macau, não se devendo conceder-lhe o bilhete de identidade de residente permanente de Macau.
5. No caso, a aquisição da qualidade de residente de Macau por parte da recorrente baseou-se no acto criminoso praticado pela sua mãe, pelo qual foi condenada pelo Tribunal (acórdão do proc. n.º CR1-20-0010-PCC), ao abrigo do art.º 122.º n.º 2 alínea c) do CPA, são nulos os actos administrativos de a DSI ter emitido o bilhete de identidade à recorrente pela primeira vez, ter autorizado a substituição e a renovação do bilhete de identidade, uma vez que o respectivo objecto constitui crime.
6. A qualidade do pai constante do registo de nascimento da recorrente não é verdadeira, não se pode provar que o seu pai ou mãe seja residente de Macau ou viva legalmente em Macau, ao tempo do seu nascimento, não se verificando os requisitos legais, pelo que, tendo em conta o interesse público e a gravidade da lesão e por falta de elemento essencial, o acto de emissão do bilhete de identidade feito pela DSI totalmente carece de fundamento jurídico padecendo do vício de nulidade. Ao abrigo do art.º 122.º n.º 1 do CPA, por falta de elemento essencial, são nulos os actos administrativos de emissão à recorrente do bilhete de identidade por parte da DSI, não produzindo os efeitos desde o início.
7. Nos termos dos art.ºs 66.º, al. a), 67.º, al. b), 70.º, n.º1 e 71.º do Código do Registo Civil, o registo de nascimento da recorrente, que já foi cancelado, é nulo por falsidade, o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado. Por isso, nos termos do art.º 122.º, n.º2, al. i) do Código do Procedimento Administrativo, o acto de reconhecimento, por parte da DSI, conforme o registo de nascimento, da qualidade da recorrente de obter o documento de identidade é nulo na medida em que seja nulo e cancelado o seu registo de nascimento, não produzindo os efeitos desde o início.
8. Perante tal situação, nos termos do art.º 123.º, n.º2 do Código do Procedimento Administrativo, a DSI declarou nulos os actos de emissão de bilhete de identidade à recorrente e nos termos da lei, cancelou o bilhete de identidade de residente permanente detido pela recorrente.
9. Face aos supracitados actos que deve praticar a DSI nos termos da lei, a entidade recorrida também os reconhece e confirma.
10. Entretanto, indica o advogado da recorrente que esta vive em Macau há mais de 21 anos e sempre considera Macau como local habitual, também não há qualquer sentença que declare a sua permanência ilegal em Macau, pelo que deve-se considera que a recorrente tinha residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, reunindo o requisito de “residência habitual” prevista no art.º 1.º, n.º1, al. 2) da Lei n.º8/1999, sendo residente permanente da RAEM, com direito à residência em Macau.
11. Face ao supracitado ponto de vista do advogado da recorrente, a entidade recorrida não está de acordo com isso. Dado que é nulo o acto de a DSI ter emitido o BIRM à recorrente, e desde o início, o acto não produz os efeitos, a recorrente não residia legalmente em Macau, isto quer dizer, independentemente de quantos anos efectivamente reside a recorrente em Macau, não pode a recorrente possuir a qualidade de residente permanente da RAEM, com base em que reside habitualmente em Macau por sete anos consecutivos.
12. Pelo que, mesmo que a recorrente já tenha residido em Macau há mais de 21 anos, não reúne o disposto nos art.ºs 1.º, n.º1, als. 1) e 2), 2.º e 4.º da Lei n.º8/1999, não possuindo a qualidade de residente permanente da RAEM, nem o direito à residência em Macau.
13. Mesmo que não haja qualquer sentença que declare a permanência ilegal da recorrente em Macau, a Administração ainda assume a responsabilidade para determinar, nos termos da lei, se a recorrente reside legalmente ou não na altura, e uma vez que não pertença à residência legal, já não é residência habitual em Macau prevista na lei.
14. Quanto a que o advogado da recorrente invocou o acórdão n.º182/2020, do TUI, considerando que a recorrente já reúne o requisito de “residência habitual”, é de salientar que, o referido acórdão tem a ver com um caso de renovação da autorização de residência temporária, tendo o TSI, perante a situação em que a parte detinha autorização de residência temporária e vivia legalmente em Macau, determinado se a parte reside em Macau e tem uma intenção verdadeira de manter a sua residência aqui, de modo a determinar se a parte reside habitualmente em Macau.
