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Processo n.º 968/2021 Data do acórdão: 2022-6-9
Assuntos:
– crime de burla
– transferência da verba dos vales de saúde de pessoa falecida
– burla tentada
S U M Á R I O
1. Não tendo o arguido dito ao médico que o ajudou a tratar da transferência, a seu favor, da verba dos vales de saúde do seu pai a já morte deste, não pode vir o arguido, na motivação do recurso da decisão condenatória do seu crime de burla, imputar, à moda algo de venire contra factum proprium, responsabilidade a esse médico pela indevida feitura de tal operação de transferência.
2. Com efeito, o estratagema usado pelo arguido para fazer com que a operação de transferência dos vales fosse feita com a ajuda daquele médico consistiu em não ter revelado a este a já morte do seu pai. Portanto, quem praticou acto de burla, através da omissão da revelação daquele dado fáctico atinente à morte do beneficiário inicial dos vales, foi unicamente o próprio arguido.
3. No caso, foi crime tentado e não consumado, porque o arguido ao fim e ao cabo não chegou a utilizar a verba transferida dos vales de saúde do seu pai, sem prejuízo, pois, para a Região Administrativa Especial de Macau.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 968/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (1.o arguido): A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 264 a 273 do Processo Comum Colectivo n.o CR3-21-0075-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base na parte em que o condenou pela prática, em autoria material, de um crime tentado de burla, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 2, e 22.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, em 75 dias de multa, à quantia diária de cem patacas, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a sua absolvição desse crime na motivação apresentada a fls. 294 a 301 dos presentes autos correspondentes, alegando, para o efeito, no seu essencial, o seguinte:
– sem a participação do 2.o arguido médico com dolo ou negligência, os factos descritos na acusação e que acusam o ora recorrente como 1.o arguido pelo crime de burla não se teriam verificado;
– a lei não especifica que o detentor dos vales de saúde tem de estar presente aquando da transmissão dos vales para ascendentes ou descendentes do 1.o grau titulares de Bilhete de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM);
– o funcionário testemunha dos Serviços de Saúde não negou que esta transmissão pudesse ser feita num quiosque electrónico, portanto, sem a presença do beneficiário;
– sendo o 2.o arguido médico, este tinha o dever então de não fazer a transferência por o beneficiário não ter estado presente;
– portanto, não poderia o próprio ora recorrente ter sabido que incorria em crime ou violação da lei;
– sendo ele próprio um homem de bem, sem antecedentes criminais, reformado, se tivesse sido advertido que não poderia usar os vales de saúde do funcionário, seu pai, falecido na véspera dos factos, seria evidente que iria cumprir os ditames da lei;
– nestes termos, é tão criminoso o 2.o arguido médico, sem cuja participação o 1.o arguido ora recorrente não teria feito a transferência dos vales de saúde do seu pai;
– tendo sido absolvido o 2.o arguido, não se compreende a condenação do próprio recorrente, até porque não houve prejuízo para a RAEM.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 304 a 305v dos presentes autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 316 a 317v, opinando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora impugnado pelo 1.o arguido recorrente ficou proferido a fls. 264 a 273, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Segundo a factualidade aí descrita como provada: o 1.o arguido, no dia imediatamente seguinte ao da morte do seu pai, munido do Bilhete de Identidade de Residente deste, foi à Clínica do 2.o arguido médico, pedindo a este que o ajudasse a fazer transferência, para si, dos vales de saúde no valor de 600 patacas do seu pai, pretensão essa que foi aceite pelo 2.o arguido, de maneira que a conta dos vales de saúde do 1.o arguido acabou por receber com êxito a verba transferida de 600 patacas, verba essa que não veio a ser usada pelo 1.o arguido, sem prejuízo para a RAEM.
3. Da factualidade dada por provada no mesmo acórdão recorrido, não consta que o 1.o arguido, ao pedir ajuda ao 2.o arguido médico, chegou a revelar a este a já morte do seu pai.
4. O 1.o arguido declarou na audiência de julgamento que na altura não tinha dito a já morte do seu pai ao 2.o arguido médico.
5. O Tribunal autor do acórdão ora recorrido absolveu penalmente o 2.o arguido médico.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação, o 1.o arguido ora recorrente pediu a absolvição do crime tentado de burla porque vinha inclusivamente condenado em primeira instância, alegando, com insistência, que sem participação do 2.o arguido, não teria feito a transferência dos vales do seu pai a seu favor.
Pelos vistos, pretendeu o 1.o arguido alijar responsabilidade pela prática do crime tentado de burla para os ombros do 2.o arguido médico.
Entretanto, não tendo ele próprio dito a já morte do seu pai a esse arguido médico, falta-lhe razão para, na motivação do recurso, à moda algo de venire contra factum proprium, imputar responsabilidade a esse médico pela indevida feitura da operação de transferência dos vales em causa.
Por outro lado, o arguido recorrente foca muito a argumentação do recurso na questão de “presença” do beneficiário inicial dos vales de saúde no acto de transmissão. Contudo, este ponto não releva para o sucesso do seu recurso, visto que o estratagema por ele usado para fazer com que a operação de transferência dos vales de saúde do seu pai fosse feita com a ajuda do 2.o arguido médico consistiu em não ter revelado a esse médico a já morte do seu pai na véspera do dia de transferência dos vales.
Portanto, quem praticou acto de burla, através da omissão da revelação, aquando da transmissão dos vales, daquele dado fáctico atinente à já morte do seu pai, foi unicamente o próprio recorrente.
Andou bem assim o Tribunal recorrido em condenar o recorrente inclusivamente como autor material de um crime tentado de burla simples, perante todos os factos já dados razoavelmente provados na fundamentação do seu próprio acórdão.
E foi crime tentado e não consumado, porque o recorrente ao fim e ao cabo não chegou a utilizar a verba transferida de 600 patacas, sem prejuízo, pois, para a RAEM.
Naufraga, assim, o recurso, sem mais indagação, por estar prejudicada pela análise das coisas acima feita, sobre o remanescente alegado na respectiva motivação.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso, com custas pelo recorrente, com duas UC de taxa de justiça.
Notifique também o 2.o arguido.
Comunique o presente acórdão, com cópia do acórdão recorrido, aos Serviços de Saúde.
Macau, 9 de Junho de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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