--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). ----------------
--- Data: 21/06/2022 --------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kuong Seng --------------------------------------------------------------------------
Processo n.º 396/2022
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): A
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Por acórdão proferido a fls. 267 a 275 do Processo Comum Colectivo n.° CR4-22-0004-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A, aí já melhor identificado, pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime agravado de auxílio (à imigração clandestina), p. e p. pelo art.o 14º, n.os 2 e 1, da Lei n.o 6/2004 (vigente à data da prática dos factos), na pena de cinco anos e três meses de prisão.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e peticionando na sua motivação a fls. 281 a 284v dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– o aresto recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, sobretudo no tocante ao recebimento pelo próprio arguido da vantagem patrimonial pela transportação do imigrante clandestino dos autos para Macau;
– a lei incriminadora da conduta de auxílio à imigração clandestina exige “a efectiva obtenção” de vantagem patrimonial por parte do agente, para a qual não é nem nunca seria suficiente uma mera negociação ou até promessa de pagamento;
– daí que deve o próprio arguido recorrente passar a ser punido pelo crime simples de auxílio, e não pelo crime agravado de auxílio, por não ter sido produzida nenhuma prova sobre a efectiva obtenção, por ele, de vantagem patrimonial, razão por que padece a decisão condenatória recorrida também do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 287 a 291, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 305 a 307, no sentido de manutenção do julgado.
Cumpre decidir sumariamente do recurso, dada a sua manifesta improcedência, nos termos dos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP).
2. Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 267 a 275, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, debruça-se sobre o vício de erro notório na apreciação da prova, esgrimido a título principal pelo arguido na motivação de recurso.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, mormente nos dois últimos parágrafos da fundamentação probatória do acórdão recorrido, escritos a partir da última linha da página 8 até à linha 12 da página seguinte do respectivo texto, a fls. 270v a 271, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos (incluindo os respeitantes à vantagem patrimonial pela transportação de imigrante clandestino), depois de feita a referência sumária ao conteúdo de diversos elementos probatórios analisados, pelo mesmo Tribunal, em global e de modo crítico.
E o resultado do julgamento de factos a que chegou esse Tribunal recorrido não é desrazóavel.
Portanto, ante a factualidade provada em primeira instância: o arguido foi indubitavelmente – por ter sido ele o condutor da embarcação usada para a transportação para Macau, a título oneroso, do imigrante clandestino chamado B em causa nos autos – co-autor de outrem (cfr. o disposto na primeira parte do art.o 25.o do Código Penal) nessa concreta transportação, mesmo que não tenha sido o próprio arguido quem recebeu pessoalmente vantagem patrimonial por essa transportação.
Assim sendo, não se pode convolar o crime agravado de auxílio por que ele vinha condenado em primeira instância para o crime simples de auxílio, sendo de notar que a argumentação invocada por ele para sustentar essa convolação não é do foro do vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas sim da questão, eminentemente jurídica, de subsunção de factos ao Direito.
É, pois, patente a improcedência do recurso, o qual deve ser rejeitado, sem mais indagação por materialmente prejudicada.
4. Dest’arte, decide-se em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
Custas do recurso pelo arguido, com uma UC de taxa de justiça e três UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso), e mil e seiscentas patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 21 de Junho de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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