15. O caso do acórdão invocado não é igual ao caso presente, mesmo que a recorrente tenha residido em Macau e com intenção de manter a sua residência aqui, como é nulo o acto de a DSI ter emitido à recorrente o BIRM, a sua estadia em Macau não é uma residência legal. Pelo que, independentemente de quantos anos vive a recorrente em Macau, também não se pode considerar tal período de estadia como “residência habitual”, não pode a recorrente obter a qualidade de residente permanente da RAEM, com base num relacionamento estável já estabelecido em Macau ao longo de muitos anos.
16. Por outro lado, é de salientar que a filiação falsificada é um crime oculto, não é fácil que a Administração tome conhecimento disto. Caso a Administração, baseando-se em que a recorrente já tinha residido em Macau há mais de sete anos, mesmo que o direito de residência de Macau tenha sido adquirido por via ilegal, continue a reconhecer a sua qualidade de residente permanente de Macau, o que fez com que fosse transmitida uma errada mensagem ao público sobre a aquisição do BIRM por via ilegal e que tal identidade ainda pode ser mantida, até que os pais da parte deliberadamente ocultem os respectivos factos e só comuniquem à Administração, quando a parte seja maior de idade.
17. Considera o advogado da recorrente que é incógnita a identidade do pai da recorrente constante do registo de nascimento, mas a Administração declarou nulidade do acto de emissão do bilhete de identidade, isto quer dizer, a Administração já reconheceu que o pai da recorrente não é residente de Macau; além disso, a autoridade, baseando-se apenas nos factos dum caso criminal, considerou que muito provavelmente o pai da recorrente é residente do Interior da China C (C), sem que tivesse realizado, de forma activa, outras medidas de averiguação, pelo que considera que a Administração violou o princípio do inquisitório previsto no art.º 86.º do Código do Procedimento Administrativo, sendo assim o acto recorrido padece do vício de princípio da legalidade previsto no art.º 3.º do mesmo Código.
18. É de salientar que, nos termos dos art.ºs 85.º e 86.º do Código do Procedimento Administrativo, cabe à Administração o dever de averiguação, e nos termos dos art.ºs 87.º e 88.º do mesmo Código, também cabe ao interessado o ónus da prova.
19. Nos termos do art.º 1.º, n.º1. al. 1) e n.º2 da Lei n.º8/1999, e dos art.ºs 21.º e 28.º do Regulamento Administrativo n.º23/2002, a fim de ser provada a qualidade de residente permanente da RAEM da parte, o requerimento do bilhete de residente permanente de Macau deve ser acompanhado dos respectivos documentos comprovativos (tais como o registo de nascimento e os documentos comprovativos de identificação dos pais), caso tenha dúvida sobre a exactidão dos dados de identificação apresentados pelo requerente, pode a DSI exigir do requerente a apresentação de prova complementar que considere necessária.
20. Daí podemos verificar que no procedimento administração sobre o requerimento de bilhete de residente permanente da RAEM, o legislador já regula expressamente que à parte (ou representada pelos pais dela) cabe o ónus da prova, a fim de provar a filiação.
21. No presente caso, a fim de provar a sua qualidade de residente permanente da RAEM, deve a recorrente, em qualquer momento, junto da Administração, apresentar a prova relativa ao seu pai que, ao tempo do seu nascimento, já é residente de Macau, não tendo, contudo, a recorrente, até à presente data, fornecido qualquer documento comprovativo à Administração.
22. Na verdade, entende a entidade recorrida que sobre a identidade do pai da recorrente, só a mãe dela tem um perfeito conhecimento disto.
23. Perante a situação em que a recorrente não consegue provar a qualidade do pai como residente de Macau, ao tempo do seu nascimento, só pode a Administração confirmar que a recorrente não tem a qualidade de residente permanente de Macau.
24. Pelo que, a decisão, proferida pela Administração, de declaração da nulidade dos actos de emissão de documentos à recorrente não padece do vício da violação dos princípios do inquisitório e da legalidade.
