Processo n.º 546/2021 Data do acórdão: 2022-6-9
Assuntos:
– crime de violência doméstica
– atenuação especial da pena
– pena acessória
– art.o 18.o, n.o 2, Lei n.o 2/2016
– art.o 19.o da Lei n.o 2/2016
S U M Á R I O
1. Não se pode accionar a atenuação especial da pena prevista no art.o 66.o, n.o 1, do Código Penal para a conduta delitual penal de violência doméstica, dadas as prementes necessidades de protecção do bem jurídico que se procura tutelar através da criação legiferante deste tipo-de-ilícito no n.o 2 do art.o 18.o da Lei n.o 2/2016.
2. O tribunal pode aplicar ao agente deste crime, à luz do art.o 19.o, n.o 1, alínea 5), desta Lei, a injunção de participação em programa especial de prevenção da violência doméstica nos termos a definir pelo Instituto de Acção Social, por força designadamente do art.o 5.o da própria Lei, sendo a eventual violação desta sanção punível, nos termos do n.o 2 do referido art.o 19.o, com pena de prisão até dois anos ou com multa até 240 dias.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 546/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 224 a 231v do Processo Comum Singular n.o CR5-20-0342-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base que o condenou pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica (contra a sua esposa, na presença de pessoa menor de 14 anos), p. e p. pelo art.o 18.o, n.os 2 e 3, alínea 2), da Lei n.o 2/2016, na pena de três anos e seis meses de prisão efectiva, e de um crime de violência doméstica (contra pessoa menor de 14 anos), p. e p. pelo art.o 18.o, n.os 2 e 3, alínea 1), da mesma Lei, na pena de quatro anos de prisão efectiva, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas de prisão, finalmente na pena única de cinco anos e seis meses de prisão efectiva, com pena acessória, aplicada nos termos do art.o 19.o, n.o 1, alínea 1), da mesma Lei, de proibição de contactar, importunar ou seguir a ofendida menor no último dos referidos crimes, pelo período de três anos, nele não se contando o tempo de cumprimento da pena efectiva de prisão, veio o arguido A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), assacando àquela decisão condenatória os vícios de erro notório na apreciação da prova (mormente na parte referente ao impacto da conduta praticada por ele sobre o estado psicológico da filha menor da sua esposa) e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (nomeadamente por inexistirem factos sobre os maus tratos sobre as duas ofendidas), para pedir, a título principal, que os dois crimes de violência doméstica por que vinha condenado fossem convolados para dois correspondentes crimes de ofensa simples à integridade física, e subsequentemente fosse arquivado o processo em relação a estes dois delitos, por motivo de já desistência da queixa pelas duas ofendidas, e também para rogar, fosse como fosse, a atenuação especial das penas, ou pelo menos a redução das penas, sem aplicação da pena acessória de proibição de contacto relativamente àquela ofendida filha menor (cfr. em mais detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 249 a 266 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 268 a 272v dos presentes autos), no sentido de improcedência do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (de fls. 282 a 286v), opinando pela procedência do recurso apenas na parte respeitante à redução das penas de prisão, com aplicação de penas parcelares de prisão não superiores a dois anos e seis meses de prisão, e de pena única de prisão não superior a três anos, a ser possivelmente suspensa na execução por um período mais longo, com também injunção, por um período total não inferior a três anos, de participação em programa especial de prevenção da violência doméstica ou submissão a aconselhamento psicológico, nos termos do art.o 19.o da Lei n.o 2/2016.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora impugnado pelo arguido recorrente ficou proferido a fls. 224 a 231v, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O arguido, na audiência de julgamento em primeira instância, confessou muitos dos factos imputados a ele, tendo dito que já soube do erro cometido, e que após o caso dos autos jamais bateu nas duas ofendidas, i.e., nem na sua esposa nem na filha desta e do ex-marido desta.
3. A ofendida esposa do arguido declarou na mesma audiência de julgamento que queria perdoar o arguido, dando-lhe oportunidade, e que agora a sua filha também falava com o arguido, quando se deslocava para a casa deles em Macau.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação, o recorrente assacou à decisão condenatória penal da Primeira Instância o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
A propósito da temática do julgamento de factos, é sempre útil relembrar primeiro os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo (inclusivamente na parte respeitante ao impacto da conduta do arguido sobre o estado psicológico da filha menor da sua esposa e do ex-marido desta), o qual nem sequer tenha violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador.