25. Cabe reiterar que, a qualidade de residente de Macau da recorrente foi obtida através das informações falsas, agora verifica-se que a recorrente não satisfez as respectivas disposições e o seu caso não reuniu as condições para lhe conceder o bilhete de identidade de residente permanente de Macau, por isso, a Administração tem que declarar nulos, nos termos da lei, os actos de emitir-lhe o bilhete de identidade de residente permanente de Macau. A Administração não pode emitir àqueles que não satisfaçam as condições legais o bilhete de identidade de residente permanente de Macau, sob pena de violação grave do princípio da legalidade.
26. E mais, foi apurado pelo Tribunal (vide o acórdão do proc. n.º CR1-20-0010-PCC do Juízo Criminal do TJB), mas não reconhecido propriamente pela Administração, que é muito possível que o pai da recorrente seja C, residente do Interior da China.
27. É de repetir que, a Administração confirma que a recorrente não tem a qualidade de residente permanente de Macau não porque é muito possível que o seu pai seja C, residente do Interior da China, mas sim porque a recorrente não consegue oferecer prova da qualidade de residente de Macau do seu pai, nem do preenchimento das condições legais para a qualidade de residente permanente de Macau.
28. Pelo que, contrariamente ao que sustenta o mandatário judicial, a Administração não viola o princípio do inquisitório por falta de investigação diligente dos factos, nem padece assim do vício da violação da legalidade.
29. O mandatário judicial entende que, o facto criminoso, que conduz à nulidade dos actos de emissão de documentos, foi praticado pela mãe da recorrente e B, a recorrente não participou, por isso, esse facto criminoso não deve fazer com que os actos de emissão do bilhete de identidade à recorrente padeçam do vício da nulidade, a decisão da Administração causa prejuízo aos direitos da recorrente e viola o princípio da legalidade.
30. A entidade recorrida sabem bem que, de facto, as informações falsas não foram oferecidas pela recorrente, ela não participou no facto que conduz à nulidade do seu bilhete de identidade, todavia, o facto foi praticado obviamente para os interesses da recorrente, visando obter para ela um direito que lhe não se deve conceder e proporcionar-lhe residir permanentemente em Macau, isto é, a recorrente é o adquirente principal dos interesses sob o risco enfrentado pela sua mãe ou B de assunção da responsabilidade criminal.
31. Pelo que, mesmo que o facto não fosse praticado pela recorrente, naquela altura obteve a qualidade de residente de Macau com base em “nascimento” e “qualidade do pai para fixação de residência”, agora verifica-se que a filiação registada é falsa, portanto, a “qualidade de residente de Macau” confirmada no passado foi obtida através de fornecimento com má fé de informações falsas de identidade, a Administração tem que declarar nulos, nos termos da lei, os actos da 1ª emissão, substituições e renovações do bilhete de identidade da recorrente.
32. Cabe apontar que, a lei dispõe quais indivíduos têm a qualidade de residente permanente de Macau, só atribui aos residentes permanente de Macau o direito de ser-lhes concedido o bilhete de identidade de residente permanente de Macau, não atribui o direito de obtenção desse documento aos indivíduos que não tenham a qualidade de residente permanente de Macau.
33. A DSI só pode emitir legalmente aos indivíduos qualificados o bilhete de identidade de residente permanente de Macau, no caso de nulidade do acto de emissão tem de declarar nulo esse acto de emissão, isso é um acto vinculado, a DSI não tem qualquer direito de escolha sobre o conteúdo do acto, no qual não há espaço para exercício de poderes discricionários. (vide «Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado», Viriato Lima e Álvaro Dantas, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2015, p. 310., e o acórdão n.º 299/2013 do TSI)
34. Com base nisso, como a recorrente não tem a identidade de residente permanente de Macau, a DSI tem que declarar nulos os actos de emissão do bilhete à recorrente, tal declaração de nulidade dos actos é a obrigação da DSI, é um acto vinculado, os princípios gerais da lei administrativa não são aplicáveis, isto é, se a DSI não declarar a nulidade dos actos, viola o princípio da legalidade.
35. Por outro lado, se a Administração ainda tiver reconhecido a qualidade de residente permanente de Macau da recorrente após a revelação do assunto e continuado a emitir-lhe o BIR permanente da RAEM, vai induzir as massas em erro de que o BIR permanente da RAEM pode ser obtido através de oferecer informações falsas, isto é, vai incentivar outrem a aproveitar essa maneira para atingir a mesma finalidade, promover a respectiva conduta ilícita e criar um clima social ruim, afectar gravemente a fé pública da DSI, deste modo, está desconforme ao “princípio da prossecução do interesse público”, previsto pelo art.º 4.º do CPA.
36. Além disso, ao contrário da opinião do mandatário judicial, a declaração pela Administração de nulidade dos actos de emissão do bilhete à recorrente não vai prejudicar os direitos ou interesses legalmente protegidos da recorrente, uma vez que ela não tem a qualidade de residente de Macau, nunca tem o “direito” de fixação de residência em Macau. (como indica o acórdão n.º 782/2017 do TSI)
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
«1.
A, melhor identificada nos autos, vem interpor recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Administração e Justiça, de 19 de Agosto de 2021, que indeferiu o recurso hierárquico interposto do acto da Directora dos Serviços de Identificação que declarou nulos os actos administrativos de emissão do Bilhete de Identidade de Residente (BIR) e bem assim os actos da respectiva substituição e renovação e ordenou o cancelamento do seu BIR, pedindo a respectiva anulação.
A Recorrente alegou para suportar o seu recurso contencioso a violação do princípio do inquisitório e a violação do princípio da legalidade.
2.
Face aos concretos fundamentos invocados pela Recorrente, estamos modestamente em crer, que o presente recurso contencioso não pode deixar de improceder.
Pelas razões que, de seguida e de modo breve, passamos a enunciar.
(i)
Começa a Recorrente por alegar que é uma cidadã chinesa que residiu habitualmente em Macau por mais de 7 anos e que, por isso, face ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea 2) e artigo 4.º da Lei n.º 8/1999 adquiriu o estatuto de residente permanente.
Diz mais. Diz que, actualmente, do seu assento de nascimento não resulta quem é o seu pai, pelo que era sobre a Administração que recaía o ónus da prova quanto à questão da paternidade da Recorrente em virtude do princípio do inquisitório previsto no artigo 86.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
Salvo o devido respeito, a Recorrente labora em manifesto equívoco.
Na verdade, a Administração declarou a nulidade do acto da emissão e dos actos de renovação do BIR da Recorrente no pressuposto da sua nulidade em virtude da desconformidade verificada judicialmente entre a paternidade da Recorrente constante do registo e a paternidade biológica. Ficou judicialmente demonstrado que o pai da Recorrente não é o residente de Macau que ficou a constar do seu assento de nascimento.
Ora, por força da declaração de nulidade da emissão do BIR e bem assim das respectivas renovações, atento o efeito retroactivo das mesmas, é evidente que se não pode dizer que a Recorrente tenha residido legalmente em Macau e, portanto, face ao disposto no n.º 1 do artigo 4.º da lei n.º 8/1999 que aqui tenha residido habitualmente.
Parece-nos deslocada, neste contexto, a invocação do princípio do inquisitório para procurar justificar a anulação do acto recorrido tendo em conta os seus concretos fundamentos.
(ii)
A Recorrente também alegou uma genérica violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 3.º do CPA por entender que os actos criminosos praticados pela sua mãe não deveriam implicar a nulidade dos actos de emissão e de renovação do BIR, uma vez que ela não participou nesses actos.
Também neste ponto nos parece que a Recorrente não tem razão.
Desde logo porque está demonstrado que a emissão do seu BIR por parte da Administração foi originada por uma actuação criminosa e, como tal, cair na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA, independentemente da concreta participação da Recorrente nesse crime.
Além disso e mais importante, o acto recorrido não se fundou apenas na alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do CPA, mas também no n.º 1 e na alínea i) do n.º 2 do mesmo artigo, por a Administração ter considerado que aos actos de emissão e renovação do BIR faltavam elementos essenciais e que os mesmos eram actos consequentes de um acto nulo, no caso o acto do registo de nascimento da Recorrente.