E como o Tribunal recorrido já deu por provados todos os factos imputados ao arguido, não pode ter havido, assim, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (e sobre o sentido e alcance deste vício, pode referir-se, por exemplo, de entre muitos outros, aos acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Assim, perante a matéria de facto já julgada (sem erro notório na apreciação da prova nem insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) pela Primeira Instância, é correcto o enquadramento jurídico-penal feito pelo Tribunal sentenciador aos factos provados, sob a égide da norma incriminadora do art.o 18.o da Lei n.o 2/2016.
Improcede, pois, a parte principal do recurso.
E agora da problemática da medida concreta da pena:
No caso concreto, tratou-se de violência doméstica cometida pelo arguido contra a sua esposa e a filha menor desta e do ex-marido desta.
As lesões corporais então sofridas por essas duas ofendidas não foram de grau muito grave.
O arguido é delinquente primário.
O arguido disse na audiência de julgamento que depois do caso dos autos jamais bateu na sua esposa nem na filha menor desta, versão de coisas essa que é compatível logicamente com as declarações da sua esposa na audiência de julgamento, segundo as quais ela queria perdoar o arguido e a ofendida filha menor já falava com o arguido quando se deslocava para a casa deles em Macau.
Desde já, não se pode accionar a atenuação especial da pena prevista no art.o 66.o, n.o 1, do Código Penal (CP) para a conduta delitual penal de violência doméstica, dadas as prementes necessidades de protecção do bem jurídico que se procura tutelar através da criação legiferante deste tipo-de-ilícito, descrito no n.o 2 do art.o 18.o da Lei n.o 2/2016.
Entretanto, tudo ponderado aos critérios dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, afigura-se ser de reduzir as duas penas parcelares de prisão dele (dentro da respectiva moldura penal aplicável de dois a oito anos de prisão), de quatro anos de prisão e de três anos e seis meses de prisão, para dois anos e oito meses de prisão e para dois anos e três meses de prisão, respectivamente.
Em cúmulo jurídico dessas duas novas penas parcelares, operado nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, dentro da correspondente moldura de dois anos e oito meses a quatro anos e onze meses de prisão, é de passar a impor ao arguido a pena única de três anos de prisão, nova pena única de prisão esta que se pode suspender, tal como sugeriu a Digna Procuardora-Adjunta no seu parecer emitido, na sua execução por quatro anos (cfr. o art.o 48.o, n.o 1, do CP).
Quanto à pena acessória a que alude o art.o 19.o da Lei n.o 2/2016:
O arguido pretende a revogação da ordem de proibição de contactar, importunar ou seguir a ofendida menor.
Considerando que conforme as declarações da esposa do arguido, a filha menor desta já falava com este quando se deslocava para a casa deles em Macau, é de alterar esta pena acessória para a seguinte pena, naturalmente mais leve, referida também na alínea 5) do n.o 1 do art.o 19.o da Lei n.o 2/2016: injunção de participação em programa especial de prevenção da violência doméstica, pelo período de três anos e seis meses, nos termos a definir pelo Instituto de Acção Social, por força designadamente do art.o 5.o da própria Lei n.o 2/2016, sendo, nota-se, a eventual violação desta sanção acessória punível com pena de prisão até dois anos ou com multa até 240 dias (cfr. o art.o 19.o, n.o 2, da mesma Lei).
Resta decidir, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso, passando, por conseguinte, a condenar o arguido A em dois anos e oito meses de prisão pelo crime de violência doméstica contra a filha menor da sua esposa (p. e p. pelo art.o 18.o, n.os 2 e 3, alínea 1), da Lei n.o 2/2016), e em dois anos e três meses de prisão pelo crime de violência doméstica contra a sua esposa na presença da mesma filha menor (p. e p. pelo art.o 18.o, n.os 2 e 3, alínea 2), da mesma Lei), e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de três anos de prisão (suspensa, na sua execução, por quatro anos), com a única pena acessória de injunção, por três anos e seis meses, de participação em programa especial de prevenção da violência doméstica (prevista inclusivamente na alínea 5) do n.o 1 do art.o 19.o da Lei n.o 2/2016), nos termos a definir pelo Instituto de Acção Social, sendo a eventual violação desta sanção acessória pelo arguido punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, nos termos do n.o 2 do mesmo art.o 19.o.
Pagará o arguido três quartos das custas do seu recurso, e três UC de taxa de justiça por causa do decaimento parcial no recurso.
Comunique o presente acórdão (com cópia do acórdão recorrido) ao Instituto de Acção Social, também nos termos e para os efeitos do art.o 32.o da Lei n.o 2/2016.
Macau, 9 de Junho de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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