Não pode, pois, a nosso ver, deixar de improceder o segundo dos fundamentos do recurso invocados.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. No dia 30 de Abril de 2000 em Macau nasceu um sujeito do sexo feminino que foi registada como sendo A, filha de B titular do BIRM nº 1******(3) e de D cidadã Chinesa conforme assento de nascimento nº 1***;
2. Em 9.5.2000, B representou a Recorrente e pediu pela primeira vez o bilhete de identidade de residente de Macau o qual foi emitido com o nº 1/******/4;
3. Posteriormente, em 1.8.2006 foi autorizada a emissão à interessada do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM com o nº 1******(4) o qual foi renovado em 8.8.2011 e 4.8.2016;
4. Em Novembro de 2014, B pediu aos Serviços de Identificação a certidão de dados pessoais para comprovar que ele não tinha filhos em Macau, verificando-se que B tem duas filhas em Macau, sendo uma delas a Recorrente;
5. Em 19.1.2015, B prestou uma declaração (nº 54/DIR/2015) perante os Serviços de identificação, em que alegou que “…eu e Ah Ping (esqueci-me do seu nome) coabitámos em Macau aproximadamente em 1997 ou 1998, não casámos civilmente, nem organizámos jantar ou cerimónia de casamento. Na altura ela sabia que eu já estava casado civilmente com E. Ah Ping alegou ter uma filha comigo – F – que nasceu em Macau, era residente de Macau. Separámo-nos depois de vivermos juntos por mais ou menos um mês por divergência de personalidades. Depois da separação, Ah Ping disse-me que A não era a minha filha, era do seu marido. Não conheço o seu marido (pai biológico de F). Tendo feito um cálculo do tempo da gravidez de Ah Ping, acredito que F não é a minha filha. Posteriormente, publiquei um anúncio no jornal declarando que não existia nenhuma relação entre mim e ela …”;
6. Como os Serviços de Identificação tinham dúvida sobre a relação de parentesco entre a Recorrente e B, exigiram várias vezes, durante 2015 a 2018, à ora Recorrente, B e D para fazerem o teste de paternidade;
7. Em 4.4.2019, B apresentou aos Serviços de Identificação o relatório do teste de paternidade feito pela Polícia Judiciária, o qual concluiu que “B não é o pai biológico de A”;
8. Em 24.4.2019 os Serviços de Identificação comunicaram mediante ofício ao Ministério Público o resultado do dito teste de paternidade e em 2.5.2019 comunicaram à Conservatória do Registo Civil;
9. Em 18.9.2020, os Serviços de Identificação receberam de B a cópia da sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores do TJB no processo relativo à Recorrente o qual correu termos sob o nº FM1-19-0017-CAO, vindo depois, a pedir ao TJB a certidão dessa sentença;
10. Os Serviços de Identificação receberam, em 15.12.2020 e 18.12.2020, respectivamente, a sentença do processo nº CR1-20-0010-PCC proporcionada por B e pelo Juízo Criminal do TJB, no qual se refere o seguinte: “Do factos provados resultou que a 1ª arguida D tentou impedir os efeitos da lei da RAEM sobre o combate à imigração ilegal, a qual sabia bem que o 2º arguido B não é pai biológico de A, agiu em conluio com o 2º arguido. Em 5.5.2000, o 2º arguido, disfarçando-se do pai biológico de A, assinou o registo de nascimento da mesma e, em 9.5.2000, o 2º arguido, disfarçando-se do pai biológico de A, assinou o pedido de bilhete de identidade de Macau para A, tais actos fizeram com que os dados falsos sobre o pai foram registados nos ditos documentos e, consequentemente, resultaram na emissão, por parte da Administração (que foi iludida), do BIR de Macau à interessada. Posteriormente, a 1ª arguida, na qualidade da mãe de A, foi tratar a renovação do BIR de Macau na DSI em 1.8.2006, 8.8.2011 e 4.8.2016, respectivamente, deixando os dados falsos sobre o pai a continuar a constar do registo de nascimento e do BIR de A. A sua conduta não só prejudica a autenticidade e credibilidade do registo de nascimento e do bilhete de identidade de Macau, como também põe em risco a interesse da RAEM.” “Face ao exposto, o Tribunal Colectivo julga provada a acusação, condenando a 1ª arguida D pela prática, em co-autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de “falsificação de documentos”, p.p. pelo artº 18º/nº 2 da Lei nº 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa a sua execução por 3 anos. Condena o 2º arguido B, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de “falsificação de documentos”, p.p. pelo artº 11º/nº 2 da Lei nº 2/90/M, de 3 de Maio, alterada pela Lei 8/97/M, de 4 de Agosto (alterado para um crime de “falsificação de documentos”, p.p. pelo artº 18º/nº 2 da Lei nº 6/2004). Declara extinto o procedimento criminal por prescrição.” O acórdão transitou em julgado em 17.12.2020;
11. Em 13.1.2021, os Serviços de Identificação receberam a resposta do Juízo de Família e Menores referindo que de acordo com a sentença proferida em 9.9.2020: “pela factualidade acima exposta e nos termos indicados, deve este Tribunal declarar nulo o registo de nascimento da 2ª arguida na parte relativa à identidade do pai, ordenando o seu cancelamento” e “de acordo com a conclusão deduzida, este Tribunal julga procedente o recurso, decidindo o seguinte: 1. Declara que o 1º arguido B (B) ou B (B)1 não é o pai biológico da 2ª arguida A (A) ou A (A); 2. Cancela o registo de nascimento da 2ª arguida na parte que diz o 1º arguido é o pai dela”. Tal sentença transitou em julgado em 28.9.2020;
12. Os Serviços de Identificação comunicaram a referida sentença à Conservatória do Registo Civil em 25.1.2021 e em 2.2.2021, receberam a certidão narrativa da rectificação do registo de nascimento nº 1***/2000/CR de que consta que “Pai: ***; Mãe: D;
13. Por ter perdido o bilhete de identidade de residente permanente da RAEM a Recorrente pediu aos Serviços de Identificação a substituição do BIRP em 24.3.2021, possuindo actualmente o recibo da renovação do documento;
14. Considerando que a interessada não consegue provar que o pai ou mãe era residente de Macau ou residia legalmente em Macau na altura do nascimento dela, não possui o estatuto de residente permanente da RAEM, em 7.6.2021, os Serviços de Identificação notificaram, através do ofício 390/DSI-DAG-OFI/2021, a ora Recorrente informando de que iam cancelar o BIRP de Macau nº 1******(4) que foi emitido pela primeira vez em 9.5.2000, notificando-a que para audiência escrita, recebendo aquela o dito ofício em 10.6.2021;
15. Em 21.6.2021, os Serviços de Identificação receberam as alegações escritas apresentadas pela ora Recorrente;
16. Em 6.7.2021, os Serviços de Identificação lavraram a Infª nº 28/DAG/DJP/D/2021, a qual consta de fls. 107 a 122 do PA apenso e aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais, com base na qual pela Directora dos Serviços de Identificação foi proferido despacho em 7.7.2021 a declarar a nulidade do acto de emitir o bilhete de identidade de residente de Macau e dos actos de substituir e renovar o bilhete de identidade de residente permanente da RAEM da agora Recorrente, bem como decidiram o cancelamento do BIRP da RAEM da mesma. Tal decisão foi notificada ao advogado da Recorrente através do ofício nº 459/DSI-DAG/OFI/2021 de 9 de Julho do mesmo ano o qual a recebeu em 12.7.2021;
17. Em 2.8.2021, da decisão proferida foi interposto recurso hierárquico necessário para o Secretário para a Administração e Justiça;
18. Com base na informação nº 32/DAG/DJP/D/2021 de 16.8.2021 a qual consta de fls. 156 a 180 do PA apenso pelo Senhor Secretário para a Administração de Justiça foi proferido despacho a negar provimento ao recurso hierárquico.
b) Do Direito
Vem a Recorrente imputar ao acto recorrido a violação do princípio do inquisitório e o vício de violação de lei quanto à aplicação da al. c) do nº 2 do artº 122º do CPA uma vez que o crime subjacente à prática do acto em causa não foi por si cometido e é alheia ao mesmo.
Da violação do princípio do inquisitório
Relativamente à violação do principío do inquisitório aderimos sem reservas à fundamentação constante do Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público a qual aqui damos por reproduzida, não podendo o recurso proceder com base nesse argumento.
Do vício de violação de lei pela aplicação da al. c) do nº2 do artº 122º do CPA
A este respeito invoca-se ser a Recorrente alheia ao crime que se haja cometido aquando do seu nascimento ao declarar ser o seu pai pessoa que o não era.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Haverá erro por vício de violação de lei sempre que forem inexistentes os pressupostos de facto que determinam a prática do acto administrativo.
Um dos fundamentos do acto administrativo impugnado é a nulidade decorrente da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA de que o crime de falsas declarações quanto à paternidade da recorrente foi o pressuposto do acto.
Na parte que releva para estes autos dispõe o artº 122º do CPA:
Artigo 122.º
(Actos nulos)
1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São, designadamente, actos nulos:
a) …
b)…
c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
d)…
e)…
f)…
g)…
h)…
i)…
Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 30.05.2018, Processo nº 29/2018:
«Relativamente à interpretação desta alínea, dissemos o seguinte nos acórdãos de 25 de Abril e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 11/2012 e 48/2012:
«O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto2, é o efeito jurídico criado ou declarado3.
No caso dos autos, o objecto do despacho de … não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS4 sustentam que:
“A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime»tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM5 escrevem:
“Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”».
Pois bem, tendo o despacho do Chefe do Executivo, de 26 de Dezembro de 2000, que autorizou a residência temporária da 2.ª recorrente e os despachos do Secretário para a Economia e Finanças, de 6 de Abril de 2004, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente, por 3 anos e de 16 de Fevereiro de 2007, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente até 31 de Maio de 2008, sido proferidos com base em documentos de identificação de uma interessada que eram falsos, com nome falso, com data de nascimento e identidade do pai que não coincidiam com os verdadeiros elementos de identificação da 2.ª recorrente, podemos dizer que tais actos administrativos apenas foram produzidos porque tinham na sua base a prática de crimes, por parte da 2.ª recorrente.
E pergunta-se, se a 2.ª recorrente tivesse exibido a sua verdadeira identidade, tais actos ter-lhe-iam concedido a residência de Macau? Não sabemos. Provavelmente, não, já que tendo a 2.ª recorrente de nacionalidade chinesa, residente no Interior da China, face ao disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º14/95/M, de 27 de Março, vigente ao tempo, teria de entregar documento comprovativo da autorização para requerer a fixação de residência em Macau, emitido pelas autoridades competentes da República Popular da China, o que não seria possível, porque tal documento nunca foi emitido.
Ou seja, a 2.ª recorrente obteve a residência em Macau usando uma identidade falsa, por razões não inteiramente claras e que em si não são relevantes, mas que provavelmente estão relacionadas com o que se disse atrás. Quando já era residente permanente, veio, então, pretender regressar à sua identidade verdadeira, pedindo a alteração do nome no seu bilhete de identidade de residente. Parece evidente que não pode ser.
Afigura-se-nos que o acto recorrido interpretou devidamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.»
Como expressamente se diz no trecho citado o entendimento seguido resulta de que «a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma».
Na situação do Acórdão citado a falsificação dos documentos foi cometida pelo destinatário do acto, ou seja, a beneficiária da actuação da administração levou a que esta praticasse um acto que lhe era favorável e constitutivo de direitos com base em pressupostos de facto falsos e criminalmente puníveis. Nos dois Acórdãos que ali se citam a situação subjacente à prática do acto administrativo que veio a ser julgado nulo era uma situação de corrupção passiva cometida também com o objectivo de conduzir à prática do acto que veio a ser julgado nulo.
Dúvidas não assistem de que a solução Doutrinária adoptada é a melhor interpretação para o preceito em causa.
Contudo, a essa interpretação extensiva não é alheia os princípios fundamentais que enfermam o nosso sistema jurídico o qual assenta no que à responsabilidade concerne no princípio da culpa e na protecção de terceiros de boa-fé, havendo as formas de responsabilidade objectiva que ser expressamente previstas na lei.
Ora, aquilo que a Doutrina sustenta é que choca à sensibilidade do jurista que um acto praticado com base em pressupostos de facto forjados, numa actuação que é criminalmente punida, pudesse gerar quaisquer efeitos havendo que ser sancionado com a nulidade.
Porém, no caso que nos ocupa o destinatário do acto é um terceiro totalmente alheio à actividade criminosa que levou a que o pressuposto de facto que eventualmente conduziu à prática do acto administrativo fosse forjado. Concretizando, o sujeito a favor de quem os actos administrativos anulados foram constitutivos de direito era uma criança recém nascida que sem necessidade de qualquer outra prova é manifestamente alheia às falsas declarações que a mãe haja prestado a seu favor.
Destarte, se é correcta a interpretação no sentido de a actividade criminal prevista na letra da lei tanto pode ser a que se resulta da prática do acto – como expressamente resulta da disposição legal – como também, aquela que haja estado na sua génese, também porque a expressão usada é “crime” nada autoriza que a interpretação extensiva vá tão longe que possa entender que ainda que os sujeitos envolvidos na prática do acto – administração pública e cidadão sujeito do acto - actuem de boa-fé, a actuação crimonosa de terceiros possa vir a inquinar o acto de tal forma que o fira de nulidade.
O que a lei diz é que são nulos: Os actos cujo objecto seja impossível, os actos cujo objecto seja ininteligível, os actos cujo objecto constitua crime. A interpretação literal do preceito não pode ser outra que não esta, o que se pretende acautelar é que o objecto do acto administrativo possa constituir crime, contudo, alguma doutrina veio a fazer uma “interpretação extensiva” do preceito no sentido de considerar que quando os pressupostos do acto foram forjados de forma que constitua crime, também ai aquele é cominado com a nulidade, mas há que pressupor que essa actuação criminosa tenha uma conexão com os sujeitos a quem o acto se dirige.
Salvo melhor opinião, em nenhum dos Acórdãos do TUI a questão “sub judice” tem por objecto sujeitos que sejam alheios à actividade criminosa que levou à prática do acto, pelo que, em situações como aquela que ocorre nestes autos haverá que ponderar também o princípio da protecção dos sujeitos de boa-fé não levando a interpretação extensiva a um ponto que nos parece já estar – no caso de desconsiderar os interesses de sujeitos de boa-fé – num nível muito para além daquele que resulta da letra da lei.
Destarte, se este fosse o único fundamento do acto impugnado na nossa opinião haveria de proceder o recurso.
Contudo, o acto impugnado foi também praticado com base no nº 1 do artº 122º do CPA, isto é, «São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade», e relativamente a este fundamento nada se invoca em sede de conclusões de recurso.
Salvo os casos de vícios que determinam a nulidade ou inexistência do acto administrativo os quais são de conhecimento oficioso – Acórdão do TUI de 05.11.2009 proferido no processo nº 47/2008 – no que concerne aos vícios conducentes à anulabilidade do acto administrativo o Tribunal está vinculado ao pedido e aos vícios invocados – cf. Acórdãos do TUI de 30.04.2008 proferidos nos Processos nº 8/2007 e 10/2007 -.
Sobre esta matéria veja-se José Cândido de Pinho em Notas e Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, Vol. I, pág. 521, nota nº 4 ao artº 74º do CPAC:
«o tribunal está dependente do pedido e dos vícios invocados; não pode por sua livre iniciativa conhecer de vícios não suscitados expressamente pelo recorrente ou pelo MP – ao contrário do que sucede com a impugnação de normas, em que o tribunal pode decidir com fundamento na ofensa de princípios ou normas jurídicas diversos daqueles cuja ofensa tenha sido invocada art. 93º, nº1, infra) – salvo nas situações em pode oficiosamente conhecer de vícios de nulidade (para o que, no entanto, deve ouvir previamente as partes, ao abrigo do princípio do contraditório).».
De acordo com o princípio dispositivo, também em matéria de recurso contencioso o tribunal só pode apreciar vícios determinantes da anulabilidade do acto impugnado que façam parte da causa de pedir, não bastando a alegação vaga e genérica de que o acto enferma do vício de violação de lei sem que se haja concretizado.
Destarte, vício algum se alegando quanto ao pressuposto do acto administrativo que considerou que a emissão do BIRPM era nulo por falta de um pressuposto essencial, com fundamento no nº 1 do artº 122º do CPA, haverá que manter o acto administrativo – com este fundamento -, impondo-se decidir em conformidade negando provimento ao recurso, sendo alheio a estes autos o entendimento que se haja tido em situações similares, uma vez que aqui nada se invoca a respeito.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso mantém-se a decisão recorrida com base no nº 1 do artº 122º do CPA.
Custas pela Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 16 de Junho de 2022
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Subscrevi apenas a decisão.
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Mº Pº
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 O advogado desta causa consultou estes Serviços sobre a diferença entre o apelido “溫” e “温” no registo de nascimento e no bilhete de identidade da interessada. Depois, estes Serviços explicaram ao tribunal através de ofício que são estilos de fonte do carácter.
2 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481
3 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
4 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
5 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.
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809/2021 REC CONT 66